Paulo Bellinati chega aos 70 anos compondo para Portugal e Austrália

*por Raphael Vidigal

“Mas aquele que nas sublimes volúpias da música não sentiu a tristeza de um Deus só e abandonado não pode nem imaginar a essência da música. Só através da música podemos adivinhar quais são as tristezas e alegrias de Deus…” Emil Cioran

Paulo Bellinati, 70, está atrasado. Enquanto o mundo lá fora se vê paralisado por uma pandemia que caminha a passos largos para vitimar, em pouco tempo, 140 mil brasileiros, ele trabalha incessantemente na composição de três quartetos para quatro violões, e corre atrás para deixar o cronograma em dia. “São músicas de concerto que demoram um ano para fazer, de longuíssimo prazo, com 6, 7, 8 minutos de duração. É muita música, nota, ideia”, comenta. Desde que publicou suas obras para quartetos, as encomendas começaram a chegar. As mais recentes vieram de Portugal e Austrália, “com contrato, salário e tudo pra escrever uma original”, uma delas batizada “Guitar Track”. “Além da felicidade, me dá um recurso financeiro. Se o compositor fica quieto, vai comer como? Especialmente agora, sem concerto, com tudo cancelado, fica difícil viver”, diz.

Bellinati acaba de comemorar aniversário. A partir de hoje, ele se inscreve no clube dos septuagenários. Suas prioridades, agora, são outras. “Mudou tudo, né? A gente é meio que estudante a vida inteira e uma hora percebe que se transformou em professor de um monte de gente. Mudam as responsabilidades. Tinha uma época que era normal ficar oito horas estudando, escrevendo música. Essa realidade não me pertence mais, gasto o tempo de outra maneira”, conta. No topo do ranking ele coloca os filhos. E, depois, a vontade de documentar tudo de importante que realizou com a música. “Tenho que tomar um certo cuidado para não deixar desaparecer. De 1992 pra cá, quando comecei a publicar meus trabalhos nos Estados Unidos, senti que precisava deixar as coisas gravadas e escritas. Me pergunto: ‘O que documentei hoje? Qual música, projeto ou disco?’”.

Garoto. O temor do músico faz sentido. Ele próprio foi um dos responsáveis por devolver ao Brasil a memória de um de seus compositores mais talentosos e esquecidos. Após passar seis anos estudando violão clássico no Conservatório de Genebra, na Suíça, o paulistano Bellinati retornou a seu país em 1981. “Precisei me afastar para entender o Brasil de outro jeito. Quando saí, o Brasil não era tão valorizado por nós. Então me descubro compositor e começo a pesquisar Clementina de Jesus, choro, a música do Nordeste, e a mergulhar nesse universo da música brasileira”, recorda. Imediatamente, ele é integrado, em 1982, ao Pau Brasil, que reputa como “o mais importante grupo instrumental do Brasil”, vencedor de prêmios referenciais da música brasileira desde a estreia.

“Foi uma maneira sensacional de voltar artisticamente ao meu país. Eu era um estranho total, tive que começar do zero, fazer contatos, ninguém se lembrava de mim. Eu não era conhecido, tocava em bailes, fui embora com 24 anos”. Com o Pau Brasil, Bellinati conquistou o reconhecimento de seus pares. O primeiro LP é de 1983, com uma capa que emula a bandeira verde e amarela da nação, com um detalhe. No lugar do “Ordem e Progresso”, lê-se o nome do conjunto. “Começo a me entender mais brasileiro do que nunca”. Nesse contexto, entra Garoto. “Ouço o LP do Laurindo de Almeida, com três músicas do Garoto, e fico muito impressionado. Vou até o Manoel Simões, provedor de partituras, o nosso ‘museu do violão’ aqui em São Paulo, e aprendo essas três músicas do Garoto”.

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Tributos. A reação de Bellinati é de incredulidade e identificação. “Acho incrível, fico pensando em como passou batida uma música tão sensacional. Eu ouvia os acordes, o jeito de botar a mão no violão, e entendia, fazia parte do meu universo. Mas tocar aqueles acordes em 1945 era um pioneirismo”, relata. Ele retorna à casa de Manoel Simões e recebe uma fita cassete com mais canções de Garoto, além de manuscritos. “Fico maluco. Começo a colar na fita. Chega um momento em que estou tocando igual ao Garoto. Resolvo escrever as partituras até ter um material para gravar o disco”. Em 1986, pelo selo Marcus Pereira, é lançado o álbum com 11 composições de Garoto, dentre elas “Duas Contas”, “Enigma” e “Gente Humilde”. Em 1991, nos Estados Unidos, chega à praça um trabalho ainda mais completo, com 24 faixas, intitulado “The Guitar Works of Garoto”.

“Muita gente fala que fui esperto de pegar um negócio que ninguém tinha feito, mas não foi bem assim, Garoto foi entrando na minha vida aos poucos”. Inquieto, Bellinati decidiu, em 2002, dedicar um disco a Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o Tom Jobim. Ele almejava “um projeto diferente, com as instrumentais mais cabeludas, sem ‘Corcovado’, ‘Wave’, ‘Garota de Ipanema’, ‘Samba de Uma Nota Só’”. “Eu quis adaptar para o violão o universo de harmonias, contracantos e orquestrações do piano do Tom ”. E obteve êxito. “A escolha do repertório deu essa direção. É um Tom mais erudito, sofisticado”, observa. A abordagem seguiu “respeitosa, quase como o original” que o havia guiado no tributo a Garoto. “Digo sempre para meus alunos: ‘Se você vai trocar um acorde do Tom, é bom que o seu seja melhor, senão, fica quieto”, diverte-se.

Encontros. Ao lado de Heitor Villa-Lobos, Bellinati elege Tom Jobim como os “deuses da música brasileira”. “Bebemos dessa fonte o tempo inteiro”. Eduardo Gudin foi quem o apresentou a Mônica Salmaso. Fã da cantora, Gudin era diretor de uma gravadora e incentivou Bellinati a ser o arranjador do disco da pupila. “Naturalmente, foi se tornando um disco de voz e violão. A gravadora odiou e não quis mais o trabalho. Ficamos com aquele monte de arranjos produzidos, sem gravadora, sem disco, sem nada”, relembra o entrevistado. Ele resolveu recorrer à gravadora norte-americana com quem havia lançado a obra de Garoto e “Serenata: Choros & Waltzes of Brazil” (1993). “A Mônica estava começando e topou. Ela topava tudo. À medida que as cantoras ficam famosas, é difícil terem essa generosidade de realizarem um trabalho em duo”, lamenta o instrumentista.

“Nem toda cantora gosta desse tipo de trabalho em que o violão tem um papel muito importante. Não estou ali acompanhando, não é ‘um banquinho, um violão’, é um violão com som de orquestra”, completa. O resultado foi o disco “Afro-Sambas”, de 1996, com “Consolação”, “Canto de Ossanha”, “Labareda”, “Tristeza e Solidão” e as demais canções da icônica parceria entre Vinicius de Moraes e Baden Powell. “Esse é um trabalho mais autoral, completamente novo, aparece só uma sobra do violão do Baden”, analisa Bellinati. Ao longo da carreira, ele se habituou a escrever arranjos e tocar com artistas como Gal Costa, Leila Pinheiro, Edu Lobo, João Bosco e Chico Buarque. Em 1994, foi laureado com o Prêmio Sharp pelos arranjos de “O Sorriso do Gato de Alice”, de Gal. “Meu xodó é a obra de compositor, os arranjos e concertos para violões e orquestras”. Em 1988, ele venceu, com a música “Jongo”, o Carrefour Mondiale de la Guitare.

Missão. Logo que regressou ao Brasil, Bellinati foi convidado para ser guitarrista no grupo do falecido baixista Nico Assumpção, “um músico incrível”, exalta. Era ainda o início de uma trajetória recheada pela diversidade, guiada pelas cordas. “Não existe em nenhum lugar do mundo tantas maneiras de tocar violão como no Brasil. Pelo país inteiro a gente enxerga essa exuberância de estilos musicais. O violão brasileiro são muitos. Na minha discografia, existem vários deles. O violão que toco no Pau Brasil não tem nada a ver com o que toco no Garoto, que é diferente dos ‘Afro-Sambas’ e assim por diante. Jazz brasileiro é um nome muito usado por falta de outro, mas é pobre diante da riqueza que temos aqui”, avalia o músico. Bellinati sente que está chegando perto da “missão cumprida”. “Estou bem de saúde, tranquilo, não me sinto com 70 anos. Sigo criando, mas o foco do meu dia a dia hoje é eternizar as coisas que foram criadas”, resume.

Foto: Gal Oppido/Divulgação

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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