13 músicas de Wandi Doratiotto para premeditar o breque do nosso Brasil

*por Raphael Vidigal

“A comida é boa para o espírito e para os nervos. A coragem vem da barriga – tudo mais é desespero.” Charles Bukowski

Numa entrevista ao programa “Provocações”, em 2005, Antônio Abujamra (1932-2015) assim o apresenta: “Apesar de músico com diploma de universitário, ele teve de ganhar a vida como apresentador e ator e não ficou rico”. A verdade é que Wandi Doratiotto já era o tal artista multimídia antes mesmo do termo ser inventado. Integrante dos grupos Premeditando o Breque, Miolo Mole e do Três É Bom, o homem que esteve à frente do programa “Bem Brasil” durante 17 anos segue inquieto, atuando nas onze e ainda organizando a torcida. Ao longo de uma intensa carreira, recheada de humor e sagacidade, Wandi compôs canções que nos auxiliam a premeditar o breque deste Brasil.

“Empada Molotov” (samba de breque, 1980) – Wandi Doratiotto, Mário Manga, Claus Petersen, Marcelo Galbetti e Osvaldo Luiz
O grupo criado por Wandi Doratiotto, Mário Mango, Claus Petersen, Marcelo Galbetti e Osvaldo Luiz ainda atendia pelo nome de Premeditando o Breque quando colocou na praça um EP com duas faixas, entre elas a saborosa – e, sob certo aspecto, indigesta – “Empada Molotov”, em 1980. Ali, o futuro do Premê já se delineava a partir desse samba-breque. “Acho que ajudamos a tirar o peso da grande música popular brasileira, cheia de geniais compositores que a elevaram a uma altura respeitável. Arejamos um pouco o panorama. Mas é bom lembrar que a música brasileira, desde Noel Rosa, Sinhô e companhia, sempre teve muito humor. Não temos a pretensão de ditar nenhuma norma ou caminho”, avalia Wandi. A letra se vale de figuras típicas no imaginário popular.

“Conflito de Gerações” (vanguarda, 1981) – Wandi Doratiotto
Lançada no primeiro álbum da trupe, “Premeditando o Breque”, de 1981, que apresentava uma luta de boxe na capa, a música “Conflito de Gerações”, de Wandi Doratiotto, é um autêntico cartão de visitas, e já mostra todas as fichas do conjunto. A melodia começa como um blues e depois se transforma em um bolero, investindo na mistura de ritmos e gêneros musicais que marcaria o grupo, além da letra recheada de uma fina ironia, que coloca em cheque múltiplas questões: desde a relação entre pai e filho até a estrutura do mercado de trabalho em um sistema capitalista. O diálogo também abre espaço para outra referência importante no trabalho do Premê: a dramaturgia e a ligação umbilical com as artes dramáticas do teatro. No palco, eles eram o espetáculo.

“Gosto Também Se Discute” (vanguarda, 1981) – Wandi Doratiotto
“Venho de uma família muito musical e engraçada, aquela coisa de descendentes italianos, com um pé no interior. Admiro profundamente Adoniran Barbosa, que tinha os olhos e ouvidos voltados para a rua. Hoje, somente com humor dá para aguentar as bizarrices que nos cercam. É uma maneira muito eficiente de não enlouquecer e não ficar com o dedo em riste na cara de ninguém”, afirma Wandi Doratiotto, diante de um Brasil que se encalacrou nos últimos anos. A música “Gosto Também Se Discute”, lançada em 1981, parte de um ambiente familiar a fim de promover a diversidade de opiniões, algo cada vez mais caro em cenários aonde figuras autoritárias ascendem ao poder.

“O Destino Assim O Quis [O Lencinho]” (valsa, 1982) – Wandi Doratiotto
Ao lado de nomes como Itamar Assumpção, Luiz Tatit, Eliete Negreiros e Tetê Espíndola, o Premê fez parte da chamada Vanguarda Paulista. A gênese do movimento, de propor uma nova linguagem para o cancioneiro tupiniquim, deu vazão a uma pretensão no trabalho do Premê: aliar o canto falado e o experimentalismo formal das melodias a um humor popular. Lançada no Festival MPB Shell de 1982, “O Destino Assim O Quis”, também chamada de “O Lencinho”, revela uma das qualidades do grupo. Ao criar um pastiche das antigas valsas, a ironia soa moderna e ganha frescor. A letra tem das melhores sacadas de todas: “Antes viver só do que viver sozinho”, lamenta o eu lírico ao comentar o fim do romance com Isabel de Lourdes Souza Admetirdes da Fonseca e Silva de Leão Monteiro, sendo que ele atende somente por Zé.

“Lava Rápido” (vanguarda, 1983) – Wandi Doratiotto
“Como fizemos escola de música, tomamos contato com a vanguarda europeia e outros experimentos que rolavam no final dos anos 70, início dos 80. Tentamos colocar esses sinais na nossa estética, sempre atentos à história da nossa música brasileira como pano de fundo, sobretudo na criação de humor. Acho que os trabalhos com mais sinais claros do que chamamos de vanguarda estão na música do Arrigo Barnabé. Termos conquistado o segundo lugar do Festival da TV Cultura de 1979, onde Arrigo pegou o primeiro, foi muito emblemático. Deu um impulso e confiança grande para todos nós”, diz Wandi Doratiotto. Em 1983, o Premê lançou a irreverente e atualíssima “Lava Rápido”.

“São Paulo, São Paulo” (foxtrote, 1983) – Wandi Doratiotto, Mário Manga, Claus Petersen, Marcelo Galbetti e Osvaldo Luiz
Segundo colocado no Festival Universitário da TV Cultura em 1979, com a música “Brigando na Lua”, o Premê nunca foi um conjunto de sucessos populares, embora tenha tocado até em novela da TV Globo, com “São Paulo, São Paulo”, paródia para “New York, New York”, sucesso imorredouro de Frank Sinatra. O fato de ter sido desbancado no referido festival da TV Cultura para “Diversões Eletrônicas”, de Arrigo Barnabé, esclarece o lugar que a trupe ocupava na música brasileira. “A chamada Vanguarda Paulista foi muito útil pra gente relaxar e ganhar confiança. É muito difícil encarar uma profissão de músico popular num país que já tem Chico Buarque, Gilberto Gil, Noel Rosa, Assis Valente, Dorival Caymmi, Tom Jobim e etc.”, avalia Wandi Doratiotto.

“Bem Brasil” (vanguarda, 1985) – Wandi Doratiotto, Mário Manga, Claus Petersen, Marcelo Galbetti e Osvaldo Luiz
A música começa com cantos gregorianos, antes de adentrar no terreiro do samba-enredo, indo do sagrado ao profano e procurando sugerir uma síntese do Brasil, esse país de contrastes e contradições. Lançada em 1985, “Bem Brasil” contou com a participação especial de Caetano Veloso, em disco, intitulado “O Melhor dos Iguais”, produzido por Lulu Santos, que trouxe uma das melhores capas da história do Premê, com uma série de fósforos, cotonetes, grampos e palitos enfileirados. De quebra, Scarlet Moon, casada com Lulu, dava o ar da graça no “Melô da Economia”. Posteriormente, Wandi apresentaria um programa homônimo na TV Brasil com grande sucesso. O “Bem Brasil” recebia artistas de variados gêneros, e Wandi anunciava: “Palco!”.

“Império dos Sentidos” (vanguarda, 1986) – Wandi Doratiotto
O filme japonês “O Império dos Sentidos”, de 1976, foi tão marcante, com sua mistura crua de erotismo e violência, que inspirou, apenas na música brasileira, canções de personagens tão distintos quanto Amado Batista, Fausto Fawcett e, claro, o Premê, sob a pena de Wandi Doratiotto. A música, lançada em 1986, traz aquele humor cáustico do conjunto e revela o ridículo das situações dramáticas. “Com os experimentos da Vanguarda Paulista, conseguimos um caminho ligeiramente diferenciado e fomos em frente. É claro que a Tropicália e os Mutantes eram uma referência espetacular, mas conseguimos nos encaixar, à nossa maneira”, avalia Wandi. A música saiu no LP “Grande Coisa”.

“Grandes Membros” (samba-enredo, 1991) – Wandi Doratiotto
Ao encerrarem as atividades, tanto o Rumo quanto o Premê, os principais grupos da chamada Vanguarda Paulista, colocaram na praça álbuns gravados ao vivo, e experimentaram com êxito o formato. Antes, em 1991, o Premê lançou “Alegria dos Homens”, em que se destacava o irreverente samba-enredo batizado de “Grandes Membros”, que seguiria com Wandi Doratiotto em sua carreira-solo. Ali, ao invés de saudar personagens da música popular, como de hábito, ele provoca uma inversão e leva o caminho à música erudita, sem dispensar, claro, o sempre presente bom-humor. Desfilam nessa passarela nomes como Beethoven, Mozart, Strauss, Bach, Debussy e Ravel.

“Dostoiévski” (choro, 2007) – Wandi Doratiotto
“Quando eu era criança, por volta dos 5 anos, meu pai me levava para passear pelo bairro da Lapa, onde morávamos, no Rio, e eu via e ouvia muita gente tocando. Tinha orquestra, um cavaquinhista muito bom, o Lívio, que tocava os choros consagrados, um sanfoneiro, o Bento, que era um arraso! Minha mãe cantava, meu pai tocava cavaco e violão, meu avô tocava violino, dois dos meus tios tinham uma dupla, era um delírio! Em termos musicais, minhas influências são todas aquelas de que me lembrei até agora. Quanto às letras, gosto de lançar alguns temas inusuais, como Dostoiévski e Nietzsche, e de fazer críticas de costumes. Você pode falar de qualquer assunto, é só conseguir uma boa síntese que dá certo”, observa Wandi Doratiotto. O choro “Dostoiévski”, lançado no álbum “Pronto!”, de 2007, revolve todas essas forças.

“Neném” (samba, 2007) – Wandi Doratiotto
Com uma levada pra cima, alto-astral, o samba “Neném” tem um daqueles irresistíveis refrãos, que não esconde o pendor romântico. “Você bem sabe que o quanto eu te amo, neném/ Gera energia que dá pra ir na lua de trem”, declara-se Wandi Doratiotto. A faixa era a penúltima do álbum “Pronto!”, de 2007. Durante um período, Wandi estaria bastante dedicado a seu trabalho de ator, só voltando aos estúdios uma década mais tarde, com o trio Miolo Mole. “Quando adulto, depois de assistir a muitas peças fantásticas, fui me interessando por teatro. Já no início dos anos 80, o (cineasta) Fernando Meirelles, que era fã do Premê e ia nos ver sempre, me convidou para fazer um comercial qualquer na produtora dele. Surgiram os filmes da Brastemp, e não parei mais de me divertir como ator. Tá tudo junto e misturado, sou geminiano”.

“Fio da Navalha” (chorinho, 2007) – Wandi Doratiotto
“O Brasil parece liberal nos costumes, muito em função do Carnaval e das praias, mas é cosmético, somos um povo conservador e careta. Agora, fomos ao paroxismo com uma gente que está nos atrasando em um século, passando um trator em cima do esforço de tantos anos para sairmos das trevas. Vai passar, mas algumas coisas serão irreversíveis, como o desmatamento e questões com a sexualidade. Essa tática diversionista para tirar o foco dos problemas reais é muito perigosa”, analisa Wandi Doratiotto. Mas, como nos encoraja o verso de “Fio da Navalha”, chorinho que abria espaço para o blues, lançado em 2007, no disco “Pronto!”: “Lá no fundo algo me diz/ Que serei feliz”.

“Casa de Massagem” (vanguarda, 2019) – Wandi Doratiotto, Mário Manga, Claus Petersen, Marcelo Galbetti e Osvaldo Luiz
Censurada nos anos 80, a música “Casa de Massagem” surge em duas versões. A mais antiga traz o subtítulo “Quando Eles Eram Pobres”. Registrada em 2019, com o complemento “Depois Que Perderam Tudo: Um Plano”, a segunda versão inclui uma pergunta irônica na boca do narrador: “Tem golden shower lá?”, questiona. Esse espírito irreverente e debochado marca a irregular carreira do Premê, grupo que nos primórdios era conhecido como Premeditando o Breque e que finalmente teve a sua obra relançada em um box com sete álbuns, entre eles “Como Vencer na Vida Fazendo Música Estranha: Volume VII”, onde aparecem as duas gravações citadas. Um luxo para o Brasil.

Ouça a playlist completa:

Foto: YouTube/Reprodução.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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