Ritchie comemora 40 anos de hit com turnê: ‘Talvez seja uma cena de motel’

*por Raphael Vidigal

“No vazio que se abre além do horizonte de uma visão presente e finita, é possível imaginar.” Alfredo Bosi

“Meu problema é que falo pelos cotovelos!”. Ritchie está no Brasil há tempo suficiente para dominar o sentido dessa expressão, incompreensível a qualquer estrangeiro. O sotaque britânico mal disfarça que, há 50 anos, ele se mudou definitivamente para este país tropical, abençoado por Deus que, diante de sua estupefação, ia além do samba e da bossa nova.

Batizado “A Vida Tem Dessas Coisas”, o espetáculo que Ritchie apresenta no próximo sábado (16) em Belo Horizonte celebra, justamente, o marco das quatro décadas de rotação do álbum que o introduziu ao público tupiniquim. “É um show surpreendente, traduz todas as ideias que eu gostaria de ter realizado no passado”, orgulha-se.

Sem jamais renegar a estética pop que o consagrou, Ritchie sobe ao palco com direito a tudo que a tecnologia contemporânea oferece, em meio a hologramas, telão com homenagem para Marielle Franco, vereadora assassinada que se tornou símbolo da luta política pela igualdade, e máscara sensual na canção “Casanova”, em que ele encarna o erotismo de um dos mais conhecidos e insaciáveis amantes do século XVIII.

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Noutro momento, toca flauta e presta tributo a Rita Lee, falecida em maio, aos 75 anos, com “Ando Meio Desligado”, faixa lançada em 1970 pelos Mutantes. “Se não tivesse me encontrado com a Rita, numa terça-feira de 1972, eu não estaria aqui”, resume. Na ocasião, ele matou aula para acompanhar as gravações da banda Everyone Involved, com o amigo e guitarrista Mike Klein, e acabou solicitado a tocar flauta. Era sua estreia oficial.

Gringo. Mais importante ainda, foi se deparar no estúdio com uma trupe de brasileiros formada por Rita, Liminha, Lucinha Turnbull (guitarrista do Tutti Frutti) e a então fotógrafa e futura cineasta Sandra Werneck. “Tudo conspirou para atiçar minha curiosidade sobre o Brasil”, relembra. O encontro ainda rendeu um namoro com outra garota do grupo. Na autobiografia de Rita Lee, a ruiva garante que trouxe Ritchie na bagagem, depois de ele se encantar por “Build-Up”, seu primeiro disco solo, e pela obra psicodélica dos Mutantes. “Não foi bem assim, mas como se fosse!”, diverte-se.

Insatisfeito com o curso de literatura na prestigiada Universidade de Oxford, na Inglaterra, Ritchie tomou, “nos loucos anos 70”, uma série de decisões inusitadas que, para além de colocá-lo numa posição única na música brasileira, o transformaram verdadeiramente num astro, um popstar, daqueles de arrasar-quarteirão e ter as roupas disputadas a tapas pelas groupies da plateia. Casado com uma brasileira desde então, sua permanência superou, em muito, os três meses inicialmente previstos.

“Quando eu vim, queria descobrir uma maneira de viver de música no Brasil sem ser aquele crooner de bar, o gringo que canta (Frank) Sinatra no boteco de Copacabana”, conta. Ritchie levou uma década para “aprender a cantar em português convincentemente”. Ele tomou aulas com Bernardo Vilhena, ligado ao movimento da poesia marginal, e letrista da maioria de seus sucessos.

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“Queria me integrar à música brasileira, ser parte desse mundo do Clube da Esquina, do Milton, de Caetano, Gil, Tom Jobim, Mutantes”, enumera. “Adorava a sonoridade do português. É uma das línguas mais musicais que existem, tem uma sonoridade de provocar inveja! O “ão” é maravilhoso, não existe isso no inglês. ‘Voo de CoraçÃO!’, deleita-se, sublinhando o final do título de um de seus hits que marcaram época.

Língua. “Voo de Coração” é também o nome do inaugural disco desse inglês que canta em português – algo bem mais comum atualmente do que na década de 1980, com estrelas pop como Demi Lovato, Madonna e Shakira se arriscando no idioma. Antes de Ritchie, talvez só o cantor de jazz Nat King Cole, nos idos de 1950, tenha se atrevido a interpretar melodicamente “a língua de Luís de Camões”, como canta Caetano Veloso.

“O mercado brasileiro é muito grande, é um território enorme, com uma população de 200 milhões de pessoas ligadas em música. Se você somar todos os países da América Latina, talvez não chegue a tanta gente. Esses artistas internacionais estão começando a enxergar a dimensão do Brasil, tradicionalmente ignorado. Os grandes festivais daqui estão abrindo esse olho, além de artistas como a Anitta, com uma estratégia de marketing moderna, que chega a patamares parecidos com os americanos”, avalia Ritchie, que pode falar de cadeira, do alto de seu pioneirismo.

Em 1983, exatamente 40 anos atrás, foi ele a arrombar as portas da indústria fonográfica, ao vender mais de um milhão de cópias com o histórico álbum que reunia, de uma só tacada, “A Vida Tem Dessas Coisas”, “Casanova”, “Preço do Prazer”, “Pelo Interfone”, sem falar em “Menina Veneno”, que merece um capítulo à parte na trajetória do entrevistado. “Com certeza alguém da sua família vai ter esse LP em casa. Foi um dos últimos lançamentos em vinil do país e ficou guardado nos baús, passando de pai pra filho, de filho pra neto, até virar cult”, observa Ritchie, sem apelar à falsa modéstia.

Nessa terra de palmeiras onde canta o sabiá, primeiro ele fundou, com Lobão e Lulu Santos, presentes no álbum “Voo de Coração”, o grupo progressivo Vímana. Com a dissolução do conjunto, começou a percorrer seus próprios caminhos. A primeira música gravada do futuro clássico do mercado fonográfico brasileiro seria, que rufem os tambores: “Menina Veneno”. Tudo começou quando Bernardo Vilhena descia a serra de Petrópolis, atrás de um caminhão, e começou a reparar nas placas da estrada.

Sonho. Quando chegou em São Conrado para se reunir com Ritchie, tinha o título na cabeça, inspirado pelas frases curtas que leu no caminho: “Menina Veneno”. Ritchie descreve o elaborado processo a partir daí como “estranho”. “Normalmente, não sonho com música, mas, nesse dia, tinha sonhado com uma frase musical que não chegou a ser a melodia, mas se tornou a frase musical do teclado que define a harmonia”, relata.

Essa perspectiva um tanto onírica, relativa ao mundo dos sonhos e do imaginário, seguiu em frente. Seu livro de cabeceira era “O Homem e Seus Símbolos”, publicado em 1964, que Carl Jung, fundador da chamada psicologia analítica, concluiu dez dias antes de morrer. Fascinado com o capítulo que se detinha sobre a manifestação de uma mitológica figura feminina, presente em todas as culturas orientais e ocidentais, dos gregos aos romanos, Ritchie concebeu a personagem libidinosa, inspirada em mitos germânicos e nas sereias que seduzem os homens, como na epopéia de Ulisses.

“Há toda uma maneira de interpretar a letra por meio dessa figura da femme fatale”, conjectura Ritchie, mencionando, ainda, a atmosfera dos filmes de suspense conhecidos como noir, que consagraram estrelas do cinema norte-americano do porte de Lauren Bacall, Bette Davis e Greta Garbo. “É uma espécie de entidade, não fica claro se é um delírio do protagonista, tudo é propositalmente nebuloso e enigmático”, afiança. Outra contribuição foi dada pela filha de dois anos do artista, que, de fraldas, subia e descia a escada ininterruptamente, o que fazia com que a porta abrisse. Surgia, da maneira mais inusitada, o verso: “Ouço passos na escada, vejo a porta abrir”.

Mais famosa do que essa passagem, só o “abajur cor de carne”, que chegou a confundir os ouvintes pela estranheza da imagem, própria da poesia. Desta vez, foi a diva alemã Marlene Dietrich (1901-1992) que colaborou para o hit. O letrista Bernardo Vilhena acabara de ler as memórias da atriz, e ficou especialmente tocado pelo trecho em que ela relembrava sua estadia no Copacabana Palace, em 1959. “Nesse depoimento, ela fala sobre as cartas que enviava para os amigos na Alemanha, e se diz encantada pelos abajures dos corredores, que, segundo ela, eram cor de pele”.

Pecado. Ritchie e Vilhena consideraram a imagem forte poeticamente, embora com um traço de discriminação europeia, e chegaram à conclusão de que, num país miscigenado como o Brasil, a expressão “cor de carne” revelava melhor o sentido carnal que eles pretendiam alcançar, acrescentando uma camada de pecado e erotismo à palavra cantada. “Qualquer mulher que já comprou uma meia-calça cor de carne sabe do que estamos falando”, aponta. “Talvez seja uma cena de motel, deixo para o ouvinte imaginar a cena e construir a sua própria interpretação”.

O desafio agora era fazer a música tocar no rádio. Eles sequer desconfiavam que “Menina Veneno” superaria a barreira do milhão. O produto foi oferecido para três gravadoras diferentes, mas nenhuma “mordeu a isca”, informa Ritchie. “As reações eram muito contrariadas. Um inglês cantando em português. Músicas sem refrão, como era o caso de ‘Voo de Coração’. As gravadoras procuravam as fórmulas do sucesso na minha música e não encontravam, eu vinha da formação progressiva, tendia para longos solos de guitarra”.

Ritchie já estava conformado quando o destino o surpreendeu novamente. No Brasil da bossa e do samba, havia espaço para uma música pop com influências do rock inglês e cinco minutos de duração. Tão impossível quanto a musa da canção que assegurou seu estouro inicial. O mundo não era pequeno demais para os dois. Produtor e arranjador, Fernando Adour, que trabalhava na CBS, ouviu a fita demo de Ritchie e quase caiu pra trás. Decidiu levá-lo imediatamente para a gravadora. O cantor deu mostras de seu talento ao vivo e foi contratado de pronto. “A resposta foi esfuziante!”.

Ao escapar das mãos de um divulgador, “Menina Veneno” foi parar numa rádio de Fortaleza, e “começou a tocar loucamente, furamos o cerco do esquema!”. Em duas semanas, foram 500 mil cópias vendidas, e mesmo a questão da duração, entendida como um problema, se transformou em solução. “Os radialistas abriam e fechavam a programação falando em cima da introdução e do final da música, ela chegava a tocar duas vezes no mesmo programa”, recorda Ritchie.

Fantasia. Até hoje, ele não tem noção do que catapultou a música a essas alturas, sendo regravada, inclusive, pela dupla sertaneja Zezé Di Camargo & Luciano. O que não o impede de especular. “Se a gente soubesse, teria feito um monte dessas, e todo mundo estaria fazendo. A palavra ‘menina veneno’ ressoava até na criançada, que a adotou com um sentido inocente, embora, para algumas pessoas, ela tivesse uma conotação erótica triplo x”, diz, em referência ao nível de proibição dos filmes pornográficos.

“Eu atribuo esse sucesso, em grande parte, à fantasia que ela provoca nas pessoas. Virou até material de karaokê, todo mundo canta, é cultuada pelos fãs, tem essa coisa duradoura, e, ao mesmo tempo, simboliza uma época”. Ao arrematar, Ritchie presta reverência ao comunicador Chacrinha (1917-1988), ícone da televisão brasileira. “Ele comandava um programa na TV aberta que era um fenômeno musical, sábado à tarde, assistido por todos, pela doméstica, pelo gari, médicos, advogados, filhos, mulheres, pobres, ricos, todo mundo participava. Depois, o Chacrinha morreu, a música pop-rock migrou para a MTV, ficou mais segmentada, e parou de atravessar as classes”, conclui.

Serviço.
O quê. Ritchie apresenta a turnê “A Vida Tem Dessas Coisas”
Quando. Sábado, 16 de setembro, às 21h
Onde. Grande Teatro Palácio das Artes (av. Afonso Pena, 1.537, Centro)
Quanto. De R$120 (meia) a R$500 (inteira)

Foto: Gal Oppido/Divulgação

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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