Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen

“Assim, despertando de um sonho de horror à meia-noite, logo a pessoa acende a luz e se mantém quiescente, adorando o gaveteiro, adorando a solidez, adorando a realidade, adorando o mundo impessoal que é prova de alguma existência que não a sua.” Virginia Woolf

Casa-de-Bonecas-Ibsen.jpg

O grito de “socorro” é precedido por uma ameaça viril. Mas é dentro da mulher ouvido, somente. Ela não pode desmantelar a harmonia da casa onde vive. Lá as crianças brincam com displicência, “tomando o cuidado exigido para manter em bom estado as estampas dos vestidinhos de babado e das camisas de marinheiro” a cobrirem os corpos tenros. A babá se dirige a uma delas dotada de paciência cristã. Pergunta se já pode servir o chá. É aí que a descoberta compete aos olhos.

A bacia de água quente em cima do móvel. O criado mudo ao lado da cama. O pano úmido sobre a testa. Enferma, coberta por uma bata branca do pescoço aos pés, a matriarca. No entanto, ao olhar para fora e desligar-se de pensamentos imersos, apalpa o próprio rosto, e não obstante o percebe corado. Da mesma maneira, há rubor em seus pés, apertados nas delineadas sandálias de couro persa. Ninguém na casa poderia supor a degradação de sua natureza enfadonha, uma abobalhada boneca a serviço de todos.

Apressa-se, com a velocidade competida ao seu corpo bastante cansado e obeso, para retocar a maquiagem. Ambas, por pouco, não cederam ao impulso do desmanche completo. Quando o preto do lápis escorria debaixo daqueles olhos castanhos e impuros, desciam com eles os anos, as horas, os momentos de uma vida legada ao segundo plano na ausente passagem por esse mundo. Detivera-se inclusive ela a se admirar no espelho inúmeras noites. O veredicto não disfarçava a insatisfação. Não se desmanchava por ser fantasmagórica.

A ameaça retorna. E agora uma certeza. Uma nova dúvida. Sucedem-se dessa forma estruturas complexas e impermeáveis tal o vestido de seda da senhora enxuta. Trata-se de uma constatação exata a idade dessa pessoa. O que não a aniquila diante das fantasias. Inicia a partir de meia-calças o ritual. Negrumes, abrindo espaço entre poros para que o ar a invada juntamente com o desejo escondido dos homens. Nutre a certeza de que a olham. Absolutamente. Olham-na. Novamente a certeza. A dúvida.

Mas o homem  que a olha da sacada diz outra coisa. É um sibilo. Uma ameaça. Promete desmenti-la. Quebrar-lhe os galhos. Eximir-lhe a aurora. Afogar-lhe no rio hipócrita cultivado com imenso carinho nos anos anteriores. Regou-o. Macio, esquálido, frígido, possui aparência pantanosa. O que lhe determina a condição de rio é a condescendência dos pares, a declamação, o aplauso. A mulher recusa-se. Num instante de loucura, um instante afunilado, uma rara representação do corpo onde ainda emanam luz, e fogo, e sombras: a mulher.

Recusa-se. Não irá participar do jogo. Atira-se ao lago escuro: o pântano. Confessa ao marido o plano. Mostra à baba e à prima o pus e as cicatrizes. Assume-se e ri e gargalha e arma um escândalo. Espera inerte a compreensão dos outros, ao depararem-se, na inútil tarde, com o corpo da dama boiando: de vestido imenso, mamas gordas; baba, veneno ou espuma, escorregando dos lábios, meio intocados, abertos, sem dentes, e a indestrutível dentadura proferirá, solene, a frase dos desesperados: “O maior dos milagres!”

Casa-de-Bonecas-Teatral.jpg

Raphael Vidigal

Compartilhe

Facebook
Twitter
WhatsApp
LinkedIn
Email

Comentários pelo Facebook

5 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Recebas as notícias da Esquina Musical direto no e-mail.

Preencha seu e-mail:

Publicidade

Quem sou eu


Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

Categorias

Já Curtiu ?

Siga no Instagram

Amor de morte entre duas vidas

Publicidade

[xyz-ips snippet="facecometarios"]