*por Raphael Vidigal
“Ao compasso da cadência
Do brotar das estrelas até a meia-luz
Da meia-luz até a meia-luz
Incessante a cadência” Ezra Pound
Jair Rodrigues colocou de cabeça pra baixo e jogou para cima a música brasileira como no movimento das mãos que embalam o rap. Uma invenção tão faceira quanto a mania nunca abandonada de plantar bananeira em pleno palco, ou onde quer que fosse chamado para se apresentar. O “Cachorrão”, como era conhecido pelos mais íntimos por questões que escapam ao domínio da figura pública, emendou uma coleção de sucessos desde o princípio da carreira. Alcançou o auge de maneira tão instantânea que em pouco tempo já cantava com Elis Regina, consolidava ao mundo o talento de Geraldo Vandré numa “Disparada”, vencia aquele Festival e cativava a plateia com uma nova ordem. A ordem de Jair Rodrigues, onde só a alegria era permitida e a tristeza só entrava em letra de samba.
O Morro Não Tem Vez (samba, 1964) – Tom Jobim e Vinicius de Moraes
Natural de Igarapava, no interior de São Paulo, Jair Rodrigues foi uma criança que desde os primeiros anos já aprontava das suas, cantando na igreja hinos sacros e prenunciando o futuro que estava por vir. Depois de trabalhar de engraxate, mecânico, servente de pedreiro e ajudante de alfaiate, entre outras profissões, a oportunidade apareceu quando ele já morava na capital. Pode-se dizer que Jair era figurinha carimbada nos programas de calouros quando ganhou o primeiro lugar na disputa da Rádio Cultura. Daí passou a se apresentar como crooner em casas noturnas. Quando finalmente chegou ao disco, em 1964, depois de alguns compactos, ganhou de presente uma composição do poeta Vinicius de Moraes e do maestro Tom Jobim. “O Morro Não Tem Vez”, samba de andamento diferenciado, foi lançado no álbum “O Samba Como Ele É”, mas só alcançou reconhecimento quando Jair Rodrigues o cantou em dueto com Elis Regina no LP “Dois Na Bossa”, de 1965, acompanhados pelo Jongo Trio num pot-pourri que reunia ainda “Feio Não É Bonito” (de Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri), “Samba do Carioca” (de Lyra e Vinicius de Moraes), “Este Mundo É Meu” (de Sérgio Ricardo e Ruy Guerra), “A Felicidade” (de Tom Jobim e Vinicius) entre outros sucessos!
Deixa Isso Pra Lá (samba rap, 1964) – Alberto Paz e Edson Menezes
A invenção do gesto que consolidou o samba rap “Deixa Isso Pra Lá” como um dos maiores sucessos da música brasileira em todos os tempos foi repetidas vezes contada por seu inventor como algo espontâneo, despretensioso, que ele imaginou fazer na hora em razão do suingue e da parte falada da canção, fato que determinou sua associação ao ritmo que estava por surgir. Embora muitos vejam algo malicioso no movimento, inclusive a mãe do autor Jair Rodrigues, que segundo o próprio o repreendia por essas “bobageiras”, o certo é que a música de Alberto Paz e Edson Menezes alcançou um patamar que não seria possível não fosse a intervenção do cantor que neste, como em muitos casos em que se tem um intérprete de talento, praticamente tornou-se dono da canção ao acrescentar ingredientes tão inusitados quanto de ímpar criatividade. “Deixa isso pra lá/Vem pra cá/O que é que tem?/Eu não estou fazendo nada/Você também/Faz mal bater um papo assim gostoso com alguém?” é hoje quase um dito popular!
Disparada (moda de viola, 1966) – Geraldo Vandré e Theo de Barros
Ao substituir Baden Powell às pressas num show em São Paulo, Jair Rodrigues conheceu Elis Regina e iniciou uma parceria que se estendeu para o programa da Record “O Fino da Bossa”, e três discos gravados com muito sucesso, “Dois Na Bossa” volumes 1, 2 e 3. No ano seguinte, em 1966, no auge da popularidade, Jair foi convidado por Geraldo Vandré e Theo de Barros para defender a parceria dos dois no Festival da Canção daquele ano. Com uma temática rústica e engajada, segundo os próprios autores centrada “no folclore da região centro-sul do Brasil e nas raízes da catira do chapéu de couro”, a moda de viola “Disparada” entusiasmou a plateia que bradou empolgada versos direcionados de maneira enviesada contra a ditadura. Para garantir maior rusticidade à apresentação o percussionista Airto Moreira utilizou uma queixada de burro como instrumento. A interpretação lancinante de Jair Rodrigues contribuiu para elevar “Disparada” ao primeiro lugar, empatada com “A Banda” de Chique Buarque, aclamada pelo júri, mas menos querida pela plateia.
Tristeza (samba, 1966) – Niltinho e Haroldo Lobo
Não é por acaso que muitos sambas cantados por Jair Rodrigues pipocam na boca do povo com a naturalidade de um cafezinho com rapadura. Quem nunca se pegou repetindo os versos “Tristeza/Por favor, vá embora/Minha alma que chora/Está vendo o meu fim”? De autoria de Haroldo Lobo e Niltinho, um consagrado e outro iniciante, esta boa mistura deu a seu autor primeiro o último sucesso, já póstumo, pois Haroldo faleceu em 1965 e a música estourou no carnaval de 1966, inclusive vencendo o desfile, e a seu autor segundo uma marca para toda vida, pois a partir deste feito Niltinho passou a ser conhecido como Niltinho Tristeza, em razão do título da canção. Gravada no segundo número da coleção “Dois Na Bossa” o registro ao vivo de Jair no programa que comandava ao lado de Elis Regina demonstra todo vigor e entusiasmo com que o cantor era capaz de interpretar uma temática triste, sem, no entanto, perder a força de sua mensagem, pelo contrário, ela era então reforçada. Como se não bastasse “Tristeza” foi regravada por Norman Gimbel nos Estados Unidos, na versão em inglês que se chamou “Goodbye Sadness”, entre muitos outros registros, mas a eternizada foi sem dúvida a de Jair Rodrigues.
Triste Madrugada (samba, 1967) – Jorge Costa
A marca de Jair Rodrigues era a alegria. Quando isso não era possível na letra lá estava ela no esfuziante acompanhamento, como no caso de “Triste Madrugada”, um samba de Jorge Costa lançado pelo intérprete em 1967 com muito sucesso. A essa altura Jair excursionava com Elis Regina e o Zimbo Trio por Portugal, Argentina, Angola e Uruguai, conhecia o mundo, mas não abandonava as raízes brasileiras nem o coração que na “Triste madrugada foi aquela/Que eu perdi meu violão/Não fiz serenata pra ela/E nem cantei uma linda canção”…
Casa de bamba (samba, 1969) – Martinho da Vila
Martinho da Vila havia sido revelado para o grande público um ano antes, em 1968, ao cantar, no Festival da Canção daquele ano o partido-alto “Menina moça”. No entanto, poucos números da carreira do autor se comparam ao êxito de “Casa de bamba”, registrada por Jair Rodrigues e Martinho da Vila no mesmo ano, em 1969. Jair revelou a pérola em seu LP “Jair de Todos os Sambas”, e pela vida inteira repetiu a canção em shows, sempre com o mesmo sucesso e aclamação do público, no compasso da malemolência que pedia a letra. “Na minha casa/Todo mundo é bamba/Todo mundo bebe/Todo mundo samba”…
Mangueira, minha madrinha querida [Tengo-Tengo] (música de carnaval, 1972) – Zuzuca
Em 1971 Jair Rodrigues excursionou com o grupo “Os Originais do Samba”, que revelou o humorista Mussum, por países como Suécia, França e Estados Unidos. No ano seguinte, em 1972, estourou com um novo sucesso. “Mangueira, minha madrinha querida” ficou mais conhecida pela onomatopeia de seu ritmo dolente que era repetida no início dos versos, “Tengo-Tengo”, de autoria de Zuzuca, é uma música tipicamente carnavalesca que exalta, claro, a escola de samba de Cartola, Mussum, Nelson Cavaquinho, e outros tantos bambas! “Ô ô ô ô meu senhor/Foi Mangueira/Foi Mangueira/Estação Primeira que me batizou!”. Curiosamente a música foi tema da escola de samba do Salgueiro, também citado nos versos, e repetiu o êxito do ano anterior com “Festa para um rei negro”, também de Zuzuca e defendida por Jair Rodrigues.
Orgulho de um sambista (samba, 1973) – Gilson de Souza
Gilson de Souza é um desses autores de samba cuja importância para a música brasileira merece ser reavaliada. Basta dizer que são dele sucessos como “Pôxa”, recentemente redescoberto por Zeca Pagodinho, e “Orgulho de um sambista”, lançado em 1973 por Jair Rodrigues. A letra exalta uma das qualidades que são sublinhadas no canto seguro e firme de Jair, em meio a desavenças amorosas, o orgulho de um dos ritmos inaugurais do Brasil.
O importante é ser fevereiro (samba, 1973) – Wando e Nilo Amaro
Jair Rodrigues arriscou-se poucas vezes como compositor. Numa dessas invocou a parceria do cantor Wando, em “Se Deus quiser”, lançada em 1972, de ambos. No ano seguinte, porém, preferiu registrar uma canção em que só se metia a soltar voz, com a categoria característica. Composta por Nilo Amaro e Wando, “O importante é ser fevereiro” foi outro grande sucesso de Jair em 1973, e dava provas de que para ele não existiam barreiras quanto à boa música. Embora sempre alinhado ao samba não se fazia de rogado quando percebia algo de interessante em outros ritmos, e no futuro se apresentaria com nomes de várias vertentes, como Ivete Sangalo, Chitãozinho & Xororó, entre outros, levando a bandeira da boa convivência, do carisma e da comunhão da arte. Para ele valia a festa e o carnaval!
Vai, meu samba (samba, 1975) – Ari do Cavaco e Otacílio de Sousa
Em 1975 Jair Rodrigues cantou no Teatro Olympia, em Paris, e registrou na ocasião um disco ao vivo. No mesmo ano gravou “Vai, meu samba”, de Ari do Cavaco e Otacílio de Sousa, outro êxito imediato. Durante a extensa carreira registrou oferendas às serestas e aos baluartes da canção brasileira. Não foi um artista de poucos, foi um artista plural, sem limites, do povo, uma criança que só obedecia à intuição musical. É por isso que o samba vai, o rap vai, a seresta vai, o carnaval vai a tocar o coração das pessoas. E Jair fica.
Lido na rádio Itatiaia por Acir Antão em 11/05/2014.
7 Comentários
O cara de São Paulo ,a cara do Brasil ! Salve o seu canto !
Para curtir, e matar as saudades…
Muito bom!
o eterno Jair Rodrigues
grande perda saudades
Muito bom!
Boa compilação do Raphael Vidigal