Tess – Uma Lição de Vida, de Roman Polanski

“o tempo que passava em um relógio invisível, a veia vermelha de um termômetro, a luz filtrada em tênues filamentos pelas cortinas de filó, uma gota d’água suspensa na torneira e que nunca pingava: ela pegou esses objetos e com eles ergueu uma parede: mas a parede era fina demais, frágil demais, e incapaz de eliminar o som da voz” Truman Capote

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Uma parede branca antecede a desgraça da camponesa família. Por que acreditar em melhor futuro é o perigo inescapável ao ser humano. A parede no futuro estará manchada de sangue. O sangue pinga das vestes da menina. Quando colhia morangos no campo, colocaram-lhe rosas no busto. Espinhos debruçaram-se em seios brancos, e estes logo tomaram o formato da mão do carrasco. Desejos vãos, insígnias das bravatas e aspirações.

Dançavam genuinamente quando um tufão irrompeu das mansões. O velho pai que despenca da velha carroça, afirmando a condição superior, mais lembra o palhaço a esperar os aplausos da cética platéia de bretões. A tenda murcha está prestes a desabar sobre as cabeças: umas carecas, outras cobertas por polacos chapéus: todas à espreita, todas confusas: consideram arriscar a vida por um inferno de céu. A luz de lampiões imanta as fuças.

A senhora inválida não os deve ajudar. Mal consegue dirigir a palavra às galinhas que tanto ama. Dos seres chamados humanos desistiu há milhões de décadas. A senhora inválida comprou o título de nobreza. Não significa nada o precípuo parentesco. O bêbado orgulhoso festeja com a esposa a partida da filha. Sem saber: ela nunca voltará à mesa. A orgia em torno da despedida, que rende alegria entre antigos e moços, chama-se “esperança”.

É dela o tesouro depositado no corpo. Todos assimilam a formosura de Tess à prosperidade, vitória, conquista. O corpo assoberbado, evasivo, refulgente. A máscara de cimento mole é refratária às investidas do carrasco. No entanto o estupro era uma prática comum e aceita entre os homens de espécie porca. E é à vítima que as ofensas se direcionam. Em razão de um instante de gargalhada e distração, Tess perdeu para sempre a ressentida paz.

Mas eu consigo vê-la. Após os anos de tortura, casamento devastado por moral e julgamento e vaidade. Consigo vê-la, dependurada. Entre árvores, mordendo maçãs, desperdiçando o talo e a casca, mastigando sementes em meio ao ventre, abrigo de um filho morto, reprova a incompreensão do padre a lhe determinar a falta do enterro cristão. As palavras do reverendo, pastor, santo, em cavalo montado, derrubaram do sonho as pernas da menina frágil.

Este parágrafo. Pensado para caber em distinta estrofe. Pouco obedece ao imaginário de Roman Polanski. Tess jaz. Risonha, enigmática, plena, farta, vela injustiças e depravações, é o próprio lodo e abominável e incoerente homem. Aquele com o qual caminha de dadas mãos. Em direção ao nada, em direção à morte. Em direção contrária ao sol pois lhe queimou vestes vermelhas, e mãos amarelas, e coração azul e os olhos de um verde limão.

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Raphael Vidigal

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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