“Operação Massacre”, de Rodolfo Walsh, denuncia violências da ditadura

*por Raphael Vidigal

“Protegido pelas sombras, acabava de entrar em casa e talvez viesse remoendo algo por dentro. Nunca saberemos ao certo. Os homens levam para o túmulo muitos pensamentos amargos” Rodolfo Walsh

Há um incômodo que persiste durante toda a leitura de “Operação Massacre”, do qual é impossível se desvencilhar. Embora em um ou outro momento ele se retire do foco, a sua permanência é tão contínua quanto a da voz que narra. Umberto Eco nos alerta para o fato de que é necessário ignorar a vida pregressa do autor e se concentrar somente na obra enquanto analisamos um texto. No caso do livro de Rodolfo Walsh, essa missão se torna mais ingrata à medida em que avançamos na trama e somos apresentados às circunstâncias do ocorrido. O escritor reconstitui um dos mais bárbaros crimes praticados pela ditadura argentina que depôs o caudilho Juan Domingo Perón, na década de 1950. Em 1977, Walsh passou a engordar uma infame e famigerada lista de desaparecidos políticos.

Seu corpo nunca foi encontrado. Tinha então 50 anos e cerrava fileiras com os guerrilheiros do grupo Montoneros, um dos mais aguerridos na luta armada contra a ditadura encabeçada por Videla, cuja crueldade se tornou lendária. A opção por essa ação direta na realidade ainda não estava no horizonte de Walsh quando ele se aventurou pelas páginas que desembocariam em “Operação Massacre”. Mas, ali, ele já demonstrava indubitavelmente a intenção de interferir na vida cotidiana e ultrapassar a mera contemplação dos ideólogos, como fica evidenciado em prólogos, epílogos e introduções que ele assinou, inclusive se valendo destas expressões. “Operação Massacre” foi primeiramente publicado em semanários antes de chegar ao livro, o que dificultou a sua definição literária.

A investigação minuciosa de Walsh antecipava em uma década o laborioso trabalho de Truman Capote em “A Sangue Frio”, com diferenças fundamentais. Walsh, para começar, assume as lacunas, e revela sem nenhum pudor ao leitor que certos acontecimentos permanecem inconclusos. As dúvidas que não se dissipam não travam a narrativa, pelo contrário, elas servem de base para que Walsh, num entrecruzamento de dados, versões, depoimentos e farta documentação ofereça o ponto de vista que mais se aproxima da verdade, sua obsessão inegável nessa dolorosa travessia. Ao interpor a técnica literária, ele também se mantém na distância da possibilidade, avaliando e interpretando o peso de cada reação –, mas está sempre amparado por perspectivas históricas…

Por exemplo no caso do oficial Julio Troxler, cujo passado militar o auxilia na hora da fuga; ou do sobrevivente Giunta, habituado a memorizar semblantes em razão do ofício que desempenha. Essas características práticas colaboram para o retrato, muitas vezes sumário, noutras mais adequado, que o escritor pinta de seus personagens. A descrição nunca parte somente da interpretação de Walsh, e é geralmente corroborada pela impressão de outras testemunhas, como vizinhos, familiares, colegas de trabalho, amigos, que vão ajudando a conjecturar o estilo e a intenção de cada envolvido no fatídico massacre. A história se passa em junho de 1956, mas Walsh acha por bem iniciar o relato lá pelo fim de dezembro, introduzindo-se de cara ao enredo, assumindo-se como participante.

A história começa quando ela começou para Walsh, e não no dia em que de fato ocorreu. Ao receber aquela estranha notícia meio de esguelha, sobre um homem que escapara a um fuzilamento, seus sentidos são despertados e ele aguça o instinto de investigador. Cumpre dizer que, ao longo da carreira, o escritor se notabilizou pelos contos policiais, sendo premiado em concursos que tinham no júri figuras da envergadura de Jorge Luis Borges e Bioy Casares. As relações com os envolvidos no livro são expostas às claras. Walsh utiliza palavras como “insultado” para descrever os sentimentos que experimenta, e admite a crença instantânea no relato de uma das principais personagens. No caso, Livraga, “o fuzilado que vive”. O tom, certamente indignado, jamais cede à apelação barata.

O recurso jornalístico, entre a manchete e o folhetim, adotado nos títulos, também chama atenção. Eles, por si só, conseguem sublinhar o absurdo dos fatos, evidenciando uma série de equívocos oficiais praticados pelo Estado argentino, ao mesmo tempo em que atiçam a curiosidade do leitor. “O fuzilado que vive”; “Um morto pede asilo”; “‘Só faltava te fuzilarem…’”, e etc., provam esse ponto. Os capítulos curtos podem ser entendidos como outra marca do jornalismo deixada no texto, pela necessidade de capturar tanto a atenção quanto o tempo de um leitor de semanário. Nessas primeiras versões que saíram na imprensa, Walsh afirma, ironicamente, que “Operação Massacre” é um livro sem editora, mantendo o jogo de sedução com seu interlocutor: o que há de tão proibido no que ele conta?

A descrição da vida pregressa das personagens e do que as levou àquela casa onde seriam carregadas para a morte é breve. Walsh procura se deter no essencial. Em algumas situações, as dúvidas são muitas, diversas e se avolumam. Noutras, a certeza praticamente se desloca para o plano da verdade. Mas Walsh realiza essa operação com critério e rigor, sobretudo. As palavras surgem para os olhos de maneira seca, e Walsh obtém um resultado invejável: ficamos quase dispostos às sensações de pânico, insegurança e torpor dos fuzilados. Trata-se, em sua maioria, de doze homens comuns da periferia argentina, pouco interessados ou nada implicados com a tentativa de contragolpe abafada pela ditadura de turno naquela noite com um arsenal cruel…

Depois de serem espancados, humilhados e interrogados, os sujeitos seguem em carros da polícia descrentes do trágico destino que os aguarda. As razões para a patacoada – ridícula se não fosse dramática – que se segue são apresentadas através da dúvida. Teria o delegado-inspetor sofrido um ataque de consciência por saber que, muito provavelmente, assassinava inocentes? A incompetência dos convocados para a missão nefasta era tamanha que o resultado não poderia ter sido outro? Tudo não passou de um bode-expiatório para justificar o aumento da violência e da tortura praticada pelo Estado? No mínimo doze homens foram levados a um descampado para serem fuzilados. Destes, cinco tombaram e sete empreenderam uma fuga alucinante, improvável.

Este é o fato. A que Walsh chega com muito custo. A sequência exigirá um esforço ainda mais hercúleo. Comprovar a verdade para, através dela, alcançar a justiça. O excesso que o autor parece cometer nesse caso é o da ingenuidade. Não existe justiça em regimes de exceção. O que significa uma tecnicalidade quando se praticam torturas nos porões?, como situa Ruy Castro na nota biográfica que encerra a edição brasileira de “Operação Massacre”. A opção de Walsh pela reportagem, como dita pelo próprio, é de ordem ética. O horror não pode ser sublimado pela ficção. É essa mesma constatação que o impele a uma atitude de cunho suicida, quando ele escreve a derradeira carta-aberta à Junta Militar que governava a Argentina em 1977. São suas últimas e tenazes palavras.

No fundo, o livro de Walsh questiona, num primeiro plano, os limites da ação humana frente a atrocidades praticadas por uma conjectura dominante e poderosa; e, num segundo, os limites dos gêneros literários. Ele rompe esses limites duplamente, jogando-se no olho desse furacão com a lente do escritor que é, ao mesmo tempo, jornalista e parte ativa da mudança social que almeja empreender em seu meio; colocando o objetivo da escrita numa dimensão capaz de esgarçar definições que atendem tão somente ao mundo abstrato das ideias. O real se impõe pela estrutura na qual está colocado: um regime de exceção que tortura com requintes de crueldade e aniquila sem nenhuma dose de compaixão. A ficção adensa essa substância com a capacidade do escritor de captar o horror.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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