5 músicas brasileiras para a Páscoa: de Zé Ramalho a Milton Nascimento

*por Raphael Vidigal

“Ainda em desamor, tempo de amor será.
Seu tempo e contratempo.
Nascendo espesso como um arvoredo
E como tudo que nasce, morrendo

À medida que o tempo nos desgasta.

Amor, o que renasce.
Voltando sempre. Docilmente sábio
Porque na suavidade nos convence
A perdoar e esperar. Em vida. In pace.” Hilda Hilst

Para além das adaptações de mercado, o sentido da Páscoa, principalmente em sua tradição cristã e religiosa, está ligado ao renascimento, ao recomeço e, principalmente, à ressurreição de Cristo, três dias depois da sua crucificação. No calendário católico, a Páscoa, celebrada aos domingos, é precedida pela Semana Santa, a Sexta-Feira da Paixão e o Sábado de Aleluia, repercutindo o martírio do filho de Deus e sua apoteótica consagração. Muito representada nas artes plásticas, principalmente no período da Renascença, por pintores e escultores, a Páscoa também encontra consonância na música do Brasil. Alguns de nossos mais celebrados compositores trataram de ressaltar a continuidade da vida e seu ciclo infinito em canções populares. Listamos abaixo três das mais significativas, por voz e verso dos nossos artistas.

“Tente Outra Vez” (balada, 1975) – Raul Seixas, Paulo Coelho e Marcelo Motta
Raul Seixas sempre foi um artista místico, mas essa característica atingiu seu pico quando do encontro com Paulo Coelho. Foi ao lado dele e de Marcelo Motta que o “maluco beleza” compôs um dos hinos mais emblemáticos da carreira, um louvor à fé e à não desistência. “Tente Outra Vez”, balada de 1975, lançada no disco “NOVO AEON” sublinha, sobretudo, a força de continuidade inerente à vida, presente na natureza e, por conseguinte, à condição do homem. Foi com versos embebidos numa melodia de teor religioso que Raul, cuja canção é, ainda hoje, muitas vezes ligada ao universo da auto-ajuda, criou uma das músicas mais espirituosas de seu repertório, em todos os sentidos. “Tente Outra Vez” já diz por si só, no título, o recado da vida. Foi regravada por Sandra de Sá, Barão Vermelho, Chitãozinho & Xororó, e etc.

“O Cio da Terra” (clube da esquina, 1977) – Chico Buarque e Milton Nascimento
“O Cio da Terra” é uma canção de Chico Buarque e Milton Nascimento, em que se acentuam as características do “Clube da Esquina”, fortemente marcada pelo barroquismo da música mineira e atenta às transformações harmônicas vindas do exterior, em especial os “Beatles”. Lançada em 1977 para integrar o compacto “Primeiro de Maio”, que celebrava o dia do trabalhador e fazia coro ao movimento sindical do ABC paulista liderado por Luiz Inácio Lula da Silva, futuro presidente do Brasil, a música consegue ir além da abordagem ao ofício agrário, por mais que inspirada no canto das mulheres camponesas que colhiam algodão e eram observadas por Milton. O que “O Cio da Terra” conta é o eterno ciclo de renascimento e transformação, do trigo em pão, da cana em mel, e da terra em chão, como na vida do homem, feita de perdas e ganhos. A música foi regravada por Mercedes Sosa, Pena Branca & Xavantinho, e outros.

“Pelo Vinho e Pelo Pão” (balada, 1978) – Zé Ramalho
O interesse de Zé Ramalho por forças ocultas e sobrenaturais e o misticismo que envolve grande parte de sua obra recebeu uma atenção especial em seu segundo disco de carreira. Além do batismo, “A Peleja do Diabo com o Dono do Céu”, ainda trazia na capa a atriz Xuxa Lopes no papel de vampira que tenta Deus e o personagem Zé do Caixão, vivido por José Mojica Marins, como diabo. O artista plástico Hélio Oiticica também comparecia no encarte do disco. Faixas como “Pelo Vinho e Pelo Pão” e “Jardim das Acácias”, com participação de Pepeu Gomes, retomavam essas temáticas espirituais e religiosas. Em “Pelo Vinho e Pelo Pão” a participação era da cantora, e ex-mulher, Amelinha.

“O Amor” (tropicália, 1981) – Vladimir Maiakovski, Ney Costa Santos e Caetano Veloso
O poeta russo Vladimir Maiakovski foi a inspiração para Caetano Veloso e Ney Costa Santos escreverem, a partir dos versos de “O Amor”, fragmento de “A Propósito Disto”, a canção intitulada com o mesmo nome da obra do autor original. Lançada por Gal Costa em 1981, no álbum e espetáculo “Fantasia”, segue, como se observa, os princípios do movimento tropicalista, de conferir um olhar nacional à luneta lançada para o mundo. De rara sensibilidade, música e poesia receberam interpretação coerente e emocionante por parte da diva do movimento capitaneado por Gil, Tom Zé, o próprio Caetano, Hélio Oiticica, e outros. Entre o que é dito de maior impacto destaca-se o refrão, precedido por “quero acabar de viver o que me cabe, minha vida para que não mais existam amores servis”, até chegar ao auge “ressuscita-me para que ninguém mais tenha de sacrificar-se por uma casa, um buraco (…) e o pai seja pelo menos o Universo, e a mãe seja no mínimo a Terra”. O recado está dado.

“Arco-Íris” (MPB, 2021) – Ed Nasque e Raphael Vidigal
A delicadeza permeia todo o repertório de “Interior”, álbum de estreia de Ed Nasque, mineiro de Belo Horizonte que se mudou para Ouro Preto para cursar Música e realizar um sonho. A atmosfera de sonho, embora com pés fincados na realidade, aqui se concentra na transição entre mar e montanha, imagens recorrentes nas letras do trabalho. Agora chega a parte que me cabe. Antes da pandemia, Ed me convidou para escrever a letra de uma melodia que ele compôs. Mas o letrista não é dono das palavras, ele só as escava de dentro das notas. Portanto, tudo que digo em “Arco-Íris” já estava lá, escondido nesse interior sonoro que Ed revela a todos e a todas nós. A esperança está de volta.

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Imagens: “Ressurreição de Cristo”, pintura de Rafael; e montagem com os cantores Raul Seixas, Gal Costa e Milton Nascimento, respectivamente.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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