A elaboração do horror através do lirismo em “O Contrário da Morte”, de Saviano

*por Raphael Vidigal

“Existe a beleza e existe o inferno; gostaria – na medida do possível – de permanecer fiel a ambos.” Albert Camus

É uma consolação pensar que em algum lugar seremos eternos. Um lugar onde haja areia e neve ao mesmo tempo. É com essa imagem lírica (e onírica) que o escritor italiano Roberto Saviano nos introduz à história de uma mulher que passou pelo inconcebível, realizando o que, para Edmund Burke, tratava-se de tarefa ingrata: “as ideias do sublime e do belo fundam-se sobre bases tão diferentes que é difícil, diria mesmo quase impossível, pensar em conciliá-las em um único objeto”, diagnostica o teórico irlandês em “Investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do Sublime e do Belo”, de 1757.

Publicado por Saviano em 2009, quando ele já vivia escondido e sob escolta policial graças ao best-seller “Gomorra” (2008), que destrinchou as entranhas da máfia italiana, “O Contrário da Morte: Regresso de Cabul”, narra a desventurosa vida de Maria, jovem napolitana abandonada à própria sorte após o noivo ter o corpo despedaçado durante a guerra empreendida no Afeganistão, oficialmente inaugurada em 2001, e cujo fim foi determinado pelas autoridades após vinte anos de ignomínias.

Os sonhos de casamento, de compartilhar a vida a dois, os preparativos reunidos na concretude de algumas lembrancinhas compradas juntos, num dia ensolarado de verão, desmancham-se como neve, mas têm a aspereza dos grãos de areia. O que parecia congelado no tempo passa a pingar em gotas de suor, ao sabor de horas macilentas que se arrastam com a letargia da eternidade.

“O nítido ou o esfumado, o fiel ou o distorcido da imagem devem-se menos aos anos passados que à força e à qualidade dos afetos que secundaram o momento da sua fixação. A imagem amada, a temida, tende a perpetuar-se: vira ídolo ou tabu. E a sua forma nos ronda como doce ou pungente obsessão”, analisa Alfredo Bosi num dos ensaios do livro “O Ser e o Tempo da Poesia”.

A beleza que advém do horror é a grande marca do texto de Saviano. A união desses dois opostos, ou seja, poetizar e tornar lírico o repulsivo garante um equilíbrio à narrativa que a livra, de imediato, da puerilidade e da diluição que a beleza pura, óbvia e absoluta por si só pode gerar. Segundo Burke, o sublime “produz a mais forte emoção de que o espírito é capaz. Digo a mais forte emoção, porque estou convencido de que as ideias de dor são muito mais poderosas do que aquelas que provêm do prazer”.

A camada de horror, a atmosfera pesada desse sentimento é intumescida pelo olhar aguçado do escritor, que realça as nuances da existência humana e assimila a morte com generosidade e amplidão, sem, com isto, chegar a resignar-se. Escreve Virginia Woolf: “A pressão de seus dedos parecia aumentar na flor o que ela de mais brilhante continha; realçá-lo; torná-lo mais fresco, franzido, imaculado”. Como a beleza de um busto de pedra que a violência erige.

Estilo. Na concepção de Burke, “o belo incita na alma o sentimento chamado amor”, ao passo que, “tudo que seja de algum modo capaz de incitar as ideias de dor e de perigo, isto é, tudo que seja de alguma maneira terrível ou relacionado a objetos terríveis ou atua de um modo análogo ao terror constitui uma fonte do sublime”, embora ele mesmo admita, quase numa distração, que, “o sofrimento de uma pessoa bela é muitíssimo mais comovente”, aproximando nessa sentença beleza – a fonte do prazer – e dor, ao modo do que Clarice Lispector havia feito em um dos contos de “Onde Estivestes de Noite” (1974): “Estou agora procurando na chuva uma alegria tão grande que se torne aguda, e que me ponha em contato com uma agudez que se pareça a agudez da dor”.

O prodígio da escrita de Saviano concentra-se nesse ponto, como quem equilibra uma esfera entre os dedos sem deixá-la escorregar, mantendo a tensão do gesto enquanto a impressão de maleabilidade se estende. “Essa é a origem do poder do sublime, que, longe de resultar de nossos raciocínios, antecede-os e nos arrebata com uma força irresistível”, prossegue Burke.

O sublime de Burke pode ser traduzido como o assombro despertado pelo horror. O espanto pode ser prazeroso se nos conectamos com ele pelo filtro da beleza, causando-nos deleite, primeiro através dos sentidos e, na sequência, atingindo o intelecto e desembocando na reflexão. Para tanto, vale a lição do filósofo alemão Schopenhauer: “O efeito dos sons é incomparavelmente mais poderoso, mais infalível e mais rápido que o das palavras”. O que justifica o uso da palavra lírica, poética. Ao associar essas duas instâncias de forte teor emotivo, a beleza cuja origem é a palavra poética ritmada, sonora, encadeada, ao sublime que nos pega pelas vísceras, Saviano constrói uma narrativa que tende para o passional, sentimento que ele enxuga com um sentido de concisão.

Novamente, a vantagem da arte é elevar o pensamento por meio das emoções. Ao entrelaçar um acontecimento intragável, custoso, à estética do prazer, Saviano atinge essa complexidade que instiga o leitor a auscultar de perto a podridão do terrível – que não deixa de impressionar, mas passa a envolver o outro com sutis meandros. Nada disso seria possível se estivesse fora da equação o talento literário, e a consistência de pensamento acerca do tema que poetiza, por parte do escritor. “Uma coisa é tornar clara uma ideia e outra torná-la impressionante para a imaginação”, sustenta Burke.

Narrativa. Em “O Contrário da Morte”, o relato se inicia pela primeira pessoa: “Eu o imagino como um lugar de muita areia. Cheio de montanhas cobertas de neve. Areia e neve. Areia e neve, embora não combinem, embora nunca estejam juntas no sonho de ninguém”. É um “eu” enganoso, que anuncia o impossível e especula através do onírico, contrapondo, à pretensa camada de realidade, esse tecido fino e quase imperceptível da ilusão, que, em movimento contínuo, coloca em relevo o paralelismo presente na compressão dos opostos, nutrindo a matéria da narrativa de ambiguidade. A secura infértil da areia, com todo horror que essa imagem associada ao desespero e à solidão concentra, submetida ao fulgor branco da neve, em sua promessa vã. Pois à manhã sucede a noite e ao dia a escuridão. “Descerei ao sepulcro para ver se rompe a manhã”, nos dita o poeta inglês William Blake.

O “engano” do “eu” é tanto de forma quanto de fundo. Temporalmente, esse “eu” também suspende, nas primeiras linhas, a perspectiva de passado, presente e futuro. Não sabemos exatamente onde se posiciona esse relato até que a personagem ecoa a perda do amante, mais adiante. Essa abertura não nos localiza temporalmente em sua primeira parte, e menos ainda geograficamente. No entanto, logo compreendemos, esse “eu” que anuncia o impossível, essa primeira pessoa que dá o pontapé na história, não se refere à figura do autor, mas a de uma de suas personagens, justamente aquela que detalha os acontecimentos.

Esse primeiro relato aparece em itálico, contrapondo-se à narrativa em que Saviano descreve as cenas e os acontecimentos de maneira mais objetiva, direta. Ou seja, Saviano, em itálico, assume a pessoalidade subjetiva de sua personagem. São estratégias concernentes à literatura, ao labor do texto literário, compreendem a matéria-prima e o ofício de quem escreve, e, mais do que isto, pertencem ao campo do poético, do lirismo e da poesia em sua essência mesma.

Saviano preenche as lacunas da relação com a personagem por meio da possibilidade, através de palavras como “talvez”; e também coloca em questão a verossimilhança, por meio da expressão “como se” contida no relato onírico de Maria. Ele se coloca na história e assume o seu ponto de vista pessoal, e, ao mesmo tempo em que questiona, borra os limites entre o real e a ficcionalização.

Quando o itálico retorna, já sabemos que se trata do relato de Maria. Com essa atitude, Saviano marca a pessoalidade subjetiva do relato sem, absolutamente, tirar-lhe a credibilidade inerente ao depoimento de quem atravessa uma situação-limite, sem fazer objeção à verdade pessoal da narradora, como pontua a teórica argentina Beatriz Sarlo, problematizando a condição do depoimento: “Que relato da experiência tem condições de esquivar a contradição entre a firmeza do discurso e a mobilidade do vivido?”.

Esse conceito de real e fictício é discutido logo no início, com a imersão no universo onírico do sonho da protagonista. Outro recurso estilístico do autor surge na intercalação de suas falas com as de Maria. Elas nunca se encontram, parecem correr paralelamente. Saviano nos dá a impressão de construir monólogos que amplificam a solidão das personagens frente à morte, diante da qual estamos todos atônitos e desamparados.

“o processo que leva ao texto poético carreia a expressão de mais de um tempo: o tempo presente que a ideologia filtra e reduz; o tempo sem tempo da forma feita de imagem; o tempo cíclico do som”, detecta Alfredo Bosi, para quem, “a poesia exprime a subjetividade mais radical do ser humano”. E completa: “Porque a expressão lírica é mais concreta do que o tipo, assim como o tipo já era menos abstrato que a alegoria”.

O crítico literário ainda traz a sua própria definição sobre o belo, que amplia a constatação de Burke: “Belo é o que nos arranca do tédio e do cinza contemporâneo e nos reapresenta modos heroicos, sagrados ou ingênuos de viver e de pensar. Bela é a metáfora ardida, a palavra concreta, o ritmo forte. Belo é o que deixa entrever, pelo novo da aparência, o originário e o vital da essência”, assinala Bosi. “a imaginação constitui a mais ampla esfera do prazer e da dor, dado ser ela o campo de nossos temores e de nossas esperanças, assim como de todas as nossas paixões”, diz Burke.

Relações. Seja como for, tanto o prazer (ou a beleza) quanto a dor (sublimada pelo horror) são causadores de emoção e, segundo Burke, das mais fortes que há. A beleza tende à comoção, enquanto o horror à repulsa. “E não é necessariamente melhor estar comovido. O sentimentalismo, como se sabe, é perfeitamente compatível com um gosto pela brutalidade”, refletiu a ensaísta norte-americana Susan Sontag, que vai além: “Como objetos de contemplação, imagens de atrocidades podem atender a diversas necessidades. Podem nos enrijecer contra a fraqueza. Tornar-nos mais insensíveis. Levar-nos a reconhecer a existência do incorrigível”. Logo, essas instâncias do pensamento e da elaboração humana não são absolutas, não detêm mérito ou negatividade por si só, dependem da forma como serão abordadas.

Sontag persegue um exemplo clássico para salientar seu ponto de vista: “As imagens de Goya comovem o espectador quase ao ponto do horror”. Horrorizado, o espectador toma parte daquela tragédia, numa relação mediada pela beleza. Uma beleza que pode ser apavorante, atordoante ou provocadora. Mas que, indubitavelmente, suscita emoções. E que através das emoções quer gerar pensamento, como um anzol cuja isca é a beleza e o arrepio o destino. Essa beleza penetra o animal horripilante, e o modifica por dentro.

O horror não é mais o mesmo, não está mais submerso, deixou de ser uma ameaça, um medo, o tenebroso do fundo do mar para, vindo à superfície, revelar a sua carranca que, embora ainda repulsiva e perigosa, agora conhecemos e podemos sublimar, podemos até olhá-la com condescendência, com deleite ou pavor. “Pensar é, também para Leopardi, aprender a morrer”, sustenta Alfredo Bosi, citando o poeta italiano que ele estudou com afinco.

Dilema. Ao escolher o título de seu livro de crônicas, contos e ensaios, “A Beleza e o Inferno”, Saviano recorreu a uma passagem que o impressionou particularmente, contida na obra “O Homem Revoltado”, do argelino Albert Camus: “lançadas no inferno, misteriosas melodias e imagens cruéis da beleza fugidia sempre nos trarão, em meio ao delito e à loucura, o eco daquela insurreição harmoniosa que atesta ao longo dos séculos a grandeza humana”.

Noutro artigo do mesmo livro, Saviano, “obcecado pelo verdadeiro e distraído pelo belo”, se volta para a arte do cineasta italiano Vittorio de Seta afim de reafirmar sua crença: “Aquilo a que De Seta nunca renuncia é à beleza. Sua alquimia está na capacidade de olhar contemporaneamente para o inferno dos humanos e para a maravilha que emana da pulsão da vida”, escreve.

Ele também parece não querer renunciar a esta única saída do labirinto, ainda que trate com o horror diariamente, como um cúmplice que o açoita e espera em cada esquina, Saviano resiste a resignar-se ou desesperar-se, e confronta a têmpora sisuda do destino implacável com uma armadura maleável.

O autor subverte a tragédia sem deixar de reconhecê-la. É um jogo sutil de dados em que a derrota é certa, mas a que custo? Essa é a questão. Ao custo da beleza, é a resposta do propagador do belo. “Se o mundo é um lixo eu não sou”, canta Caetano Veloso; noutro lado da mesma moeda, o cineasta sueco Ingmar Bergman concede o desafio do xadrez à mortalha de gesso da vida, sem desviar o olhar de seu tabuleiro, traçando estratégias e lances.

Quando essas condições se entrelaçam, adensa-se a substância do texto poético. “A inevitabilidade é a única certeza: ela é a própria essência da vida – assim como dos sonhos. Uma pintura da vida é salva do fracasso pela limpidez dos detalhes. Como um sonho, ela deve ser surpreendente, inegável, absurda e assustadora. Como um sonho, ela deve ser ridícula ou trágica e, como um sonho, impiedosa e inevitável”, observa o filósofo francês Jacques Rancière.

Contexto. O assunto também diz respeito a Saviano porque ele conhece profundamente aquela realidade, como fica claro no trecho em que, a exemplo de outros homens, leva a chapa metálica de identificação que representa o alistamento militar à boca, mimetizando o gesto da hóstia e prestando uma derradeira homenagem a Enzo, o noivo assassinado no campo de batalha.

A restauração da memória é outro atributo fundamental na história, pois é ela que permite a Maria uma insistente e obsessiva conexão com seu amado. A obsessão construída por meio da dor irreversível e insuportável de uma perda dilacerante. Como crava Susan Sontag: “A memória é, de forma dolorosa, a única relação que podemos ter com os mortos”. Evidentemente essa memória adquire diferentes contornos no decorrer da narrativa: é social, histórica e afetiva, mas é esta última circunstância que prepondera sobre as demais – tanto do ponto de vista do narrador quanto da personagem.

Mais um momento especialmente belo destaca-se na narrativa de Saviano, quando ele insere a perspectiva do desejo, do erótico que há em todo corpo, mesmo acossado por um cenário nauseante. O escritor nos coloca diante de um gesto simples de Maria, de uma irreprimível e despretensiosa sensualidade, numa cena carregada de volúpia. Ela molha somente as pontas dos dedos, enfiados num copo d’água, e os desfila entre os seios, no vão do decote, somente para se refrescar, repetindo um gesto comum às mulheres de sua aldeia, como era o caso da própria mãe de Saviano.

Se não resta dúvidas de que a linguagem de Saviano é lírica, tampouco que sua pena poetiza aquilo que atende pela alcunha de horrendo, sublimado numa imagem que, não fosse a profundidade da história, soaria patética: “a noivinha que tropeçou no véu e caiu antes de chegar ao altar”. Maria é uma personagem trágica como a mais trágica das personagens desta tragédia grega. Com exceção do depoimento poético, de verve onírica, que abre o texto, os demais depoimentos de Maria são praticamente banais, e livres de empostação.

Tragédia. Lateja outro elemento determinante para que o horror estenda sua asa sobre o enredo descortinado por Saviano. O fato de a morte tê-la encontrado (Maria e toda sua vida) ainda fresca, numa idade em que não se concebe a sua presença. “Assim é Maria, uma caricatura de suas avós vestidas de luto perene”. A história ganha ares de tragédia grega, aquela em que toda Humanidade é obrigada a padecer pelo pecado original, e nos atira na face os dados da sorte (e do azar) que atestam essa tragédia imanente da existência.

“Quando morre um jovem, ele deve ser de todos. Como um peso a ser compartilhado ou um infortúnio do qual não se pode escapar”, pontua Saviano. O luto de Enzo é único e concreto para Maria, mas simbólico para o leitor: representa o luto de outros jovens; de outras mortes; o luto pelo incompreensível. “Como se, pela palavra, fosse possível ao poeta (e ao leitor) reconquistar, de repente, a intuição da vida em si mesma” Alfredo Bosi

A escrita de Saviano revela e revolve, com os órgãos da literatura, o corpo poético da palavra, o insólito da situação de Maria, condicionada a um destino antinatural, a viver uma vida de velha num corpo jovem. Não existe explicação plausível, que dê conta de tal atrocidade. Maria é condenada a viver o impossível. O plano social e moral não é mais alvissareiro do que o metafísico.

“Se sorrio, sorrio demais e já o esqueci; se tenho lágrimas nos olhos, murmuram que devo parar com isso porque chorar não vai trazê-lo de volta; e se fico impassível, emitem logo o veredicto: enlouqueceu de dor”. A personagem é colocada numa posição de impossibilidade: não há saída ou perspectiva para ela. Está condenada ao marasmo porque qualquer decisão será julgada negativamente. Essa condição a oprime; a condição para ser da irreversibilidade. “Minha loucura está prevista pela irreversibilidade da vida”, sugeriu o cineasta húngaro Béla Tarr, em trecho do perturbador longa-metragem “Danação” (1988).

Transformação. “Maria faz diversas pausas enquanto fala. Presta atenção para não se perder. É arriscado, muitas vezes ela se perde nas lembranças, não recupera mais o fôlego, sentindo-se sufocada por tudo que não aconteceu. Sufocada pelo oxigênio. Como um peixe fora d’água”. Pois o absurdo da situação a transfigura. Esta palavra talvez seja a chave para a compreensão da premência e do vigor que assolam o texto de Saviano. No livro “Diante da Dor dos Outros” (2003), Susan Sontag recupera uma reflexão do filósofo francês Georges Bataille (1897-1962), que desenvolveu teorias ligadas ao erotismo, ao sagrado e à transgressão.

“Bataille não diz que obtém prazer com a visão desse martírio. Mas diz que pode imaginar o sofrimento extremo como algo mais do que o mero sofrimento, como uma espécie de transfiguração”. Se a realidade não dá conta da situação, é preciso que a arte – e a beleza e o amor – faça este papel. É sabido que uma das capacidades da arte é ultrapassar a realidade, assim como o fazem a religião e as drogas. No uso de substâncias psicotrópicas, na transcendência através da fé e na elaboração do real mediada pela poética, suspende-se a materialidade do mundo físico como propulsora de desejos e decisões para que elementos de matriz mais fluida e volátil imponham a sua cor.

“Maria parece ter adquirido uma sabedoria que não combina com a sua pouca idade. Adquiriu-a no evaporar das horas, que passam sempre iguais, no tempo que parece correr além daquele de sua idade, nos minutos que se chocam uns com os outros e se atropelam na sua vida que já não tem mais o fôlego que deveria ter”. O labor literário tece uma camada de realidade que ultrapassa tudo.

A conjuntura trágica adquire requintes de crueldade quando é informado aos parentes que Enzo estava no tanque que sofrera o ataque a bomba das forças inimigas, mas permanecia vivo e havia se salvado. Saviano não nos poupa da atrocidade cometida contra os soldados, sem, todavia, ceder vez à demagogia. Os detalhes do corpo em sofrimento mantêm a humanidade da personagem, o relato se torna comovente, porém não descamba para a pieguice.

É quando ele toma distância do discurso midiático e se antagoniza à ética discursiva do capitalismo, que transforma tudo em produto a ser consumido. A transformação da arte se dá por outra via, oposta e antagônica, assim como antagônicos são a beleza e o sublime, cuja inglória tarefa do escritor (retomando Burke) é reuni-los num equilíbrio delicado, sensível, com talentos de alquimista.

“Aqui se treina para se considerar tudo que acontece como inevitável. É diferente do antigo fatalismo, que fazia aceitar tudo de joelhos e de braços abertos. O treinamento cotidiano para se conformar diante dos fatos, atualmente, leva a uma atitude muito mais agressiva. Se aconteceu, devemos ser capazes de tirar proveito disso, e essa atitude nos impossibilita compreender”. Saviano insere a dimensão política e seu viés cultural na construção de uma postura mesquinha ante a tragédia, notando que a perspectiva religiosa é substituída pela capitalista. O pensamento se conecta ao labor de maneira simples e fluida.

“Exatamente lá, onde percebemos que não podemos obter qualquer proveito, a raiva e a dor nascem”. Quando vige a falência de uma lógica, os instintos animalescos são restaurados, podendo a sublimação levar a uma melancolia letárgica ou a um desespero impotente e estéril. Na lógica capitalista, tudo é ponte/meio para um único fim: o proveito, o lucro e o acúmulo.

O episódio do gerente de banco que negara financiamento ao casal, empurrando Enzo para o precipício da desordem e do caos é expositivo da crítica de Saviano à hipocrisia produzida por um sistema indiferente ao sofrimento alheio, que proclama a independência (eu não dependo de ninguém) como valor supremo, em detrimento da solidariedade (todos dependem de todos).

A partir desta compreensão, o escritor infere que a crueldade na informação de que Enzo ainda estava vivo se escora num sistema burocrático e egoísta, em que os interesses da guerra prevalecem. Quando Maria alcança a verdade deste terrível fato, o texto já nos aproximou da personagem com o sentimento da compaixão, ao invés de querer explorar e tirar proveito de sua dor. Sua reação intempestiva é compreendida e solidarizada conosco.

“Maria insistia que queria vê-lo, que precisava vê-lo, que tinha o direito de vê-lo. Mas não se pode mostrar um corpo morto na guerra. Até mesmo a morte tem a sua gramática”. O irmão de Enzo leva Maria, de olhos vendados, até seu corpo. “Não sei como ele voltou, não vi como o devolveram para mim. Sentia um cheiro horrível, igual ao cheiro de pele de frango quando queima. Aquele não era o seu cheiro. Senti que ele estava ali, ao meu lado. Senti que algo tinha se salvado. Era como se entrasse numa sala em que ele estivesse presente”. Após a rememoração de sua personagem, Saviano toma a palavra pelo pescoço: nesse caso, o que difere a carícia da asfixia é o tom que ele emprega. “As palavras podem enganar, o tom não.” Alfredo Bosi

A sociedade de consumo banaliza o horror e o sofrimento, reduzidos a meros produtos. A morte torna-se fútil. A arte, com as armas do belo e sua linguagem poética, lírica, procura restituir a dignidade da dor humana. Como lidar com o inconcebível, com o horror? Por meio da linguagem, da poesia, do belo e da poética. “A beleza é o início do terror que podemos suportar”, dispara Godard com os letreiros provocativos que ele lança na tela feito projéteis, numa das cenas de seu contundente (e belo) filme “Carmen de Godard”, de 1983.

“Enquanto se recordava de seu encontro às cegas, Maria tinha as faces umedecidas pelas lágrimas. Mas parou de chorar de repente. Como se tivesse decidido represar o que guardava dentro. Eu a vi, pela primeira vez, abraçada a um caixão, de joelhos”. Saviano reconstitui as cenas com toda a dramaticidade, substituindo, sensivelmente, o alarme pela compaixão. Ele oferece o ombro à personagem e suscita em nós a mesma propensão a acolhê-la em sua tormenta.

O escritor acolhe pela escrita, e nossos ombros se tornam ouvidos que se fartam de palavras compassivas e generosas. Há uma retribuição à dor do outro, compartilhada através da escrita. Retribuímos agradecendo a generosidade de dividi-la e compreendendo que, na tragédia grega da existência humana, todos sofremos, pois essa contingência abala indiscriminadamente: caminhamos juntos para o destino-final. “Soldados que voltaram somente como corpos, carbonizados, dilacerados, em pedaços”. Um corpo em tais condições é abominável, mas a arte não sossega enquanto não o ritualiza, devolvendo a potência que o originou.

Saviano é discípulo do belo porque, “não há reza que possa salvar nem gesto que possa justificar e, portanto, tentar um conforto. No entanto, também nesse caso a fantasiosa possibilidade humana de amar, apesar de tudo, permite que o destino encontre um sentido e que a tragédia se transforme em um doce desvirtuamento do existir”. Ao escolher a arte, ele parte para a codificação do horror, com o encadeamento de frases bem construídas, sugerindo ritmos, pendores e sons, que nos suscitam o abafamento de um coração ou o escorrer de lágrimas, que ressoam a vibração e o tilintar de uma alma judiada pelo corpo.

“Transformar é o que toda arte faz”, sustenta Susan Sontag. “como imagem, uma coisa pode ser bela – ou aterradora, ou intolerável, ou perfeitamente suportável – de um modo como não é na vida real”, reforça a escritora. “O que é uma imagem-no-poema? Já não é, evidentemente, um ícone do objeto que se fixou na retina; nem um fantasma produzido na hora do devaneio: é uma palavra articulada”, complementa Alfredo Bosi. “A ideia, na imagem, permanece infinitamente ativa e inexaurível”, prossegue Goethe.

Elixir. Ainda que não se trate, estruturalmente, de um poema na concepção clássica, a escrita de Saviano fia-se nesse limite entre a prosa e a poesia, como da própria ambivalência de sua condição-dupla (que é, também, a condição do texto: horror e beleza). Entre o rigor de pensamento e a liberdade do ser; é nessa fronteira que se situa o intelectual e o artista, iluminado pela escuridão, referenciando essa imagem antropofágica da deglutição do horror pela beleza. Imiscuindo-se uma na outra até chegar à medula, já indistinguível.

“É estranho. Me dei conta de que sei muito pouco de Enzo. Não me deixaram nada porque não nos deram tempo para as lembranças, não nos deram tempo de construir um passado. Tínhamos só o que nos acontecia, e nada mais. Agora que tiraram Enzo de mim, é como se me tivessem tirado tudo. Alguém precisava ter dito a mim que é assim que funciona. Que eu ainda não tinha nada… que estava me preparando para ter. E bem quando começava a ter, não tive mais”.

O peso da realidade terrível é sublimado pela poética invisível que nos toca e, paradoxalmente, alcança o real. A tarefa do escritor é compreender o inevitável e, através da linguagem, produzir o impossível. Porque apenas a linguagem, somente a criação estética redime o ser humano desta irreversibilidade da existência. “No vazio que se abre além do horizonte de uma visão presente e finita, é possível imaginar” Alfredo Bosi

Maria é o retrato de toda uma vida imaginada que não se realizou. A interrupção pela metade. Como quem sussurrasse, baixinho, ao ouvido do interlocutor: tenho o que tenho, mas tenho, principalmente, o que perdi. É com as tábuas da perda, por meio de uma estrutura lacunar, entre as sendas e fendas da prospecção, que Saviano reconstitui, pelo viés da arte, a trágica vida de Maria e todo o horror que a circunda e espessamente envolve seus dias, subjugados a uma escuridão diuturna.

“Não sabe ainda. Como se Enzo estivesse vivo, não tivesse acabado. Como se houvesse ainda tempo. Maria tem certeza de que continua, de que aquilo que foi Enzo continua a existir”, pondera Saviano, que, nesse instante, resgata a bela canção “Carmela”, uma popular cantiga napolitana, de entonação passional como estas costumam ser, lançada pelo cantor italiano Sergio Bruni, em 1975, de cujo último verso ele toma emprestado o título de seu texto.

“Maria tem uma certeza: guardar Enzo, arrancá-lo da morte, será possível apenas enquanto continuar a amá-lo. (…) E, agora, toda vez que me falta o conhecimento, que me falta a definição, toda vez que não percebo o sentido último, sei bem qual é a verdade do amor. A única que o peito ainda escuta e compreende: o contrário da morte.”

Comparação. A recorrência da canção popular na sublimação de sentimentos que são, ao mesmo tempo, individuais e coletivos, é um dado que aproxima a narrativa da experiência brasileira. Há um sem número de canções que realizam essa proeza, mas uma em especial, “Engenho de Dentro”, de Jards Macalé e Abel Silva, contempla o resumo com a competência do aforismo, sublinhada e repetida à exaustão ao final da música, tomando as vezes de um próprio e insistente refrão: “quem prazerosamente vai sofrer”. Encolhendo as pontas entre prazer e dor, beleza e horror, deleite e sofrimento, com o condão da arte, a letra vai ao âmago da questão do sublime: ele é terrível, porém belo.

A insuportável dor da ausência, feito membro amputado cujo nervo ainda nos tortura, reaparece expressa na canção “Pedaço de Mim”, de Chico Buarque, lançada em 1978, num dueto com a cantora Zizi Possi. Ao longo da letra, Chico cria imagens que sublimam a pungência dessa dor, com metáforas que enchem de lirismo o dilaceramento atroz causado pela ausência. “Que a saudade é o revés de um parto/ A saudade é arrumar o quarto/ Do filho que já morreu/ Ó pedaço de mim/ Ó metade amputada de mim/ Leva o que há de ti/ Que a saudade dói latejada/ É assim como uma fisgada/ No membro que já perdi”.

Aqui, os versos criam beleza a partir do horror, ou, antes, a beleza advém do próprio horror causado pela imagem de um membro amputado, do túmulo de um filho mimetizado pelo vazio do quarto, que Chico consegue transfigurar em beleza através dessa conjunção de imagens que, colocadas desta forma, ritmadas e comparadas, suspendem a atmosfera do fato em prol da beleza poética do impalpável.

Com a carne do concreto, Chico elabora a tessitura do signo verbal como paradigma da transfiguração estética, como quem suspeita que tudo que nasce é dor, e um dia será pintura. Ou seja, o grito agudo, lancinante, a navalha cravada no peito só pode ser elaborada por meio da linguagem, caso contrário o ser humano torna-se refém do sofrimento, sem aquela possibilidade da fresta de luz que, justamente por saber que o alívio existe, não crê em redenção. A poética serve ao intento. “A literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados, nem pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de fora da experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo”, nos ensina Beatriz Sarlo.

Com a ferramenta da imaginação, o escritor surpreende a irreversibilidade da vida (e da morte) transfigurando o que era inconcebível (e continua sendo) no impossível (que será para toda a eternidade). O homem perece, a obra perdura. A dor de Maria permanecerá impressa nas páginas que Saviano preencheu, com o rótulo da beleza, do amor e da compaixão, mesmo depois que ela tiver encontrado o mesmo destino de seu noivo, com quem a promessa de um casamento feliz e de uma vida plena de conquistas nunca se consumaram, em ilusões ceifadas precocemente por uma morte assustadora e injusta, provocando espanto e horror. Mais do que isso, a obra literária, a elaboração do horror através do lirismo oferece prazer imediato, alívio para o agora, deleite instantâneo. Transfigura o presente, o passado e o futuro. Saviano resume assim o seu projeto literário e de vida: “Conseguir olhar para a beleza e, a partir dela, encontrar a salvação”.

Vingança. A linguagem que produz beleza – no caso de Saviano – e, de acordo com Burke, leva ao amor. A linguagem lírica permite a superação, por meio da poética e da beleza despertada pelos sentidos, de eventos inconcebíveis. A beleza é o prazer dos sentidos; o amor é o prazer dos sentidos, o puro deleite. O prazer dos sentidos vinga, à sua maneira, a morte e o horror.

“Pois, uma vez que a imaginação é somente o representante dos sentidos, as imagens apenas podem ser-lhe agradáveis ou desagradáveis sob um princípio idêntico, segundo o qual as coisas reais lhes causem prazer ou aversão, e, por conseguinte, deve existir um acordo quase tão unânime com relação à imaginação como quanto aos sentidos dos homens”, assinala Burke.

O que nos leva a concluir e acreditar que Saviano optou por entregar prazer aos nossos sentidos, valendo-se de signos verbais (as palavras sonoras) como o escultor ou o entalhador que, da pedra e da madeira, erigem monumentos que muitas vezes lembram a nossa miséria, o que não nos impede de sentir deleite diante da forma concisa, do traço firme e exato, da sinuosidade de uma imagem que ressoa e reflete a realidade, ultrapassando-a, poética. Talvez nesse lugar do impossível, onde areia e neve podem ser combinados, vibre uma contínua eternidade.

Referências

BURKE, Edmund. Uma Investigação Filosófica Sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo. Editora da Universidade de Campinas, São Paulo, 1993.

BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia. Editora da Universidade de São Paulo, SP, 1977.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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