*por Fabiano Azevedo (quadrinista e pesquisador de quadrinhos)
“Ereto na armadura, homem de pedra, ingente,
Segurando o timão, cortava a onda sombria;
Mas esse manso herói, sobre a espada pendente,
Olhava, em devaneio, a esteira, e nada via.” Baudelaire
No mês em que uma das criações mais influentes dos quadrinhos — The Spirit — comemora 80 anos de sua primeira publicação, me vem à mente o tamanho da figura de seu criador, Will Eisner, e o que ele representa para o universo criativo (e para o negócio) dos comics. Pra começar, é preciso dizer que, pelo estúdio criado em 1936 por Eisner e seu sócio Jerry Iger, o Eisner & Iger, passaram sujeitos como Bob Kane, que foi fazer o Batman, Jack Kirby, co-criador do universo de super-heróis da Marvel, Wallace Wood, notável por seu trabalho na EC Comics e por ter ajudado a criar a Mad, e Jules Feiffer, um dos maiores cartunistas políticos da América do Norte. Ou seja, boa parte do legado da arte gráfica americana do pós guerra — os super-heróis, a comédia de costumes da Mad e o cartum político — iniciou carreira no estúdio de Eisner. Pergunto: teriam esses caras se tornado o que se tornaram porque encontraram Eisner, ou Eisner os encontrou justamente porque eram talentos promissores? Não importa: o resultado é o mesmo.
O Eisner & Iger (que o próprio Will nunca soube definir ao certo do que se tratava: se um syndicate em escala reduzida, se um estúdio de livre criação ou se uma “incubadora” de boas ideias, ainda que esta palavra estivesse longe demais no tempo e no espaço) abrigou, mesmo que brevemente, uma certa nata da nova geração dos comics. Por “nova geração”, entendo pós-Era de Ouro, com seus Caniff, Raymond, Chester Gould etc. Do Eisner & Iger, por sinal, não saíram tantos quadrinhos notórios. Além do Spirit, evidentemente, o mais conhecido é Sheena, a rainha das selvas, que chegou a sair no Brasil, pela Ebal, além do Falcão Negro, personagem que mudou tanto ao longo das décadas que mal pode ser considerado de autoria de Eisner.
Ainda assim, o estúdio foi fundamental porque concretizou um tipo de narrativa em quadrinhos até então incipiente — o das histórias mais longas, de sete ou mais páginas (as do Spirit tinham sete), em contraste com as tiras e páginas publicadas nos suplementos de jornais e que foram eternizadas pela Era de Ouro dos comics. Foi essa mudança que, desde o início, saltou aos olhos, ao proporcionar aos artistas uma incrível liberdade gráfico-narrativa. Tá, Winsor McKay, Lyonel Feininger, Elzie Segar e George Herriman já o faziam, mas havia a limitação imposta pela continuidade semanal dos quadrinhos criados por estes autores.
O “virar a página” de uma HQ de sete páginas proporcionou uma exploração de ritmo narrativo muito maior. Eisner não era bobo: recorreu ao cinema, com seus timings, planos profundos, sombras longas e contra-luzes para dar vida, emoção e movimento aos seus quadrinhos. Sem contar o uso abusivo, poético e expressionista que ele fez das splash pages: nelas, o título da história, bem como o logo ‘The Spirit’, participavam da cena. As splash pages de Eisner não só apresentavam a história: eram uma história em si.
Além disso, em The Spirit havia um componente ainda maior, que, no meu entender, dizia muito mais do caráter de seu autor do que de seus conhecimentos gráficos. Desde as primeiras histórias, em 1940, Eisner inseria alma em seus personagens. O Spirit, ele próprio, não era retilíneo como os heróis dos dois títulos de heróis que formalmente mais se lhe aproximavam — o Superman (1938) e o Batman (1939). Ao contrário, Spirit podia ser ora mulherengo, ora um bonachão, e, ainda, por vezes um perfeito farsante. Isto não lhe tolhia as características virtuosas de um herói que combate o crime, que, óbvio, sobressaltavam. Assim como seus principais coadjuvantes: Ellen Dolan, a eterna e temperamental namorada, e seu pai, o bufo comissário Dolan, uma clara paródia ao Gordon do Batman.
Para não falar da incrível variedade de vilões — não raro bebuns, larápios finórios e picaretas repletos de ironia — e, sobretudo, da coleção de vilãs, a partir da metade da década de 40, quando as femme fatalle começaram a atormentar o coração do Spirit — influência clara do que de melhor havia nos filmes noir da época, como Os Assassinos, com Ava Gardner, ou a estonteante Gilda, protagonizada por Rita Hayworth.
Por fim, Eisner tinha predileção (e isso também faz parte do seu imaginário cultural) por pessoas comuns, ordinárias, habitantes de guetos e cortiços… Como diria Dostoievski (uma das declaradas influências literárias de Eisner), “gente pobre”. Como o Gerrard Schnobble, o “homem que queria voar” de uma HQ de 1948, ou como em seus “contos de fada para delinquentes”, em paródias nada infantis de histórias como João e Maria e Cinderela.
Esse texto é, antes de mais nada, uma tentativa de convidar o leitor a se aventurar pelo incrível universo das HQs do Spirit — ainda que, hoje, elas sejam um tanto difíceis de ser encontradas por aí. Talvez em sebos, em edições mais recentes, como aquelas da Abril do início da década de 90. Ou os cinco álbuns da L&PM, que saíram todos nos anos 80. Em todo o caso, deixo aqui os meus parabéns pelos 80 anos desta obra imortal e que tanto influenciou as gerações seguintes de artistas e leitores (ainda que alguns nem se deem conta disso!)
Imagens: Will Eisner/Reprodução.