“Hoje amam, amanhã’ squecem,
Ora dores, ora alegrias;
E o seu eternamente
Dura sempre uns oito dias!…” Florbela Espanca
O breu, proposital, impedia-nos de vê-lo entrar em cena. Somente o piano de Miguel Briamonte foi possível distinguir na escuridão. Tal nome seria repetido tantas vezes, naquela noite, que jamais nos esqueceremos.
Quando a agudíssima voz ressoou no palco do teatro lotado, houve um minuto de espanto. Infinitamente inferior ao presenciado no momento em que se acenderam as luzes. Pois dotado daquela voz, inebriante, surgia uma miniatura de gente.
Edson Cordeiro, viemos a saber, lendo os textos do cartaz distribuído na portaria. Sucesso na Europa, especialmente na Alemanha, onde nos últimos seis anos, por escolha própria, decidira morar. A canção mesclava versos de origem popular com uma maneira erudita de entoar notas altíssimas.
Além de possuir alcance de contratenor, a estatura incrivelmente baixa, o que fazia cerrar os olhos na altura do microfone, fazendo-nos ver apenas o couro careca e brilhante, contrastava irremediavelmente com a figura frágil. Certamente, em outros tempos, seria convidado a pisar o palco de algum circo bizarro.
“Lá em Mangueira” abriu o espetáculo. Seguiram-se, com o propósito de articular a história do samba, na capital do país, à época em que foram feitas, o solar Rio de Janeiro, reduto de malandragem aristocrática, peças do peso de “Praça Onze”, “Bom dia, Avenida”, “Batuque No Morro”, “Mangueira não”, dentre outras. A maioria feita em parceria com Grande Otelo.
O outro autor era a estrela cadente da noite. Herivelto Martins, celebrado o nascimento centenário, tinha aberto o baú de preciosidades, algumas rancorosas, outras alegres e esfuziantes, muitas, com ardor e desejo, fosse de vingança ou posse, à Dalva de Oliveira, com quem, casado e desquitado, viveu atribulado romance nas décadas de 30, 40, 50.
O exagero teatral do pequenino e altivo sujeito, vestido em trajes coloridos, chapéu, dois figurinos distintos, e acenos para a plateia, ao final de cada número, calava no peito com o torpor de uma pedra mergulhada no rio, recusando-se a afundar.
Incrementava pitadas de jazz, sapateava descontrolado, rodava como bailarina, berrava, com asseio, a homossexualidade, e homenageava o pai em canção sertaneja, implorando perdão e ajoelhando-se, pecaminoso, na hora da “Ave Maria”.
Subira então aos céus, para despedir-se. Não prometeu voltar. Mas lá deixou-nos com a expectativa de existir certo paraíso.
Raphael Vidigal
3 Comentários
Muitíssimo bom! É de se ouvir e reouvir sempre! (salvei nos Favoritos). Ótimo Ano Novo pra vc, Raphael!!! Muito fraternalmente.
Texto MARAVILHOSO! E tudo que vc escreveu é pura verdade! Adorei…
Vou assistir!