*por Raphael Vidigal
“vontade de viver a humanidade do corpo, com seus vendavais de ciúme e impulsos homicidas e traições e sedes trágicas.” Caio Fernando Abreu
Cazuza era figurinha carimbada no Madame Satã. Habituée desse “berço de nossa salada cultural efervescente nos anos 80 e 90”, como Laura Finocchiaro define a famosa casa de shows em São Paulo, ele viu a entrevistada no palco e a visitou no camarim. Laura retribuiu o gesto quando Cazuza se apresentou na capital paulista. “Amigos em comum nos colocaram em um almoço na casa da Vange Leonel, outra grande artista brasileira”.
Cantora, compositora, ativista feminista e LGBTQIA+, Vange Leonel morreu em 2014, vítima de um câncer no ovário. Fundadora da banda Nau, ela protagonizou, no Circo Voador, em 1989, o último espetáculo que Cazuza presenciou. “Quando ele já estava no hospital (para tratar a Aids que o vitimaria em 1990, aos 32 anos), fui procurada pela produção para fazer a parceria que foi gravada no LP ‘Burguesia’, de 1989”, conta Laura. Ela se refere a “Tudo É Amor”, dos versos “tudo é amor, mesmo se for por carma/ tudo é amor/ pretensão descarada”, antes lançada por Ney Matogrosso em 1988.
Lives. A música integra o repertório que Laura apresenta em uma série de seis lives entre os dias 22 e 27 de abril, sempre às 21h, com transmissão pelo canal oficial da artista no YouTube. O projeto ficou de pé graças à aprovação na Lei Aldir Blanc, editada em socorro aos profissionais da Cultura durante a pandemia. “Decidi por um roteiro que mesclasse minha vida musical antes e durante a pandemia. Na prática, canções que fiz antes desse momento e que simbolizam a minha trajetória. Vou alternar com músicas novas, elaboradas neste momento simbólico para a humanidade, em que tive de buscar na minha própria arte o combustível para a sobrevivência, não apenas financeira, mas, essencialmente, psíquica”, observa a cantora.
Entre as 20 canções, também comparecem as novatas “Link” (com Leca Machado) e “Vírus” (com João Luiz Vieira), além de “Poltrona Verde”, letra do conterrâneo escritor gaúcho Caio Fernando Abreu, que encomendou a melodia para Laura quando idealizava um filme em forma de romance. “Onde Andará Dulce Veiga?”, publicado em 1990, chegou ao cinema pelas mãos do diretor Guilherme de Almeida Prado, outro amigo de Caio, em 2008, com Maitê Proença no papel da personagem-título. As lives de Laura também pretendem dialogar com diversas linguagens, por meio de vídeos, fotografias e capas de álbuns, com apurada produção prévia.
Diversidade. Essa intersecção não é novidade para a artista, que já musicou versos de poetas como Jorge Salomão (irmão de Wally) e Cassandra Rios, ícone da literatura erótica e homossexual feminina, homenageada no documentário “A Safo de Perdizes”, de 2013, com trilha sonora assinada por Laura. “Eu vejo poesia e romance como expressões artísticas que sempre dialogam com a música. Cheguei às obras dos autores por empatia e intermédio de amigos. Comecei a ler, e cada frase foi me inspirando a compor. São três nomes (Caio, Jorge e Cassandra) que oferecem um outro olhar para o mundo, para a sexualidade e para a vida”, analisa ela.
Ativista das liberdades sexuais, Laura compôs, com o poeta Glauco Mattoso, em 2001, o “Hino à Diversidade”, para celebrar a 5ª Parada do Orgulho LGBTQIA+ de São Paulo, quando cantou para meio milhão de pessoas na Avenida Paulista. “Sim, o amor sem rótulos está na minha obra. Para mim, não tem como ser artista e não ser um ser político. Entendo que algumas cantoras, por diversas razões, não tenham ‘militado’ ou tenham preferido se distanciar dessa mobilização pelos direitos da população LGBTQIA+. No entanto, para mim, não fazia sentido me apresentar no mundo sem lutar pelo direito de amar quem eu quisesse”, avalia.
Política. “As paradas foram o estopim para esta catarse geral. Claro que também me preocupo de que tudo vire uma grande ‘micareta’, mas acho que são esforços para mostrar os avanços. No contexto atual, de perseguição do presidente e de seus apoiadores a esses grupos, precisamos nos unir”, completa. “Ela, a coisa medonha, vive se orgulhando do que me envergonha”. A frase abre a parceria entre Laura e Tom Zé, e “nos provoca sobre tudo o que nos aflige como humanos”. Gravada pela intérprete no disco “Oi”, de 2006, “Duelo” é uma “canção até romântica” na visão da artista: “Este meu oposto, que a contragosto tanto me fascina”, cita.
“É a história de pessoas pelas quais nos apaixonamos, mas que não são nossos ‘modelos ideais’. Não é uma canção-protesto sobre os extremos políticos que nos causam desgraça, mas de que a gente gosta”, pontua. Sobre o momento político, ela não tergiversa. “Pessoalmente, não consigo mais me relacionar, exceto de forma protocolar, com quem defende um projeto político de extermínio à diferença. Celebrar a diferença, seduzir-se pela diferença, é da natureza humana. Só que também para isso há limites. Respeito quem sente e pensa diferente. Mas esse outro na ponta do extremo não pode ser cúmplice do aniquilamento de nós”, protesta.
Inéditas. O disco novo, o 15º de uma carreira de quase quatro décadas, iniciada no mercado fonográfico em 1992 e que contou com uma participação no Rock in Rio um ano antes, irá refletir essas vivências contemporâneas. Elaborado em meio a uma rotina de isolamento social, ele está previsto para julho, mas Laura prefere guardar o batismo em segredo. “Todo artista trabalha muito em casa. Para quem canta, a casa sempre foi mais do que um lugar para dormir. É uma espécie de santuário com ritos para compor e ensaiar. Nesse aspecto, não foi um empecilho. No entanto, a tragédia social e política do país tem ocupado toda minha atuação como artista. A pandemia está matando mais pobres e negros e vem escancarando as nossas injustiças. São 4 mil vidas perdidas por dia e uma sensação de impotência”, desabafa.
“Ou seja, qualquer pessoa repensou o seu modo de viver durante a pandemia. Como artista, a dor me fez produzir mais e descobrir que o fetiche da presença física diminuiu com as lives. Mas nada supera um show ao vivo, o olho no olho com seus fãs”, complementa. Fã de sua irmã Lory F. – que inspirou a personagem Márcia Felácio do romance de Caio Fernando Abreu –, Elis Regina, Mutantes, Led Zeppelin, Rolling Stones e Beatles, ela os reputa como “gênios que se doaram por inteiro à arte”. “Foram as minhas bases para entender o rock, o meu motor no mundo”, sublinha.
Independente. Laura garante que se descobriu artista aos 9 anos de idade, tocando violão. “A música passou a ser o meu equilíbrio. Mas as escolhas que fiz foram determinantes”, vaticina. Ela optou por trilhar diversos caminhos à margem da grande indústria do entretenimento, das gravadoras e dos chamados “grandes” empresários. “Esse mundo ruiu e foi substituído por outro, até mais perverso para os artistas independentes. O dinheiro se deslocou do tradicional jabá (verba para que emissoras tocassem e promovessem os artistas) para as redes sociais e as plataformas”, denuncia. Para corroborar a tese, ela se vale de um exemplo pessoal e caseiro.
“Escolhi uma música minha para ouvir numa dessas grandes gigantes de streaming musical. Tocou uma vez. Depois, sem que eu escolhesse, a plataforma me passou direto para uma dupla sertaneja. Imagine quantas pessoas não podem pagar esses planos e acabam sendo induzidas a ouvir algo pré-selecionado e que já tem todo apoio da indústria?”, questiona. “Eu sobrevivo no Brasil com ética e dignidade, mas o preço a se pagar é o que chamo de ‘nova invisibilidade’. A saída para nós é buscar editais de empresas e do poder público para tentar financiar nossos projetos autorais. A Cultura também é o motor da economia, e o Brasil poderia ter muita projeção lá fora se valorizasse os que estão fora do universo midiático”, finaliza.
Foto: Roberta Guimarães/Divulgação.