20 Músicas Especiais de Caetano Veloso

 

*por Raphael Vidigal

“Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo” Caetano Veloso

A primeira palavra dita por Caetano Veloso foi “quem”. Ao menos quando se toma como base sua carreira fonográfica iniciada em 1965, com a edição do compacto simples que traz “Cavaleiro” (da onde se extrai a expressão) em um lado, e “Samba em Paz”, no outro. Hoje, uma licença poética digna da liberdade defendida pelo bardo de Santo Amaro desde o princípio das eras tropicalistas, nos permite dizer que todos sabem quem é ele, chame por Caetano, Caê ou até a abreviação de sobrenome que rendeu título de disco lançado em 1984, Velô. Afinal Caetano é muito, muitos, e tens um coração vagabundo capaz de guardar o mundo em mim. Para expressar essa diversidade escolhemos algumas das nossas canções prediletas deste leonino.

Coração Vagabundo (bossa nova, 1967) – Caetano Veloso
Antes de aderir por completo à Tropicália e instaurar o movimento definitivamente no cenário da música popular brasileira, a referência seminal de Caetano Veloso era João Gilberto. Por isso não é de se espantar que no álbum “Domingo”, lançado em 1967 ao lado de Gal Costa, que perto da época ainda assinava Maria da Graça, a influência estética do propagador mais incensado da bossa nova se faça tão presente. “Coração vagabundo” é um dos melhores exemplos, com sua melodia refinada, simples, seu violão rítmico e a voz macia, suave, quase imperceptível, não fosse pela poesia e sensibilidade que emana com tamanha força dos versos livres de derramamento e concentrados em sua elegância. Caetano narra, assim, mais um caso de amor desfeito, porém novo.

Mamãe Coragem (tropicália, 1968) – Caetano Veloso e Torquato Neto
O álbum “Tropicália ou Panis et Circencis” foi um marco da cultura popular brasileira e do movimento capitaneado, na música, por Caetano Veloso, Tom Zé e Gilberto Gil, nas artes plásticas por Hélio Oiticica, que inventou o nome, no cinema por Glauber Rocha e no teatro por figuras do porte de Augusto Boal e Zé Celso Martinez Corrêa, embora atribuíssem outras nomenclaturas ao que propunham e buscassem certo distanciamento, a partir do cinema novo e do teatro oficina e de arena. Uma das faixas mais incisivas do álbum revelava a um público maior a poética de Torquato Neto, autor da letra cuja melodia é de Caetano Veloso. “Mamãe Coragem”, lançada por Gal Costa, descreve o momento por qual muitos brasileiros até hoje passam: a despedida da família, da mãe, do interior, na busca e crença de melhores oportunidades no sul do país.

É Proibido Proibir (tropicália, 1968) – Caetano Veloso
O projeto tropicalista liderado, no âmbito musical, por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Os Mutantes, e outros, tinha a pretensão literal e ambiciosa de criar uma cultura tipicamente brasileira a partir da mistura e da influência que viriam de todas as partes do mundo, no processo que se considerou chamar de “antropofágico”. Caetano Veloso, sempre um dos mais ousados e inquietos artistas nacionais, enfrentava a crítica tanto da direita, por seu desprezo ao conservadorismo na utilização de vestimentas e gestos tradicionalmente femininos, e da esquerda nacionalista que urrava, entre outras coisas, contra a guitarra elétrica, por considera-la símbolo do imperialismo norte-americano e do pensamento de colônia. Sem dar trela para os limites impostos por qualquer ideologia Caetano apresentou no III Festival Internacional da Canção, em 1968, a polêmica “É Proibido Proibir” que, recebida com vaias e agressões como arremesso de frutas e verduras ganhou o adendo de um irado discurso.

Atrás do Trio Elétrico (frevo, 1969) – Caetano Veloso 
Em 1969, enquanto no carnaval de Salvador o povo cantava e dançava “Atrás do Trio Elétrico”, seu autor vivia no Rio a expectativa de ser libertado da prisão imposta pela ditadura. A libertação aconteceu somente na quarta-feira de cinzas, só que de forma parcial, pois Caetano Veloso e Gilberto Gil passaram a um regime de confinamento na Bahia, seguindo-se o exílio em Londres. Gravada inicialmente num compacto em 1968, com Caetano Veloso acompanhado por um pequeno grupo dirigido por Rogério Duprat, esta marcha-frevo, mais tarde alcunhada de frevo baiano, homenageava o Trio Elétrico de Dodô e Osmar, com a frase inicial que se tornou praticamente um dito popular: “Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu…”.

Chuva, Suor e Cerveja (frevo, 1972) – Caetano Veloso
Com seu projeto tropicalista Caetano Veloso revisitou e explorou os gêneros mais representativos e típicos da cultura nacional brasileira. Entre eles não poderia estar de fora o frevo. Composta em 1972, “Chuva, Suor e Cerveja” é um exemplo dos mais bem acabados da capacidade do compositor em unir instâncias, aparentemente distantes, como a modernidade e a tradição, e o que propõe, na letra desta canção, é a irrestrita liberdade de ser e estar. “Chuva, Suor e Cerveja” é uma música que brada contra toda e qualquer caretice, qualquer tipo de censura, costumes ou moralismo, e conclama para o prazer, à diversão, representados pelos itens líquidos que compõe este cenário, onde não poderia ficar de fora a água que se bebe, que se exala e que se recebe. A chuva aparece como graça, memória, folia e vida. “Acho que a chuva ajuda a gente a se ver…”.

Qualquer Coisa (tropicália, 1975) – Caetano Veloso
De maneira bastante enviesada, como era habitual na tropicália, movimento capitaneado na música por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Os Mutantes, dentre outros, o baiano de Santo Amaro, irmão de Maria Bethânia, presta uma homenagem aos povos árabes que deixaram em terras brasileiras ditados que se acoplaram à linguagem, e se tornaram, pela própria natureza, muito populares. Este recurso é facilmente notado quando Caetano mistura e reinventa frases, partindo do pressuposto do próprio movimento onde sua música está inserida, a tal antropofagia, a formação mestiça de toda a nação brasileira. “Esse papo já ta qualquer coisa, você já ta pra lá de Marrakesh, mexe qualquer coisa dentro doida, já qualquer coisa doida dentro mexe…”.

Um Índio (tropicália, 1976) – Caetano Veloso
Para o tropicalista Caetano Veloso a raiz brasileira e, sobretudo, nordestina, era base de toda a sua experiência artística. Portanto são fortes os traços de mestiçagem negra e indígena em suas composições. A fim de homenageá-las, Caetano compôs, em 1976, o hino “Um Índio”, que mistura o povo nativo do Brasil com imagens interplanetárias. Nesta leitura pop os filhos de Gandhi convivem com heróis do cinema norte-americano como Bruce Lee. No entanto, o que salta aos olhos e emerge desta peça do mestre baiano é a textura embebida em folhagens e gestos úmidos. Lançada com “Os Doces Bárbaros”.

Dom de iludir (samba-canção, 1976) – Caetano Veloso
Caetano Veloso se traveste de mulher para responder ao samba lamentoso de Noel Rosa. É a mulher que se defende das acusações do homem e apela à ele para que a deixe em paz, não mais a olhe, não a procure, não fale com ela. Maria Creuza cantou verso por verso da canção em 1976, com a habitual categoria.

Gente (tropicália, 1977) – Caetano Veloso
Ainda sob o ritmo e a respiração da Tropicália, Caetano Veloso compôs, em 1977, para seu álbum “Bicho”, uma canção mais próxima ao modelo clássico brasileiro. “Gente”, com seu estilo charmoso e dançante, conclama à solidariedade, faz uma ode à beleza humana, e presta homenagem a pessoas admiradas pelo autor, citadas nominalmente: “Marina, Bethânia, Dolores, Renata, Leilinha (…); Rodrigo, Roberto, Moreno, Francisco, Gilberto, João”. “Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”, determina Caetano, em discurso que não poderia estar mais próximo ao de Betinho. Em outros versos, ele volta ao tema: “Gente quer comer, gente quer ser feliz, gente quer respirar ar pelo nariz”. “Gente, espelho da vida, doce mistério”, finaliza Veloso com sabedoria.

Mãe (MPB, 1978) – Caetano Veloso
Dez anos após o lançamento de “Mamãe Coragem”, e novamente pela boca de Gal Costa, o compositor Caetano Veloso, desta feita sozinho, demonstrava a saudade do lar e da figura materna, em que os filhos invariavelmente encontram ou transferem a imagem e expectativa do conforto, aconchego e proteção. Exilado em Londres pela ditadura militar imposta no Brasil a partir de 1964, o compositor experimentava e exprimia a solidão por palavras soltas que quando condensadas constroem um mosaico de desejos e intenções. A imagem de que o filho, mesmo homem feito, permanece criança no coração da mãe, também emerge desta poesia. A música foi regravada pelo próprio Caetano Veloso, o cantor Djavan e, mais tarde, a cantora Cida Moreira, no álbum “A Dama Indigna”. Dona Canô, mãe de Caetano e Maria Bethânia, morreu em 2012, aos 105 anos.

Beleza Pura (tropicália, 1979) – Caetano Veloso 
Caetano Veloso, em 1979, com a sua tropicalista “Beleza Pura” enaltece, em suma, o espírito do universo hippie, através de seu tradicional método de composição não linear. Novamente a figura feminina, representativa do amor, demonstra a soberania do sentimento em relação às posses e conquistas materiais, que, pela própria característica, estará relegada à pobreza, à miséria, ao desaparecimento e ao esquecer. Já o enriquecimento de uma paixão não se pode amarrar nem contar nos dedos. A música foi lançada no álbum “Cinema Transcendental” que continha, entre outras, pérolas do brilho de “Lua de São Jorge”, “Menino do Rio” e “Cajuína”, esta última homenagem a Torquato Neto.

Menino do Rio (MPB, 1980) – Caetano Veloso
Também em 1979, Caetano Veloso foi o primeiro a compor uma canção inspirado em um muso, “Menino do Rio” falava da admiração do cantor pelos dotes físicos de um surfista. Tratava o tema da homossexualidade de maneira lírica e delicada. A canção foi gravada no mesmo ano por Baby Consuelo, mais tarde Baby do Brasil. Além disso, Caetano se cansou de interpretar canções fazendo o eu – lírico feminino, deixando no ar sua condição sexual ambígua.

O Amor (tropicália, 1981) – Vladimir Maiakovski, Ney Costa Santos e Caetano Veloso 
O poeta russo Vladimir Maiakovski foi a inspiração para Caetano Veloso e Ney Costa Santos escreverem, a partir dos versos de “O Amor”, fragmento de “A Propósito Disto”, a canção intitulada com o mesmo nome da obra do autor original. Lançada por Gal Costa em 1981, no álbum e espetáculo “Fantasia”, segue, como se observa, os princípios do movimento tropicalista, de conferir um olhar nacional à luneta lançada para o mundo. De rara sensibilidade, música e poesia receberam interpretação coerente e emocionante por parte da diva do movimento capitaneado por Gil, Tom Zé, o próprio Caetano, Hélio Oiticica, e outros. Entre o que é dito de maior impacto destaca-se o refrão, precedido por “quero acabar de viver o que me cabe, minha vida para que não mais existam amores servis”, até chegar ao auge “ressuscita-me para que ninguém mais tenha de sacrificar-se por uma casa, um buraco (…) e o pai seja pelo menos o Universo, e a mãe seja no mínimo a Terra”. O recado está dado.

Ele me deu um beijo na boca (tropicália, 1982) – Caetano Veloso
A década de 1980 foi sim pródiga em abordar o tema da diversidade sexual, já que o embate com os militares da ditadura no país estava no final, e Caetano Veloso, sempre antenado com sua tropicália, também surfou na onda. Apesar de exibir uma imagem híbrida desde o início de seu aparecimento no cenário nacional foi em 1982, no disco “Cores, Nomes”, que Caetano lançou uma das músicas mais explícitas referentes ao tema; claro à sua maneira. Sem abandonar o mundo de interferências a que alguns consideravam hermetismo em suas canções, o músico já dava seu recado logo no título. “Ele me deu um beijo na boca” acompanhava o discurso endossado pela foto da contracapa do álbum, em que Veloso aparece beijando um homem. Mais uma excelente contribuição de um dos artistas que mais exaltaram as liberdades individuais no país. João Donato, Djavan e Rolling Stones são alguns dos citados na música.

Podres Poderes (tropicália, 1984) – Caetano Veloso
Embora aposte no rock que invadia a cena nacional desde o estouro da Blitz em 1982, Caetano Veloso conserva em suas composições uma assinatura muito peculiar, sendo pouco efetivo o rótulo do ritmo, e mais abrangente o do movimento do qual foi um dos líderes musicais, a tropicália. Com dialética e poesia que buscam emoldurar os acontecimentos políticos do país, Caetano adota um discurso incisivo, sem abrir mão dos jogos de palavras e da maleabilidade de sentidos que sempre o encantaram. “Podres Poderes” abre fogo contra o cenário atual de 1984, sem deixar de se reportar ao passado que interfere neste futuro, para se ter a consciência de que o mesmo acontecerá ao presente. “Será que nunca faremos senão confirmar/A incompetência da América católica/Que sempre precisará de ridículos tiranos?”. E avalia uma saída nas artes de Hermeto Pascoal e Tom Jobim.

Eu sou neguinha? (rap, 1987) – Caetano Veloso 
Sempre provocador e inventivo, desde os tempos da “Tropicália”, Caetano Veloso, que nunca para quieto, compôs, através do rap, mais um manifesto contra as desigualdades sociais no Brasil e no mundo. Lançada em 1987 a música “Eu sou neguinha?” também provoca no sentido moralista, ao ter Caetano interpretando uma voz feminina. Feminina, negra, pobre, excluída. “Bunda de mulata, muque de peão”, afirma num dos versos mais contundentes. Experimental em sua forma e conteúdo, a música busca esgarçar os limites que se impõe nas sociedades arraigadas em preconceitos. É uma ode ao ser humano, à vida e ao respeito inalienável a seu corpo e alma. Foi regravada por Cássia Eller.

A Terceira Margem do Rio (tropicália, 1991) – Caetano Veloso e Milton Nascimento
Caetano Veloso e Milton Nascimento se inspiraram em conto de Guimarães Rosa para compor a canção “A Terceira Margem do Rio”, do qual também extraíram o título. Com verve tropicalista e lançada no inventivo álbum “Circuladô”, a música mantém princípios de inovação estética em sua melodia e no difuso caráter harmônico. A letra embalsamada de poesia da canção procura acompanhar os movimentos rítmicos, baseados, justamente, no tal movimento do rio. No conto em questão, um pai de família abandona os seus para permanecer no meio do rio, no que seria a sua “terceira margem”, não indo e nem voltando, mas permanecendo. E como Caetano reafirma o pai “não diz”, é “puro silêncio”, referência que deve servir também à imagem de Deus.

Alexandre (tropicália, 1997) – Caetano Veloso
Ao criar a personagem Adriana Partimpim, Calcanhotto também se deu a liberdade de recriar canções para o universo, à priori, infantil do seu espetáculo. Como, por exemplo, a interpretação da música “Alexandre”, lançada sob o espectro tropicalista do disco “Livro”, de Caetano Veloso, em 1997. Nesse número, a canção é de tal maneira transformada em brincadeira infantil que passam despercebidos aos ouvidos dos pais mais aflitos com uma possível homossexualidade de seus filhos, os versos que falam sobre os amores gays do grande guerreiro. A moça não perdeu mesmo a ousadia, até quando canta para a criançada, em algum fundo musical de seus óculos verde e rosa de papelão ela ainda guarda leões que solta na rua, gatinhas manhosas que guarda em casa. Ao lamber sua guitarra cor-de-rosa, em uma verdadeira encarnação feminina de um Jimi Hendrix com filhos para criar, ela traz para as crianças de todas as idades um espaço lúdico para criar, brincar, imaginar, sonhar.

*Bônus duplo

Amanhã (balada, 1977) – Guilherme Arantes 
No mesmo ano de 1977, Guilherme Arantes compôs uma balada de espírito hippie, mas, sobretudo, um hino de esperança. O próprio título já entregava a proposta. “Amanhã”, retrata a incansável luta, a busca eterna, por um destino melhor e mais confortável do que o oferecido pelo momento presente, tudo por uma lente otimista, leve e confiante. “Amanhã, será um lindo dia, da mais louca alegria, que se possa imaginar”, relata Guilherme nos versos da canção lançada por ele mesmo no álbum “Ronda Noturna”. A música foi regravada por Caetano Veloso, em registro impecável, acompanhado apenas por um violão. Betinho era acima de tudo um brasileiro cheio de esperança e amor. “Amanhã, a luminosidade, alheia a qualquer vontade, há de imperar! Há de imperar!”.

Verdura (tropicália, 1981) – Paulo Leminski
Após ser derrotado num concurso de poesias, onde levou somente a “menção honrosa”, Paulo Leminski ganhou de presente de uns amigos, em 1976, a edição de seu primeiro livro, numa espécie de folhetos em que seus versos eram combinados a fotografias: “quarenta clics em curitiba”. Esse início já prenuncia o seu papel de vanguarda e avesso às “autoridades acadêmicas”. O primeiro BOOM na carreira de Leminski, no entanto, aconteceu em 1981, através da música popular e não dos livros. Caetano Veloso, tropicalista, encantado com sua música “Verdura”, a registrou no disco “Outras palavras”. A canção versa, entre o lirismo e o tom cínico, sobre a imposição sociocultural dos Estados Unidos no Brasil.

Fotos: Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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