10 músicas brasileiras para as mães

“minha mãe dizia

– ferve, água!
– frita, ovo!
– pinga, pia!

e tudo obedecia” Paulo Leminski

Ao contrário do que se costuma dizer de outras espécies, mãe não é tudo igual, e muito menos muda apenas de endereço. Na música brasileira o referido tema já foi tratado de diversas maneiras, do cômico ao dramático, da homenagem à acusação. Até Paulo Francis se intrometeu na história para afirmar que uma das mais célebres composições nacionais estende-se a um número incalculável de seres vivos. Caetano Veloso, Cazuza, Adoniran Barbosa, Chico César, Renato Russo também deram o seu palpite, que invariavelmente ganhou ressonância nas interpretações de Cássia Eller, Ângela Maria, Agnaldo Timóteo, Demônios da Garoa, e outros. Porquê mãe é mãe, inclusive a do juiz.

Mamãe eu quero mamar (marchinha, 1937) – Jararaca e Vicente Paiva
Não foi sem razão que o jornalista Paulo Francis vaticinou que “Mamãe eu quero” é o hino dos mamíferos. A marchinha, composta por Jararaca, da famosa dupla com Ratinho, foi gravada no ano de 1937, pelo próprio autor, que em gratidão ao arranjador Vicente Paiva, responsável por permitir o registro da música, o colocou como parceiro. Esta gravação histórica conta com a participação de Almirante num inusitado diálogo com Jararaca, na introdução, e o coro composto por nomes como Ciro Monteiro e Odete Amaral. Mais tarde, a música alcançaria solo americano na voz de Carmen Miranda. Também foi registrada, no Brasil, por Silvio Caldas, Pixinguinha e Wilson Simonal, entre outros. A indisfarçável malícia da música e os trocadilhos cheios de simplicidade colocaram a música na boca do povo. E o que mais viesse! “Mamãe eu quero mamar, dá chupeta…”.

Mãe, eu juro (samba, 1957) – Adoniran Barbosa e Marques Filho
É interessante que a composição “Mãe, eu juro”, de 1957, tenha em seu registro oficial o nome de dois desconhecidos da música popular brasileira. Peteleco e Marques Filho eram, na verdade, Adoniran Barbosa e Noite Ilustrada. Acontece que o primeiro tinha por hábito e brincadeira, a certa medida da carreira, registrar canções em nome de seu cachorrinho, e o segundo era um então iniciante que não adotara ainda o nome pelo qual ficaria conhecido como o cantor dos sucessos “Volta por Cima” e “Leva meu samba”, entre outros. Nesta composição a mãe aparece como confidente de um relacionamento malsucedido. A filha promete não mais insistir no caso. Além disso o samba revela o ambiente de violência doméstica e o machismo já tão presente àquela época. Foi lançada por Neyde Fraga e regravada pela cantora Célia, além do próprio Adoniran Barbosa.

Mamãe (bolero, 1959) – Herivelto Martins e David Nasser
O jornalista David Nasser e o compositor e intérprete do Trio de Ouro, Herivelto Martins, compuseram juntos um sem número de canções de sucesso de cunho afetivo. A maioria delas, no entanto, enveredava para o lado dos amores desfeitos, das paixões que não deram certo, e por aí vai, especialmente inspiradas na relação de Herivelto Martins com a cantora Dalva de Oliveira. Mas em 1959 os dois compuseram um bolero em elegia às mães, que pela simplicidade e descrição dos costumes daquela época, rapidamente mostrou seu poder de identificação com uma expressiva parcela do público. Tudo isso sublinhado pela interpretação magnífica e passional de Ângela Maria. Mais tarde a música seria regravada em dueto com Agnaldo Timóteo, também versado em canções para homenagear as mães. “Ela é a dona de tudo, é a rainha do lar…”.

Trem das Onze (samba, 1965) – Adoniran Barbosa
Escrita em 1965 por Adoniran Barbosa e famosa na interpretação peculiar do grupo “Demônios da Garoa”, a música “Trem das Onze” já foi eleita aquela de maior identificação popular com os moradores da cidade de São Paulo. Um detalhe que não escapa a nenhum ouvinte deste clássico da canção brasileira, é a menção à mãe do protagonista. Tudo porque é ela o real motivo para que o encontro com a namorada tenha que ser interrompido. O que também explica a forte ligação dos paulistas com a música, afinal, assim como Adoniran, muitos são descendentes de italianos, e todos sabem o papel e a relevância da mãe nesta cultura. O que há de mais especial na letra, no entanto, é que este dilema ganha contornos cômicos, e não dramáticos, na maneira subliminar em que Adoniran era craque. Foi regravada por Gal Costa, Ivete Sangalo e Caetano, etc.

Mamãe Coragem (tropicália, 1968) – Caetano Veloso e Torquato Neto
O álbum “Tropicália ou Panis et Circencis” foi um marco da cultura popular brasileira e do movimento capitaneado, na música, por Caetano Veloso, Tom Zé e Gilberto Gil, nas artes plásticas por Hélio Oiticica, que inventou o nome, no cinema por Glauber Rocha e no teatro por figuras do porte de Augusto Boal e Zé Celso Martinez Corrêa, embora atribuíssem outras nomenclaturas ao que propunham e buscassem certo distanciamento, a partir do cinema novo e do teatro oficina e de arena. Uma das faixas mais incisivas do álbum revelava a um público maior a poética de Torquato Neto, autor da letra cuja melodia é de Caetano Veloso. “Mamãe Coragem”, lançada por Gal Costa, descreve o momento por qual muitos brasileiros até hoje passam: a despedida da família, da mãe, do interior, na busca e crença de melhores oportunidades no sul do país.

Mãe (MPB, 1978) – Caetano Veloso
Dez anos após o lançamento de “Mamãe Coragem”, e novamente pela boca de Gal Costa, o compositor Caetano Veloso, desta feita sozinho, demonstrava a saudade do lar e da figura materna, em que os filhos invariavelmente encontram ou transferem a imagem e expectativa do conforto, aconchego e proteção. Exilado em Londres pela ditadura militar imposta no Brasil a partir de 1964, o compositor experimentava e exprimia a solidão por palavras soltas que quando condensadas constroem um mosaico de desejos e intenções. A imagem de que o filho, mesmo homem feito, permanece criança no coração da mãe, também emerge desta poesia. A música foi regravada pelo próprio Caetano Veloso, o cantor Djavan e, mais tarde, a cantora Cida Moreira, no álbum “A Dama Indigna”. Dona Canô, mãe de Caetano e Maria Bethânia, morreu em 2012, aos 105 anos.

Uma canção desnaturada (MPB, 1979) – Chico Buarque
O lado trágico e sombrio da relação entre mãe e filha é abordado por Chico Buarque nesta música composta em 1979 para a “Ópera do Malandro”, em que o próprio autor a interpreta em parceria com a cantora Marlene. Essa faceta menos simpática e idealizada da maternidade aparece com menos frequência nas obras de arte, mas pode ser conferida, por exemplo, no filme “Sonata de Outono”, do cineasta sueco Ingmar Bergman, e no clássico da mitologia grega Édipo, que eternizou a figura de Jocasta, a mãe que dorme com o próprio filho. Embora pouca agradável a conflituosa convivência entre mães e filhos aparece na realidade em grau maior do que sugere a ficção. Chico Buarque, com sua habitual competência poética, traça o panorama de crueldades de que também é capaz uma mãe. “Porque cresceste, Curuminha, assim depressa, estabanada”.

Só as mães são felizes (rock, 1985) – Cazuza e Frejat
Cazuza também não abordou a maternidade do lado óbvio. Pelo contrário, ele mesmo dizia que “Só as mães são felizes”, rock composto com Roberto Frejat em 1985, era uma homenagem às pessoas que “vivem o lado escuro da vida”. O título, inusitado, e evidentemente provocativo, fora retirado de um poema do escritor beat Jack Kerouac, em que o mesmo, assim como na música de Cazuza, não explicitava nenhuma relação com o restante do texto. Após o choque inicial, inclusive de sua própria mãe, Lucinha Araújo, que esperava uma homenagem, Cazuza dava sua versão dos fatos: “Usei imagens fortes para falar de meu preconceito com o fato de não permitir a nenhuma mãe do mundo encarar as barras que eu encarava. Era como se eu dissesse que as mães são para serem colocadas num altar, para serem veneradas”. Foi gravada no disco “Exagerado”.

1º de julho (MPB, 1994) – Renato Russo
Outro importante nome do rock nacional, Renato Russo, escreveu uma canção para homenagear a maternidade de uma das maiores roqueiras brasileiras em todos os tempos. Quebrando qualquer expectativa e estereótipo Cássia Eller deu à luz, no dia 1º de julho ao seu filho Francisco, conhecido desde o início e chamado carinhosamente como Chicão. Com a data do nascimento Renato Russo batizou a música, que servia para alinhar sentimentos em relação à mãe e em relação ao filho, e como essas vidas, ao se tocarem, modificavam-se mutuamente. Outra riqueza da letra e da melodia é percorrer os diversos caminhos e as possibilidades infinitas que se abrem na vida para as pessoas. Da MPB ao rock, do grito à suavidade, aparece a imagem de uma mãe dedicada, e, sobretudo, do amor. A música também foi gravada pela Legião Urbana em 94.

Mama África (MPB, 1995) – Chico César
Chico César conta que estava em um táxi quando melodia e letra de “Mama África” apareceram em sua cabeça e, sem estar munido de lápis, caneta, ou um gravador, começou a repeti-las insistentemente na cabeça para não esquecer, deixando inclusive de dar atenção à irmã. Natural de Catolé do Rocha, interior da Paraíba, a inspiração apareceu quando, de mudança para São Paulo, observou, em um grande mercado, diversas mães que em meio ao trabalho também tinham que se preocupar em amamentar os filhos, cuidar deles e se atentar para com todas as necessidades da prole. Daí os versos que descrevem essa realidade. No fundo a música é uma homenagem não só à figura da mãe, mas, acima de tudo, um hino à coragem da mulher brasileira, que contra todos os preconceitos e percalços traça o seu caminho com determinação e coragem.

*Bônus

Mãe (rap, 2015) – Emicida
O rapper Emicida investiu em uma verdadeira produção cinematográfica para homenagear a sua genitora. Nas imagens do videoclipe de “Mãe”, ele literalmente atravessa o tempo e surge como a criança que descreve na letra. Antes do disco mais recente de Elza Soares, o compositor já declarava: “Deus é uma mulher preta”. A produção tem a participação mais do que especial da própria mãe de Emicida. Dona Jacira aparece recitando um poema sobre a maternidade. No final, mãe e filho se movem dentro de um retrato. A música foi lançada no álbum “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa…”, o quinto de Emicida.

Todo Homem (MPB, 2017) – Zeca Veloso
Incensada nas redes graças ao número de visualizações que a equiparou ao fenômeno pop da última hora – a onipresente Anitta –, a canção “Todo Homem”, de Zeca Veloso, foi logo pinçada para a supersérie “Onde Nascem os Fortes”, da rede Globo. Além do caráter conservador de título e refrão, a poesia também não se sustenta nas imagens que procura sugerir. “Farol, saudades no varal/ Vermelho, azul, marrom/ Eu sou cordão umbilical/ Pra mim nunca tá bom”, é só um exemplo. O falsete do garoto tampouco alcança o viço do canto do pai, Caetano Veloso, e se exprime com afetação.

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Raphael Vidigal

Imagens: Foto de Henfil e obra do cartunista e jornalista com a mãe, respectivamente.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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