“Por vezes, o olhar dos dois homens se encontrava; o do jovem, taciturno e sombrio, inalterável em sua obstinação; o do velho, escarnecendo com um desprezo incansável.” D. H. Lawrence
A madeira crepitava insistentemente. Como lascas soltando-se do corpo roliço da árvore e alcançando a mortal liberdade em toras de fumaça dobradiças a definhar. O cheiro das cinzas empanzinava o ambiente em igual modelo a pneus inúteis recheados por água podre. O barulho, no entanto, e os sentimentos correlatos estavam imperceptíveis ante a agrura de Freud. O sofrimento do homem de nervoso charuto detivera-se no chão como prego.
À sua frente, coaxando feito sapo em noite de lua que para a espécie é orgia, o protestante Jung avolumava-se em contrações na medida exata da madeira a crepitar de novo. E de novo, e de novo, e de novo, e de novo, o ritual resultou numa esfera de paralelas estanques. O medo recusou-se a surgir na cabeça de Freud, enquanto os pés de Jung não eram capazes, sequer, de encostar-se sem temerem as faíscas.
Plenamente certo quando ao mundo e possíveis desbravamentos, o senhor cuja idade mais avançada conferia-lhe certa ascendência sobre o jovem aprendiz pediu um minuto de silêncio, e aconselhou-o a sentar-se. Quando a cadeira o encarou em olhos de abnegação, percebeu os próprios braços ardendo em brasa, donde escapavam negros fiapos. Um deles atingiu, em cheio, o charuto moribundo de Freud.
Postaram-se fogo contra fogo, e do atrito arrolaram pedras duras e intransponíveis por um lado, ao passo em que, no extremo oposto, a água banhava a cor do intocável. O fumo renovou-se e do espelho, então maquiado em rubor e cinzas, aboletou-se um cachimbo. Tragavam os dois do mesmo odor, e o fétido para um ao outro se ajoelhava com a honra do perfume nobre vindo da França.
A origem judia tornara-se pouca coisa considerada a destruição nazista e a capacidade do mal percebida em cada homem. No entanto a salvação jamais perdera a reprimida sexualidade, e mesmo no inferno juraram fidelidade às respectivas psicanálises. O rompimento definitivo ocasionou a perda de memórias afetivas, e impulsos nervosos resultantes em tenso colapso. Da lentilha, estragou o pão, a sopa, o prato.
Numa noite de insônia, após a morte do antigo companheiro, Jung recebeu, em sonho, uma visita de Freud. Barbudo e careca, para outro equivalente, atestou em meio a pinotes de fumaça enquanto girava bisonhamente apoiado em candelabros: “É duvidoso o crepitar da madeira, mas é notória a depravação fantasiosa, a libido, os gemidos e urros, embora ela não ocorra, quando se tem a impressão de que o inexistente nos assombra não importa aonde vamos”.
Raphael Vidigal
6 Comentários
Lobo assisti e gostei bastante apesar de passarem muito superficialmente sobre todo o método Jungiano
Excelente!
Ainda não assisti. Quero ver. Obrigado, Raphael.
valeu 😉
Tu gostou… eu piro no Cronermberg…. mas as criticas sobre esse ai q eu li nao foram boas… mas eu nao vi ainda.
Vou conferir, com certeza!