“projeto-me num abraço
e gero uma despedida.” Cecília Meireles
Na terra uma margarida afofa o vaso. A primeira, gorda, acentua a banha ao apertar sobre ela o cafona cinto dourado de tiras alaranjadas. A segunda, magra, espirra em questão de segundos, e para conter a profecia do vírus abana irritada o lenço. Apesar da educação e cultura não sabe que vêm caracterizadas, a dupla: O Gordo e o Magro. Por cima das almofadas como poodles de madames abrem o sorriso largo: as duas têm dentes de ouro. Mas a boca da dupla definha quando abre: qual carniça desprezada por urubus: a revirar no lixo: remexer no lixo: e não se encontra a espinha do peixe cuspido entre frutas, alfafas e alfaces. Tanto falam que não falam nada. No fundo elas formam uma – dentre as muitas serpentes de Medusa uma cobra instaura a suprema fome.
Essa desconhecida deslumbrada, a verdade, recupera a memória e trai: a ignorância de que o presente nada deve ao passado: Elizeth e Ângela, duas cantoras do rádio, são, na bandeja, O Gordo e o Magro: anunciam a morte da mãe de João. Querem o circo: o fogo da boca do engolidor: a juba da barba do leão: o bambolê na cintura da equilibrista: o gás de um flutuante balão: o algodão de uma máquina de doces: o açúcar para as formigas: a voz do bebê no berço: que nem tem voz: e já avisa-nos do medo: o sentido da vida me apareceu: e desaparece sempre: mas ele agora me apareceu: ele agora me apareceu: agarro os fortes frisos do rinoceronte: o chifre que de nada serve: que de nada serve: as calhas de vidro: as talhas de pau: mágica e festa para as duas meninas: duas desprotegidas meninas, num abraço para se proteger do frio.
Raphael Vidigal
Pinturas: Obras de Egon Schiele.