Rogério Skylab: ‘Quanto mais um compositor tem intérpretes, mau sinal’

*por Raphael Vidigal

“É humilhante ouvir um homem dizer que não tem tempo quando ele está vivo.” Machado de Assis

Numa famosa peça de teatro, dois maltrapilhos esperam indefinidamente. Mas Rogério Skylab, 66, não espera nada. Ele quer o Impossível. “A morte pode ser vista sob as mais diferentes perspectivas. Uma delas, e pra mim a mais cara, é relativizar a importância do sujeito, da bolha, da própria identidade. A morte, assim como o erotismo, tem o papel de te colocar sob questão. É também o sentido mais profundo de liberdade, não do livre arbítrio. Nesse aspecto, como afirmo na música ‘Suruba Alienígena’, e retomando Beckett: ‘eu quero prosseguir, não consigo prosseguir, impossível prosseguir, eu vou prosseguir’. É essa categoria do Impossível, talvez a noção filosófica mais importante, que o pensamento da morte coloca em evidência”.

Lancinante, um caco de vidro se enterra no umbigo da vítima, que tem os mamilos retorcidos com alicate, enquanto seus fios de cabelo são puxados e arrancados, fio por fio. Ao reconstituir o ambiente de uma tortura na música “Naquela Noite”, lançada em seu primeiro disco, “Fora da Grei”, de 1992, o músico opta por uma melodia suave, delicada que, associada à letra, embebe em lirismo o horror.

“Tenho pensado muito sobre isso. Uma das possíveis origens do meu trabalho, conceitualmente falando, teria sido isso que você aponta em ‘Naquela Noite’, mas que eu poderia estender para outras canções como ‘Motosserra’, ‘Música Suave’ e até mesmo ‘Matador de Passarinho’. A forma não casa com o conteúdo; o lirismo servindo pra esconder atrocidades. Talvez seja um mergulho na estrutura mais profunda da sociedade brasileira. A beleza, o sentimentalismo, o lirismo servindo pra despistar as perversões sociais de um país estruturalmente injusto”.

Meme. Na próxima sexta (31), Skylab se apresenta na Autêntica, em Belo Horizonte, casa de shows conhecida por receber, principalmente, um público ligado ao rock. Os ingressos estão praticamente esgotados, o que comprova a perspectiva do músico de querer “discutir com o grande público”.

“Por isso passei pelo Jô Soares, por isso estive presente nos podcasts. Se me reservasse a me apresentar em salinhas de 60 pessoas, muito provavelmente não me transformariam em meme. Esse é o risco que corro conscientemente: ver meu trabalho transformado em meme. Por outro lado, o que venho recebendo de mensagens de agradecimento não está no gibi. E isso enche a alma. E isso diz que valeu a pena. Meu trabalho é uma espécie de militância, sem palavras de ordem, sem camisas de força e sem ideologia, seja ela de esquerda ou direita. A ideia de cadáver na MPB passa por aí. Bolsonaristas me odeiam e tenho a impressão que a mídia ninja também”, gaba-se.

Skylab se esquiva de guetos, sem, com isto, deixar de marcar posições. Esse movimento híbrido gerou um fenômeno peculiar em relação ao artista, incensado tanto por intelectuais quanto por apresentadores como Danilo Gentili, que, inclusive, o convidou a atuar em seu filme, “Como Se Tornar o Pior Aluno da Escola”, de 2017, que o próprio Skylab define como “horrível”.

Moral. Discípulo da máxima do poeta Torquato Neto (1944-1972), de que é preciso ocupar os espaços, Skylab mantém um blog com textos reflexivos de alta carga teórica, cheios de densidade, cujo título, Godard City, é uma óbvia menção ao diretor de “Acossado”, que optou pelo suicídio assistido no final do ano passado, aos 91 anos.

“Eu falo em discutir com o grande público, mas não me tornar refém dele, refém de sua moral. Esses grandes autores como Godard, Tarkovski, Lars von Trier, Proust, Bataille… me moldaram. Quando você fala em ‘Acossado’ e ‘Imagem e Palavra’, entre esses dois filmes, vejo um autor acompanhando as transformações da tecnologia e, consequentemente, da linguagem. Muito mais isso do que propriamente um afastamento do grande público. Esse contato com o Real nenhum autor pode perder, sob o risco de virar anacrônico. Godard sempre foi atual”.

Skylab pretende com o chamado grande público, como ele mesmo salienta, discutir e ocupar o espaço, o que também significa dizer que, embora em contato, a sua posição diante do senso comum é de embate. O músico retoma a auto definição de “cadáver da MPB”, segundo ele uma questão que tem a ver, sobretudo, com o seu modus operandi. “Quando eu falo que sou um compositor sem intérprete, não estou reclamando. Aliás, essa situação atesta mais o valor do compositor. Quanto mais um compositor tem intérpretes, mau sinal”, provoca.

Bolha. Relegado a uma espécie de isolamento dentro de uma bolha que procura furar incessantemente, ao contrário da bolha dos maltrapilhos de Beckett, na qual a espera por Godot é indefinida, Skylab vai atrás do Impossível como um Godard à brasileira. Essa circunstância ele define retomando o conto “O Castelo”, de Kafka, publicado em 1926, em que o protagonista bate a uma porta que nunca abre.

Se há pares com quem ele mantém alguma identificação, um deles é o compositor e escritor capixaba Luís Capucho que, em 2012, lançou o disco “Cinema Íris”, alusão ao famoso cinema carioca que, na década de 1980, exibia filmes pornôs. Em “Samba Bem Quente”, de 2008, Skylab também cita o local. Ambas as letras mencionam a masturbação.

“Você cita na tua pergunta Luís Capucho, por quem eu tenho uma grande admiração. Aliás, em breve, será lançado um livro de crítica musical, ‘A Melodia Trágica’, de minha autoria, e que contém um estudo sobre Capucho. Sobre ‘Um Samba Bem Quente’, quando o compus não conhecia Capucho. E também não acho que a Maria Alcina seria apropriada pra canta-la”.

Ginástica. Em 2016, comemorando os seus “25 anos de carreira ou de lápide”, como assentia o subtítulo, Skylab lançou a sua “Trilogia dos Carnavais”, num DVD que reunia músicas dos álbuns “Abismo e Carnaval” (2012), “Melancolia e Carnaval” (2014) e “Desterro e Carnaval” (2015), onde ele explorou as nuances do samba. No botequim feito para a plateia, sentou-se Luís Capucho, que participou da faixa “Deixa”, em 2015. Arrigo Barnabé e Fausto Fawcett cantaram no DVD com Skylab.

“Um Acorde Imperfeito”, de 2012, surge quase como uma carta de intenções poéticas, na qual o compositor afirma peremptoriamente que “música não é ginástica”. “Pensei em guitarristas velozes. De fato, música pra mim não é ginástica. A pausa, o espaço em branco numa canção, será sempre carregado de sentidos. O curioso é que essa ideia, no meu caso, foi se fortalecendo com o tempo. Se você ouvir os meus primeiros discos vai perceber uma ânsia, um ritmo rápido, uma verborragia. O maior exemplo disso é o ‘SKYLAB II’. Com o decorrer dos anos, eu vou deixando isso de lado e passo a sublinhar o não-dito, as expressões lacônicas. Dentro do linguajar de Luiz Tatit (criador do grupo Rumo), as minhas músicas deixam de ser temáticas e passam a ser passionais”.

Quando lançou “SKYLAB V”, em 2004, o músico arrebatou o prêmio Claro de música independente na categoria melhor álbum de MPB, porém uma faixa, permanecida na obscuridade, agora finalmente foi lançada nas plataformas digitais. Trata-se de “Fátima Bernardes Experiência”. Skylab nega qualquer tipo de autocensura, e faz questão de frisar que, ao surgir na letra, a jornalista que por décadas apresentou o Jornal Nacional ao lado de William Bonner transforma-se em personagem. A ser homenageada por seu estilo insólito.

Limites. “Houve duas prensagens desse disco, a minha e a feita pela revista Outra Coisa (comandada pelo cantor Lobão). Na minha prensagem, consta a música ‘Fátima Bernardes Experiência’, na prensagem deles não. Ficaram com medo. Quando foi pras plataformas digitais, a revista inseriu a versão dela. Aliás, a prensagem da revista foi muito maior que a minha. Durante anos eu fiquei com essa questão na minha cabeça. E muitas pessoas reclamavam que a canção não constava nas plataformas digitais. Musicalmente falando, eu adoro essa canção e sempre a cantei em meus shows. Resolvi lança-la como single nas plataformas, ainda que ela faça parte originalmente do ‘SKYLAB V’. Ela faz parte das canções em que misturo ficção e biografia, muito na praia de John Haskell (autor do livro de contos ‘Eu Não Sou Jackson Pollock’). Mas é, antes de tudo, uma música celebração”.

Skylab também se debate com outras ambiguidades e paradigmas. “Essa questão que você acabou de colocar é complexa mesmo. No tocante a publicidade, eu procuro estabelecer uma radical diferença entre o artista e o publicitário: o primeiro dá a cara a tapa, no sentido de correr riscos e desbravar regiões limítrofes. Já o publicitário, por mais arrojado e criativo que ele seja, existe um pano de fundo do senso comum. Mas quando você comenta sobre uma observação minha a respeito do artista intuitivo, que predomina no campo da música popular, na verdade essa minha observação queria chamar a atenção para artistas, também presentes na música popular, mas em menor número, que valorizam a linguagem enquanto artifício e que, de alguma forma, desconfiam do dom. Para esses artistas, o trabalho não flui, porque é cavado com o suor do rosto. O curioso é que são esses trabalhos ‘artificiais’ que acabam dando uma maior sensação de verossimilhança, são eles que atingem o real, malgrado toda a sua luta com a forma. Esse é o tema do meu livro sobre Henry James”, discorre o músico que, em 2020, colocou na praça o livro “Lulismo Selvagem”, série de ensaios sobre a conjuntura política brasileira.

“Remetendo a Sartre, o desaparecimento de meu pai foi fundamental pro meu crescimento. Não tivesse o meu pai morrido num acidente automobilístico, hoje eu teria grandes chances de ser um péssimo criminalista”, encerra Skylab, sem tempo para mais perguntas, atarefado com as exigências do podcast sobre música “Contemporâneos”, que ele apresenta no Spotify. “Mal me sobra tempo pra respirar. Prazer em falar contigo. Sempre leio com atenção tuas matérias”.

Serviço
O quê. Show de Rogério Skylab
Quando. Na próxima sexta (31), às 21h
Onde. Autêntica (rua Álvares Maciel, 312, Santa Efigênia)
Quanto. De R$70 a R$120 pelo site da Autêntica

Foto: Murilo Rodrigues/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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