*por Thiago Prata (jornalista e crítico musical)
“Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos” Antoine de Saint-Exupéry, em “O Pequeno Príncipe”
Na última semana, conferi com um misto de deleite e angústia um conto de Julio Cortázar, intitulado “O Perseguidor”. Nele, o escritor nos apresenta ao saxofonista de jazz Johnny, que faz jus a uma característica predominante na obra do argentino: a complexidade de seus personagens. Ao longo da narrativa, somos bombardeados com uma série de questionamentos feitos pelo músico, como a luta que trava contra seus demônios – mas será que são “apenas” demônios ou é algo além disso?
Chega a um ponto em que Johnny indaga se aquele que vê no espelho é realmente seu reflexo, ou se é uma construção daquilo que as pessoas dizem que ele é. Em outra passagem, o saxofonista confronta Bruno, responsável pela biografia do artista: “Por que você me fez aceitar seu Deus no livro? Eu não sei se existe Deus, eu toco a minha música, eu faço meu Deus, não preciso das suas invenções…”.
Fantasmas. Um dia depois de terminada a leitura, assisti a “Ray” (2004), dirigido por Taylor Hackford, estrelado por Jamie Foxx no papel do protagonista e que mostra um período da vida e da carreira de um dos maiores gênios da história da música, Ray Charles, que morreu no ano de lançamento da película (ele chegou a ler o roteiro em Braile) e, se estivesse vivo, completaria hoje nove décadas. No longa-metragem, considerado uma das melhores cinebiografias de todos os tempos – atestado por críticos e fãs, e que rendeu a Foxx o Oscar de melhor ator, honraria merecidíssima, diga-se de passagem –, há momentos que me fizeram revisitar o conto de Cortázar.
Não porque Johnny e Ray possuem, necessariamente, traços em comum: até porque o saxofonista do livro se vê frustrado de várias formas (não é só frustração na verdade), enquanto o pianista da vida real (e tão bem retratado no filme) faz questão de deixar claro o quanto ele é “o cara”, tornando-se exemplo de superação e importante nome na luta contra o racismo (assim como seu amigo Quincy Jones). Porém, assim como Johnny, Ray também se via atormentado por vícios e fantasmas (do passado e do presente).
Racismo. Ray Charles Robinson nasceu no dia 23 de setembro de 1930 em Albany, na Geórgia, um dos estados mais racistas dos Estados Unidos à época e onde, décadas depois, seria agraciada com um belo “não” do Rei do Soul. Sim, na década de 1960, o músico, já vivenciando o sucesso e tendo alcançado um tórrido status em uma cena musical efervescente no país, se recusou a se apresentar numa casa de shows na cidade de Augusta, na Geórgia. O motivo: não tocaria para uma plateia segregada.
O pianista acabou proibido de subir ao palco de outras cidades do Estado. Anos depois, autoridades da Geórgia, em uma reparação histórica, pediram desculpas a Ray. Mas ali, nos anos 1960, emergia uma figura fundamental na luta contra o racismo e as desigualdades. Influente nas atitudes e no discurso, Ray Charles transformou talento em sua própria galinha dos ovos de ouro. A destreza em transitar por estilos como gospel, jazz, country e blues ou mesmo uni-los, tudo sob a benção do soul, renderam uma série de hits.
Reflexos. Se você nunca ouviu Ray Charles, por falta de interesse ou por não ser deste planeta, pode dar fim a esta heresia conferindo uma gama de preciosidades que ele deixou para a humanidade. Peças do quilate de “I Got a Woman”, “I Can’t Stop Loving You” e “Hit the Road Jack”. Só que a trilha para tantas glórias não apenas foi infestada de pedregulhos, como também laureada de fantasmas. A começar na infância, quando viu seu irmão mais novo morrer afogado numa banheira e perdeu a visão aos 7 anos (a causa para a cegueira é discutida até hoje). Aos 15 anos, perdeu a mãe. Alguns anos depois, já buscando um lugar ao sol, iniciou um namoro com drogas pesadas.
Da cocaína, migrou para a heroína, o que estremeceu seus laços com esposa, filhos, amantes (eram várias, sendo que algumas delas eram colegas de banda), empresários, companheiros de música e outras pessoas. Acabou preso por porte de drogas. E não parou por aí. O vício andava lado a lado com o racismo que sofria e também com constantes ataques de evangélicos, que o acusavam de levar a música de Deus (gospel) ao altar de satã (o jazz, o country…). Sintetizar isso em palavras chega a ser até desleal, mas dá uma ínfima fração de uma ideia de quem foi Ray Charles, um ser humano que conseguiu superar todo tipo de brutalidade, seja fruto da sociedade, seja criado por ele mesmo.
Ray podia até não conseguir se ver refletido no espelho (como Johnny de Cortázar), mas se tornou o espelho de gerações por meio de sua própria narrativa, criando uma singular literatura musical.
Fotos: Site Oficial/Divulgação.