“e por toda a calma latente e infinitamente doce,” Salvador Dalí
Desde que se tem notícia do seu aparecimento ainda na era pré-colombiana dos países da América Central, o chocolate não serve apenas como alimento. Claro, a sua função principal é essa, até por ser difícil negar suas qualidades tão atrativas ao paladar. Mas é sobretudo por outros sentidos como visão, tato e olfato, que o chocolate atende a diversas intenções. Não por acaso está associado a celebrações como a Páscoa e o Dia dos Namorados. No universo da cultura popular é difícil uma arte que tenha escapado ao seu charme.
No cinema certamente a iniciativa mais marcante em relação ao tema é “A Fantástica Fábrica de Chocolate”, de 1971, baseado no livro de Roald Dahl. O filme eternizou a figura excêntrica de Willy Wonka, vivido nesta versão por Gene Wilder e depois interpretado por Johnny Depp no longa-metragem lançado por Tim Burton em 2005. A ideia de um ambiente repleto e coberto por chocolate sensibilizou e encheu de água na boca a adultos e crianças. Outras duas obras marcantes são a mexicana “Como Água Para Chocolate”, de 1992, e “Chocolate”, com Juliette Binoche no papel principal, de 2000.
Na música, o jingle criado por Tim Maia cujas alusões ao uso de entorpecentes são frequentemente comentadas é, sem dúvida nenhuma, a de maior impacto. Até mesmo pelo peso que o “Síndico” imprimia às suas canções. O maior cantor de soul do Brasil era seco e claro ao dizer que nada mais servia além de “Chocolate”, na música de mesmo título regravada por Marisa Monte, entre outros. De maneira bem mais rasa o funk gravado por Naldo também se apropria do doce para descrever um “Amor de chocolate”, dos maiores êxitos de público dos últimos tempos.
O que talvez passe despercebido para a maioria das pessoas é que o Brasil inventou até mesmo um compositor de nome Chocolate, ou melhor, apelido, que teve entre seus parceiros de palco e composição o humorista Chico Anysio. Dorival Silva, o Chocolate, que também era ator e comediante, com participação na ‘Praça da Alegria’, de Manoel de Nóbrega, e diversos programas de rádio, escreveu músicas lançadas por Ângela Maria, Nora Ney, Cauby Peixoto, Elis Regina, Elizeth Cardoso, e muitos outros. Entre os sucessos figuram “Vida de Bailarina”, “Triste Melodia”, “Hino ao músico” e “É tão gostoso, seu moço”, parceria com Mário Lago.
Nas artes plásticas, o controverso e aclamado Vik Muniz é useiro e vezeiro em contornar e reconstruir obras clássicas com objetos e materiais inusitados. Um deles, como não poderia deixar de ser é o chocolate, cuja utilização mais conhecida se deu na capa do disco “Tribalistas”, trabalho em conjunto dos cantores e compositores Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown. A fábula infantil “João e Maria”, coletada pelos irmãos Grimm, também explora o encanto dos doces, entre eles o favoritíssimo chocolate, numa casa em que estes abundam, mas há uma bruxa a impedir que essa fatura se transforme na consumação do pecado. O pecado da gula, um dos mais regulares e assumidos.
Na poesia e na literatura o chocolate aparece na forma de prazer e dissabor. Fernando Pessoa, sob o heterônimo de Álvaro de Campos, condena a própria incapacidade de aproveitar a vida feito uma criança sem culpa. “Come, pequena suja, come!/Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade/com que comes!/Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de/folha de estanho,/Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)”. Enquanto o colombiano Gabriel García Márquez, em seu livro “Memória de minhas putas tristes”, avalia a beleza de sua amada por esse ângulo: “e os lábios aumentados com um verniz de chocolate”. A imagem que se impõe do fruto do cacau é a da pura delícia, como na arquitetura de Gaudí.
Raphael Vidigal
Fotos: chocolate e obra de Gaudí, respectivamente.