“O sol derretera o asfalto. Os pés enterravam-se nele, deixando aberta sua polpa luzidia.” Albert Camus
Alceu Valença está com passagem comprada para Belo Horizonte e não pretende ficar pouco tempo na capital. Pelo menos é o que indicam as apresentações marcadas, para o dia 3 de novembro com a Orquestra Ouro Preto no Palácio das Artes (gravação do DVD “Valencianas”) e em espetáculo solo como uma das atrações do “BH Music Station”, dia 17 de novembro, com repertório em homenagem a Luiz Gonzaga, na estação Vilarinho.
A respeito do primeiro evento, Alceu comenta sobre a parceria que levou os frevos e forrós cantados nos carnavais para o ambiente orquestral: “Fiquei muito emocionado com o tratamento que o maestro Rodrigo Toffolo e o arranjador Mateus Freire deram às minhas músicas. São jovens virtuosos com um carinho muito especial pela música de concerto, mas também pela música popular brasileira”, declara.
VERDADEIRO
Em relação ao sentimento de ver as músicas compostas sob uma aura popular alcançarem o arco da erudição, o compositor revela as proximidades entre ambas: “Estou me sentindo quase um clássico (risos). Mas a aproximação da música popular com a erudita é algo cada vez mais natural e é ótimo que seja assim. No passado, Bach, Beethoven e Villa-Lobos, entre muitos outros, beberam na cultura popular para conceber suas obras eruditas. No Brasil, vários compositores populares mereceram releituras eruditas de suas canções. Podemos citar Dorival Caymmi, Luiz Gonzaga, Tom Jobim, Cartola, Milton Nascimento, entre tantos outros”, confirma.
Possíveis diferenças de estilo concebidas a respeito das duas formas musicais são imediatamente refutadas pelo cantor pernambucano, ao utilizar um valor próprio para conceituá-las: “Não vejo separação. A separação está entre o que é verdadeiro e o que é manipulado, entre o que possui identidade e o que não possui. Se um artista copia outro, ele será sempre um subproduto. Se ele afirma sua identidade, inevitavelmente sua arte será autêntica e permanecerá para muitas gerações”, enfatiza.
CLÁSSICOS
A definição de clássico reside para Alceu Valença em esfera superior à técnica utilizada. O autor de versos tão repetidos quanto ditados populares avisa: “Clássico é aquilo que resiste ao tempo. Luiz Gonzaga é um clássico, assim como Capiba (compositor de frevos e do samba-canção ‘Maria Bethânia’, lançado por Nelson Gonçalves, que inspirou o pedido do então menino Caetano Veloso para batizar a irmã mais nova). E são criadores extremamente populares, cujas obras expressam seu povo”, considera.
A concepção do show ‘Valencianas’ passa também pelas similaridades que amalgamam Olinda, cidade onde o cantor de ‘Morena Tropicana’ possui residência e Ouro Preto, casa da Orquestra mineira: “Olinda e Ouro Preto são como cidades irmãs. Uma é solar, tropical, nordestina. A outra possui o astral maravilhoso das Alterosas. Ambas são patrimônio da humanidade, onde as influências barrocas, ibéricas, coloniais deixam suas marcas mais visíveis e expressam uma parte significativa da nossa história”, retrata.
UNIÃO
Prova disso é a contada fábula que uniu os arreios sonoros de Alceu às cortinas líricas da Orquestra: “Já há algum tempo, meu compadre e produtor artístico das ‘Valencianas’, Paulo Rogério Lage, sonhava em realizar um concerto com a minha obra.” O que fremia somente como fantasia começou a arrendondar-se de maneira palpável em 2010: “Foi quando fui a Ouro Preto para me apresentar no encerramento do ‘Festival de Inverno’ e me apresentaram ao maestro Rodrigo. Houve uma sintonia imediata. No verão seguinte, Rodrigo e Mateus Freire (arranjador do espetáculo) foram à minha casa, em Olinda, para me mostrar as ideias que haviam desenvolvido. Depois de alguns ensaios, com a orquestra, em Belo Horizonte, estreamos as ‘Valencianas’ no Palácio das Artes numa noite de muita emoção para mim, para os músicos e para a plateia. E agora voltaremos a este templo das artes e da cultura em Minas Gerais para a gravação do DVD. É um privilégio para mim” afirma.
O intérprete a se arvorar em experiência inédita na carreira não concorda que exista resistência do público em relação à música erudita, para ele há um controle midiático a impedir o contato com esse tipo de arte: “As pessoas sabem o que é bom. Se você oferecer música de qualidade a elas, não tenha dúvida de que vão aceitar e admirar. Mas num momento em que a mídia é completamente dominada por invenções mercadológicas, pelos ‘tchu tchu tchus’ e ‘tcha tcha tchas’ da vida, fica difícil exigir que as pessoas escutem e admirem um Villa-Lobos, um Guerra-Peixe, um Cussy de Almeida, até mesmo um ícone popular como Luiz Gonzaga, que é muito falado atualmente por causa de seu centenário, mas que as rádios nunca tocam”, argumenta.
CINEMA
Combatente histórico a favor da prevalência dos critérios artísticos, Alceu Valença lançou recentemente um manifesto na internet contra a falta de músicas em português nas rádios e espaços públicos. Sem fugir da raia, o compositor reafirma seu lugar de destaque em cenário dominado por obras descartáveis: “Eu já dizia isso desde os anos 70. Precisamos de mais ponto-de-vista e menos pontos-de-venda. E acabava brigando com todas as gravadoras porque o mercado não pensa assim. O capitalismo é fundamentado na ideia do lucro e é natural que o mercado dite as regras do jogo. Mas o verdadeiro artista faz sua arte sem concessões”, alicerça.
Sobre o futuro, Alceu, com mais de 40 anos de estrada, certifica a inquietude marcante: “Costumo dizer que meu tempo é tríplice. Presente, passado e futuro caminham juntos, são alicerces indissociáveis. Para o futuro, digamos assim, imediato, estou com vários projetos. No próximo ano, além do DVD das ‘Valencianas’, enfim lançarei meu filme, ‘A Luneta do Tempo’. Tenho mais dois DVDs no forno: um com a recriação do meu show ‘Vivo!’, de 1976, gravado agora em Recife. Outro, ainda a ser gravado, com o show em homenagem a Luiz Gonzaga com que venho percorrendo todo o Brasil. Os mineiros terão a oportunidade de assisti-lo no próximo dia 17 de novembro. Sou múltiplo, multicultural e, acima de tudo, brasileiro”, conclui.
MAESTRO RODRIGO TOFFOLO
O espetáculo já está consagrado como sucesso de público e crítica. Não por acaso irá se transformar em registro audiovisual a ser captado no próximo dia 3 de novembro, no Grande Teatro do Palácio das Artes. Mas este não é um argumento suficiente, afinal o mercado capta um volume excessivo de produtos, muitas vezes, descartáveis.
As melhores razões para assistir “Valencianas”, união da música de Alceu Valença à Orquestra Ouro Preto, são enumeradas pelo Maestro Rodrigo Toffolo, terceiro vértice da apresentação: “É um trabalho muito instigante, onde o Alceu tem que cantar mais quadrado, dentro da estrutura rígida de uma orquestra, que ao mesmo tempo, precisa ser mais flexível. Acho que conseguimos um equilíbrio bonito, onde o rio está a fluir livremente”, afirma.
ENCONTRO
O encontro para se transformar as músicas populares do compositor pernambucano em material arregimentado por estrutura erudita aconteceu por intermédio de “um amigo em comum, o editor Paulo Rogério Lage fez a sugestão, e atendemos prontamente, com muita alegria, afinal, quem não quer tocar com Alceu Valença?”, questiona Rodrigo.
A união entre dois mundos aparentemente distantes é outro desafio a impulsionar a beleza do inusitado, garante Rodrigo: “As diferenças residem basicamente nas escolas, na formação de cada um, mas as peculiaridades acabam nos aproximando, pois o sentimento é um só, e nos acopla, a música”, diz.
RESISTÊNCIA
Os arranjos ficaram a cargo do paraibano Mateus Freire, que segundo o maestro foi escolhido por “conhecer de perto a linguagem nordestina, o que fornece o peso almejado por nós da Orquestra e pelo Alceu Valença” confirma.
No que diz respeito à aceitação da música clássica pelo público, Toffolo é enfático: “Não existe resistência, há uma lógica financeira que impede o acesso das pessoas. Quando ela é desmontada, o povo não só abraça como pede mais. Infelizmente a televisão, principal veículo de propagação de conteúdo, não está interessada em investir na erudição, pois não lhe é lucrativo”, finaliza.
SAIBA MAIS
Sucessos do cantor residente em Olinda estarão presentes no roteiro, como “La Belle de Jour”, “Morena Tropicana”, “Anunciação”, “Coração Bobo”, entre outros.
Raphael Vidigal
Publicado no jornal “Hoje em Dia” em 01/11/2012.
10 Comentários
Prezado, Raphael!
Gostaria de agradecê-lo, em nome do Maestro Rodrigo Toffolo e da Orquestra Ouro Preto, pela excelente matéria publicada na edição de hoje do Hoje em Dia.
“O sino da capela inicia o ritual da noite, ainda faltando presença do mestre de cerimônia, sendo a regência entregue aos trabalhos do maestro Rodrigo Toffolo, empunhando vestimenta e musicalidade adequadas ao. Frevo, batuques, badulaques…”
Lindo! Parabéns, mesmo!
Ele é mto bom! Mto mesmo! Tipo empolgante! =]
Maravilha!!!
Belo texto. Parabéns!
Agradeço a todos os comentários! Viva Alceu e a Orquestra Ouro Preto! Grande abraço
Alceu é um espetáculo!
Oi Raphael, eu que agradeço a força. Abraços!
Alceu Valença, frevo, Orquestra Valenciana, cabo a rabo
ELE SERÁ ETERNO. ESSE É ALCEU.
Alceu Valência é um ícone da música brasilera
A do Alceu está fina, Rapha! Ainda lerei as outras duas.