25 músicas brasileiras sobre a saudade

“De manhã escureço/De dia tardo/De tarde anoiteço/De noite ardo.
A oeste a morte/Contra quem vivo/Do sul cativo/O este é meu norte.
Outros que contem/Passo por passo:/Eu morro ontem
Nasço amanhã/Aonde há espaço:/– Meu tempo é quando.” Vinicius de Moraes

Cantores brasileiros interpretaram a saudade em suas músicas

Saudade é palavra que só existe na língua portuguesa. Saudade cantada pelos poetas e sentida por todos, unanimemente. Dizem que existe um truque do passado para que tenhamos saudade, que pela sabedoria do corpo, da mente e da alma esquecemos o que não faz falta, para guardar somente aquilo que designamos: saudade. A nostalgia cantada em versos é capaz tanto ou mais de emocionar por conter, em si, síntese de lembranças, momentos ou mesmo sonhos e aspirações. Do que “poderia ter sido e não foi…”, diria o outro. Na música brasileira “saudade” é palavra diversa e democrática. Saudade cantada em baião, toada ou trova, ao ritmo de samba, repente ou moda, parte do nosso folclore e da nossa bossa nova. Para todos os que sentem a saudade, música!

Luar do Sertão (toada, 1914) – Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco 
Catulo da Paixão Cearense nasceu na capital do Maranhão, e aos dez anos foi para o interior do Ceará. Interior que amaria muito mais do que qualquer capital. Catulo era apaixonado pelas coisas singelas, simples e ingênuas e delas fez a obra-prima de suas canções. Eternizada na memória afetiva do povo brasileiro, “Luar do Sertão” foi composta por ele em 1914, e gerou divergências com relação à autoria da música. Enquanto Catulo afirmava que a havia composto sozinho, inspirado por uma música folclórica, outros como Heitor Villa-Lobos e Almirante diziam que a melodia era de João Pernambuco, violonista semi-analfabeto. O que não se discute é a lembrança imediata de cada brasileiro quando se começa a tocar o refrão que remete ao balanço de uma rede.

No Rancho Fundo (samba-canção, 1931) – Ary Barroso e Lamartine Babo
Luiz Peixoto, Noel Rosa e Vinicius de Moraes foram alguns dos que tiveram o privilégio de compor com Ary Barroso. Acostumado a criar letra e música sozinho, ele abria raras exceções para parcerias. Numa dessas, Lamartine Babo resolveu se intrometer a mexer na letra de J. Carlos, sobre música de Ary. “Na Grota Funda” perdeu o título original e recebeu versos mais inspirados: “No Rancho Fundo, bem pra lá do fim do mundo, onde a dor e a saudade, contam coisas da cidade”. A canção gravada por Elisa Coelho, em 1931, passou a se associar indistintamente a lembranças de um lugar tranquilo e sereno que o tempo se encarregou de varrer. Nos anos seguintes foi regravada por Silvio Caldas e Isaura Garcia. Como resultado, Ary Barroso ganhou o desafeto de J. Carlos e presenteou a música brasileira com uma parceria consagrada.

Maringá (toada, 1932) – Joubert de Carvalho
É difícil listar músicas que se impregnam de tal forma ao imaginário de um povo a ponto de se tornarem emblemáticas. Gerada a partir de uma idéia simples de Joubert de Carvalho, a de contar ahistória de uma retirante chamada Maria pela seca cidade de Ingá. ‘Maringá’, colagem dos dois nomes, nasceu predestinada à fama. Uma toada de andamento dolente que busca nas profunduras o afeto singelo e meigo pelo que nos cativa. E é provavelmente este, muito mais que o intento do compositor de conseguir um cargo no Estado, e a posterior homenagem com batismo paranaense, o motivo indelével da perpetuação de Maringá nos corações.

Último desejo (samba, 1937) – Noel Rosa 
“Às pessoas que eu detesto, diga sempre que eu não presto, que o meu lar é o botequim, e que eu arruinei sua vida, que eu não mereço a comida, que você pagou pra mim”. É com esses versos que Noel Rosa encerra uma das canções mais bonitas da música brasileira. Composta por ele no final de sua vida, em 1937, Noel revela em “Último Desejo” a importância e a dignidade que trazem um prato de comida a uma pessoa, ao se colocar na situação daquele que nada tem, nada merece e nada quer. A sensibilidade de Noel era tão grande, que até para cantar as questões pessoais do amor ele as ligava a fatos do cotidiano tão comum a todos, e por isso foi chamado de Poeta da Vila e Filósofo do Samba. Noel alimenta os ouvidos daqueles que gostam de boa música.

Nada além (fox, 1938) – Mário Lago e Custódio Mesquita
Custódio Mesquita e Mário Lago resumiram uma relação sublime na música brasileira. A alta costura dos versos do poeta associada ao esmero da melodia do compositor especificaram o amor em sua face menos dolorosa e possivelmente mais assumida, a doce ilusão. Docemente, Orlando Silva gravou o fox “Nada além”, em 1938, como era de sua categoria, acrescentando murmúrios chorosos ao final da canção. Nada mais bonito: “Nada além, nada além de uma ilusão, chega bem, que é demais para o meu coração, acreditando em tudo que o amor mentindo sempre diz, eu vou vivendo assim feliz, na ilusão de ser feliz”.

É doce morrer no mar (toada, 1941) – Dorival Caymmi e Jorge Amado
Só a morte a encerrar o ciclo da vida, admite continuação. O salgado mar pode abrigar velas doces de madeira, corações que irão se afogar no colo de Iemanjá, e descansar em novo abrigo. As águas que levam são as mesmas a trazer. Segue o curso da vida, com quebradas, remendos, com belas embarcações, segue o curso, vida. Compuseram dois velhos amigos, Jorge Amado e Dorival Caymmi, “É doce morrer no mar”, 1941. Costumavam ser confundidos. Olhos de sal, bigode de espuma. Bahia na boca. Estatura larga, porém mediana. Rio comprido que desemboca no mar e segue seu fluxo intermitente, alheio aos desfeitos dos homens, d’areia, do vento que possa lhe machucar. Segue, e se esparsa espontâneo. Cada vez mais grudado no sal dos cabelos, do corpo, da essência perene em gotas de eternidade.

O que se leva dessa vida (samba, 1946) – Pedro Caetano
Ciro Monteiro tornou célebre outra composição de Pedro Caetano, o samba “O que se leva dessa vida”, lançado por ele em 1946 com acompanhamento do regional de Benedito Lacerda e do clarinetista Caximbinho. A música tornou-se um dos estandartes da carreira de Ciro e imortalizou os versos leves e nobres da composição bem humorada de Pedro Caetano sobre as possíveis asperezas da vida.

Saudade de Itapoã (canção, 1948) – Dorival Caymmi
“É tão terna a descoberta da amizade”, dizia Caymmi sobre Zezinho, grande companheiro que o acompanhou no Rio. Era também o apelido de um dono de rede que dava “emprego àquele gente humilde” de Itapoã, praia contemplada em sua bela canção, de 1948. Apresentado à região pelo pai, também tocador de violão, piano e bandolim, além de funcionário público do estado da Bahia, Dorival morreu de amores pela região e a carregou com profunda saudade: a falta daquilo que se presenciou um dia e ainda habita, em outras cintilações. “Coqueiro de Itapoã, coqueiro. Areia de Itapoã, areia. Morena de Itapoã, morena. Saudade de Itapoã, me deixa…E joga uma flor no colo de uma morena de Itapoã”.

Chico Viola (samba, 1953) – Nássara e Wilson Batista 
A morte de Francisco Alves, aclamado como o Rei da Voz, em acidente de carro em 1952, comoveu o Brasil inteiro. Não apenas as escolas de samba choraram, mas todos que eram fãs e parceiros do cantor, e por isso Wilson Batista e Nássara escreveram uma das mais tocantes músicas para se despedir do amigo. Conhecido no meio musical por Chico Viola, o apelido serviu para expressar a dor que os compositores sentiam pela falta daquele que reinou absoluto nas primeiras décadas de ouro do rádio brasileiro, com direito à menção honrosa ao poeta Noel. Cantada na voz emocionada de Linda Batista, foi gravada em 1953, e acabou se transformando na última canção de expressividade de Nássara. Desiludido com a maneira como passou a ser comercializada a festa que tanto adorou, só voltaria a compor em 1968, lançando a marcha “O craque do tamborim”, com Luís Reis. O caricaturista que começou fazendo fado para o anúncio de uma padaria no “Programa Casé”, abandonou a arquitetura e acabou desenhado como a cara de um carnaval engraçado e alegre.

Se eu morresse amanhã de manhã (samba-canção, 1953) – Antônio Maria
Autor de lindas poesias publicadas em forma de crônica, criador de jingles inesquecíveis, Antônio Maria aprontava das suas fora das quatro linhas da arte. Conhecido pelas tiradas sarcásticas e bem humoradas, conta o escritor Carlos Heitor Cony da vez em que o compositor e amigo fez-se passar por ele a fim de levar para a cama uma mulher que paquerava no avião e que lia o livro de Cony. O que ocorreu de fato, só que Maria completava o caso para o amigo às gargalhadas: “acontece que você broxou, Cony!”. Dizia que a caricatura era mais importante que o retrato, e na seqüência arrematava com uma amargurada canção de 1953, ‘Se eu morresse amanhã de manhã’, lançada por Dircinha Batista e regravada por Clara Nunes no especial ‘Brasileiro, Profissão Esperança’. Um homem ambíguo. De quem ainda muitos se lembram.

Meus tempos de criança (samba, 1956) – Ataulfo Alves
O menino Ataulfo teve infância humilde, da qual soube recolher a riqueza dos pequenos gestos, as pequenas luzes que brilham sob o olhar inocente de uma criança. Essa essência, Ataulfo levou para a fase madura de sua vida, e se recordou com alegria e saudade, retratada no estilo dos versos presentes em toda sua obra realizada no Rio de Janeiro, mas com um pé fundo numa Minas interiorana, dolente, toada e rural. “Meus tempos de criança” é uma homenagem a todos que preservam os sons da matriz, “a professorinha que ensinou o bê-a-bá”, as travessuras e o primeiro amor, Mariazinha. “Eu era feliz e não sabia”. Esse arrependimento inevitavelmente tardio crava uma ponta de angústia na canção de Ataulfo Alves, composta em 1956, cobertor macio para todos aqueles de coração aguado.

Por causa de você (samba-canção, 1957) – Dolores Duran e Tom Jobim
“Por causa de você” é a mulher sussurrando ao ouvido de seu amado que ele retorne. É a mulher sussurrando ao ouvido de seu amor que ele nunca mais vá embora, nunca mais deixe murchar as flores da janela que sorriem e cantam somente por causa dele. É a mulher que sem seu homem é só tristeza, amargura, mesmo nas coisas simples que ele tocou. Nas coisas simples que seu coração guardou com carinho e dedicação. É a mulher pedindo a seu homem que ele fique, mostrando que sem ele, ela não existe. A mulher que pede ao amor que ele não fale, não lembre, não chore. Apenas ame. Apenas a ame. O apelo da mulher que só quer ser amada.

Suas mãos (samba-canção, 1958) – Antônio Maria e Pernambuco
Outro parceiro fundamental na obra de Antônio Maria é o conterrâneo conhecido pelo sutil apelido de Pernambuco. Como fundamental se tornou no repertório de todos que apreciam um samba-canção a maravilhosa ‘Suas mãos’, de 1958. A música começa como uma prece, uma busca, procura infinita e inútil do que se perdeu, no caso, as mãos da mulher amada, que um dia em sinal de carinho tocaram a palma do compositor. Palmas imaculadas que ao final do número, na voz de Maysa, Nelson Gonçalves e etc., se servem do banquete argucioso de Antônio Maria, como passarinhos bicando migalhas de pão. Aquela é a fome do simples e belo.

Na cadência do samba (samba, 1962) – Ataulfo Alves e Paulo Gesta
O cantor e compositor Ataulfo Alves era também violonista, cavaquinista e bandolinista, ou seja, um músico de primeira linha. Por tais qualidades inquestionáveis é que ficou em evidência até o fim de sua vida, mesmo com o advento da bossa nova e da jovem guarda em detrimento de seu particular samba, assim chamado pela intimidade que demonstrava nesse trato. Em 1962, compôs uma música com Paulo Gesta, interpretada por Elizeth Cardoso, de nome idêntico à outra que ficaria conhecida como fundo musical do futebol, assim chamada “Na cadência do samba”, em menção à despedida que ele desejava para si. Ficou marcada na memória da música popular brasileira a morosidade arrastada da melodia que encanta os versos alentadores: “Sei que vou morrer, não sei o dia. Levarei saudades da Maria. Sei que vou morrer não sei a hora. Levarei saudades da Aurora. Quero morrer numa batucada de bamba, na cadência bonita de um samba.” A cadência que seu autor deixou para a posteridade, como legado inconteste de sua obra monumental, exposta nas melhores confraternizações e festejos musicais desse país chamado Brasil, rico de lendas para ninguém botar defeito.

Lembranças (samba-canção, 1962) – Raul Sampaio e Benil Santos
Miltinho se envolve com as “Lembranças” de um triste Raul Sampaio ao entoar a parceria do compositor capixaba com Benil Santos, lançada em 1962. “Lembro um olhar, lembro um lugar, teu vulto amado, lembro um sorriso e o paraíso, que tive ao teu lado”.

A triste partida (repente, 1965) – Patativa do Assaré 
O cearense Antonio Gonçalves da Silva, nasceu em Assaré, e ficou conhecido como Patativa de sua cidade. Seguiu a profissão do pai e tornou-se agricultor, mas ficou conhecido como poeta. Com pouca formação escolar, aprendeu mexendo na terra a irrigar as palavras que sentem o coração das pessoas. Principalmente as pessoas do seu nordeste, da sua aldeia inabitada que ele levou ao mundo. No ano em que se iniciava a ditadura no Brasil, o brilho de um monarca deu luz à arte de Patativa. Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, o viu recitar os versos de “A triste partida”, e decidiu que lhe cabiam as harmonias de uma música. Em 1965, como num repente, a caminhada triste e árdua do nordestino em busca dum melhor destino ganhou os ares de todo o país. A seca poesia clara de Patativa impregnava todo o Brasil. Dali em diante, seus livros de poesia poderiam ser lidos ou escutados, ou ainda admirados, por aqueles que o vissem trabalhando ao vento.

Pai Grande (clube da esquina, 1969) – Milton Nascimento 
Ode incontestável à simbologia da paternidade, “Pai Grande”, composta por Milton Nascimento em 1969 carrega muitas das influências do seu “Clube da Esquina”. Além do canto lírico, melódico, a canção perpassa texturas barrocas e rurais, não distendendo a conotação da palavra à questão da origem. De certo tom místico, se no início parece referenciar-se ao avô, por fim este grande pai talvez esteja mais próximo da força criadora da natureza. “Meu pai grande, inda me lembro, e que saudade de você, dizendo: eu já criei seu pai. Hoje vou criar você”. A música foi regravada por Alaíde Costa, no ano de 1976, e interpretada por Milton Nascimento ao lado do parceiro Wagner Tiso em espetáculo realizado na Suíça em 1981. Provas que sua força inda permanece.

Gente humilde (samba-canção, 1970) – Garoto, Vinicius de Moraes e Chico Buarque
A gravação de “Gente humilde” aconteceu informalmente, quase por acaso, como presente a um amigo querido de Garoto, o professor mineiro Valter Souto. Num acetato simples, eternizou-se o momento de inspiração que recaiu divino, com a espontaneidade que acalora os corações de artistas. A cena observada passaria incólume, não tivessem aquelas mãos o poder de restringir às cordas a leveza de um sentimento inalcançado. Afinal o poeta vê a árvore e se encanta por ela, e nos encanta com sua poesia. A mesma árvore que vemos todos os dias. Com auxílio de Vinicius e Moraes e Chico Buarque, a canção abraçou em 1970 versos que Garoto não disse, mas zumbiu.

Quando eu me chamar saudade (samba, 1972) – Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito
A dupla Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito eternizou verdadeiros petardos da poesia musical brasileira. Através das lentes de seus óculos grossos e sua voz rareando a cada novo frasco de inspiração e cachaça, Nelson Cavaquinho soube conferir à morte uma beleza intrínseca. Guilherme de Brito o acompanhou sem o mesmo alarde, mas com total compreensão nessa incessante procura da vida. A música lançada no disco solo de Nelson em 1972, foi composta anos antes pela dupla, e recebeu novos versos, que de início eram: “Eu tenho amigos, enquanto eu viver, eu tenho tudo, enquanto eu merecer, mas amanhã se eu morrer, a maior parte de meus amigos nem vem me ver”. A definitiva versão recebeu os belíssimos: “Sei que amanhã quando eu morrer, os meus amigos vão dizer, que eu tinha um bom coração, alguns até hão de chorar, e querer me homenagear, fazendo de ouro um violão”. O instinto de efemeridade do compositor era delineado nos versos finais da música, em que pedia “flores em vida”. A canção recebeu regravações de Nelson Gonçalves, Nora Ney e Noite Ilustrada, entre muitos outros. Eram os versos de nostalgia de um homem que percebeu o sofrimento e soube transformá-lo em poesia. Por mais que seus dedos belisquem as cordas do instrumento e sua voz não saia como esperada, Nelson Cavaquinho caminha exultante por entre as folhas secas, passando com sua dor, emanando sua luz que já não tem cor, chama-se saudade.

Mucuripe (MPB, 1972) – Fagner e Belchior 
Fagner e Belchior se conheceram em Fortaleza, depois do primeiro sair de Orós e o segundo deixar Sobral. Juntos, ao lado de Rodger Rogério, Ednardo e Ricardo Bezerra formaram o “Pessoal do Ceará”, que se apresentava semanalmente em um programa de rádio. Levando na bagagem as lembranças de sua terra, seguiram roteiros distintos, Fagner indo para Brasília estudar arquitetura e Belchior indo para o Rio de Janeiro estudar medicina. Mas em 1971, no Festival de Música Popular do Centro Universitário de Brasília, Fagner inscreveu uma música que havia feito com o conterrâneo agora distante. “Mucuripe”, destino solitário das jangadas em Fortaleza, tirou o primeiro lugar e atentou os olhares brasileiros para a permanente poesia das águas da canção cearense. Um ano depois, a música foi interpretada por Elis Regina. Com esse êxito, Raimundo Fagner mudou-se para o Rio de Janeiro e Belchior para São Paulo. Além disso, Fagner fez seu próprio registro, na série “Disco de Bolso”, lançada pelo jornal “Pasquim”, com Caetano Veloso cantando no outro lado do compacto “A Volta da Asa Branca”, de Luiz Gonzaga e Zé Dantas. Refletia no canto arraigado de Fagner, a permanente poesia das águas. Da flor fez-se o agasalho. Da vela que ilumina o mar, a esperança de um rapaz novo encantando.

O Cio da Terra (clube da esquina, 1977) – Chico Buarque e Milton Nascimento 
“O Cio da Terra” é uma canção de Chico Buarque e Milton Nascimento, em que se acentuam as características do “Clube da Esquina”, fortemente marcada pelo barroquismo da música mineira e atenta às transformações harmônicas vindas do exterior, em especial os “Beatles”. Lançada em 1977 para integrar o compacto “Primeiro de Maio”, que celebrava o dia do trabalhador e fazia coro ao movimento sindical do ABC paulista liderado por Luiz Inácio Lula da Silva, futuro presidente do Brasil, a música consegue ir além da abordagem ao ofício agrário, por mais que inspirada no canto das mulheres camponesas que colhiam algodão e eram observadas por Milton. O que “O Cio da Terra” conta é o eterno ciclo de renascimento e transformação, do trigo em pão, da cana em mel, e da terra em chão, como na vida do homem, feita de perdas e ganhos. A música foi regravada por Mercedes Sosa, Pena Branca & Xavantinho, e outros.

Rio Antigo (samba, 1979) – Chico Anysio e Nonato Buzar
Craque dos pés à cabeça, desde as sapatilhas da personagem Haroldo, o heterossexual convertido até a touca do empertigado ator Antônio Roberto, Chico Anysio sabia como manusear palavras, imagens, lápis e maquiagem. Nostalgia, esperança e reverência uniram-se umas às outras para formar a música ‘Rio Antigo’, composta no ano de 1979 em parceria com Nonato Buzar, um dos nomes do movimento ‘pilantragem’, estouro na voz de Alcione, a sabiá marrom. Séries de lembranças inserem a sensação de bem estar que as performances do humorista despertava, seja através do riso ou da lágrima. Conhecida também pelo prefixo de ‘Como nos velhos tempos’, evoca o momento onde agora repousa igualmente a seus ídolos e companheiros, a figura do multitalentoso Chico Anysio.

Tempo Rei (MPB, 1984) – Gilberto Gil
É de Gilberto Gil uma das mais cristalinas demonstrações da qualidade subjetiva e da densidade crítica e de consciência que se pode extrair dos ditados populares. O movimento capitaneado na música brasileira por Gil, aliás, ao lado de Caetano Veloso, tinha como uma das metas estabelecer a real valorização da nossa cultura, afinal o “Tropicalismo” estende seu tapete vermelho desde Beatles até Vicente Celestino. “Tempo Rei”, traça um paralelo existencialista, entre a finitude e o que é eterno, o momento presente e o passageiro. Foi lançada em 1994, e começa, sem terminar, um dos mais conhecidos ditados do Brasil. “Água mole/Pedra dura/Tanto bate/Que não restará/Nem pensamento…”. Provas de que a sabedoria popular permanece.

Azul e Amarelo (MPB, 1989) – Cazuza, Lobão e Cartola
“Azul e Amarelo” é outro caso de parceria tripla envolvendo Lobão e Cazuza, embora o outro ‘compositor’ seja, na verdade, um homenageado, e uma das últimas dos dois. Como relata Lobão, “’Azul e Amarelo’ era uma música nitidamente de despedida”. Cazuza recorre às cores de seu guia espiritual no candomblé para dar título à música, conhecido por ser metade menino, metade mulher, como ele diz: “Eu sou cínico, revoltado e menino, mas principalmente muito menino. Sou um edé no candomblé. Sempre que eu vou a um lugar espírita, vem um indiozinho me proteger. Meu anjo da guarda é uma criança”. Na letra, aflora a doçura e singeleza de Cazuza que se diz protegido e crente de “anjos, fadas, gnomos” e outras criaturas envolvidas no som de fantasia. A inclusão de Cartola como um dos parceiros veio por sugestão de Cazuza, que dizia usurpar versos de uma canção do sambista, no caso “Não quero/Não vou/Não quero”, presentes em “Autonomia”. Lobão, nascido no mesmo dia de Cartola, aproveitou a onda de coincidências e o transe mágico do amigo e foi junto. Além do mais, Cartola e Cazuza tinham quase o mesmo nome. O primeiro Angenor, por erro do cartório, o segundo, Agenor. Qual dos dois era o mais errado? Os dois deram certo na música. Cazuza lançou “Azul e Amarelo” no disco “Burguesia” e Lobão em “Sob o Sol de Parador”, ambos em 1989.

Resposta ao Tempo (bossa nova, 1998) – Aldir Blanc e Cristóvão Bastos 
A música “Resposta ao Tempo” concentra uma poesia altamente existencial e reflexiva de Aldir Blanc, aliada à melodia sofisticada de Cristóvão Bastos e à voz de mormaço e profunda de Nana Caymmi. Esse conjunto, por si só, a justifica como obra-prima. Não bastasse isso, essa típica peça de bossa nova, tema de abertura da minissérie “Hilda Furacão em 1998, tem como tema o “tempo”, um dos mais caros ao ser humano, senão o principal responsável por suas dúvidas, esperanças e medos. Por isso, ele adquire a condição de protagonista, numa conversa franca e honesta com o eu lírico, que determina: “no fundo é uma eterna criança, que não soube amadurecer, eu posso, ele não vai poder, me esquecer…”. E sintetiza, uma vez mais, o espírito desta parte da vida da qual sentimos saudade.

*Bônus:

Gracias a la vida (música folclórica, 1966) – Violeta Parra
Com uma inconfundível risada no começo da música folclórica, “Gracias a la vida”, de 1966, Clodovil Hernandes apresenta logo de cara ao público uma de suas facetas mais conhecidas e cobiçadas: a irreverência. Lançada pela autora Violeta Parra no último álbum antes de cometer suicídio, a canção é até hoje uma das latino-americanas mais regravadas de todos os tempos, por nomes como a argentina Mercedes Sosa e a brasileira Elis Regina, consideradas divas e referências do canto em seus países. A versão de Clodovil foi gravada em 2006 para abrir o espetáculo “Eu & Ela”, em que o estilista mais uma vez se aventurava nos palcos como cantor, ator e o que mais fosse necessário. Um artista completo que fazia da qualidade seu único limite. Por isso ele agradecia: “Gracias a la vida/que me ha dado tanto…”.

Vinicius de Moraes poetizou o amor e a saudade

Raphael Vidigal

Imagens: Montagem com fotos de Dolores Duran, Ataulfo Alves, Maysa, Dorival Caymmi e Nana Caymmi, da esquerda para a direita e de cima para baixo; e foto do poeta e compositor Vinicius de Moraes, fonte de arquivo, respectivamente.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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