“Garotas Mortas”, de Selva Almada, retrata a cultura do ódio às mulheres

*por Raphael Vidigal

“Andrea deve ter se sentido perdida quando acordou para morrer. (…) Perdida, aturdida pelo repiquete da chuva e do vento que quebrava os galhos mais finos das árvores do quintal, bêbada de sono, completamente desnorteada” Selva Almada

O título do livro de Selva Almada é tão simples quanto aterrador. “Garotas Mortas”. Quase como uma banalidade. É desta forma, e até com um certo desdém, que a sociedade investigada pela autora costuma tratar esse tipo de acontecimento. Publicado em 2014, o livro se inicia em novembro de 1986, numa manhã em que a escritora ouve pelo rádio a notícia que a impacta a ponto de persegui-la até os dias atuais. Na ocasião, então uma guria com seus 13 anos, ela ainda não tem a real dimensão do que significa aquela barbaridade, mas o choque que jamais de dissipa acende uma fagulha que permanece, compreensível para qualquer pessoa, e talvez, principalmente, uma adolescente.

Andrea foi assassinada dentro de casa, enquanto dormia, com uma única punhalada no coração. Na cidade de San José, na Argentina, a vinte quilômetros de onde mora Selva. A notícia é ouvida ao lado do pai. Ambos permanecem em silêncio, envoltos numa espécie de constrangimento. Depois, o silêncio se dissolve e a vida retoma o fluxo de sempre. Mas algo continua batendo pesado no peito de Selva, latejando como uma ferida aberta. “Minha casa, a casa de qualquer adolescente, não era o lugar mais seguro do mundo. Você podia ser morta dentro da sua própria casa. O horror podia viver sob o mesmo teto”, ela escreve. A autora assume, a partir de então, a função de jornalista, e não apenas.

Mais duas garotas mortas, em situações distintas, se unem a Andrea. Maria Luísa, 15 anos, estuprada, estrangulada e abandonada num regato em meio ao lixo, depois de largar o expediente em que trabalhava como doméstica. Sarita, 20 anos, jamais encontrada, deixa um filho pequeno após ser vista pela última vez com um figurão habituado a circular com garotas de programa. Selva une os cacos como recortes de um quebra-cabeça. Ouve testemunhas, procura familiares, escarafuncha o passado das vítimas, realiza um autêntico trabalho de campo e, junto a isso, dá o seu depoimento particular e subjetivo. Nutre as palavras informativas com um sumo literário que adensa a substância dos fatos…

A prosa seca, quase vítrea, não peca pela indiferença. Selva se vale de uma narrativa precisa, em que somente o estritamente necessário tem o espaço merecido. Diante de atrocidades não é válido invocar mais nenhuma tinta, elas se bastam e o impacto provocado pela realidade, impossível de ser atingido através da linguagem, pode ser apenas sugerido. Selva tem consciência do caráter de incompletude da experiência literária, o que não a impede de oferecer um olhar honesto, justo e digno ao que retrata e, por meio deste gesto, acrescentar uma camada que não substitui a realidade, mas a torna mais nítida. Num ato de comunhão, Selva entra na história também como uma personagem.

Ela relata suas visitas a uma vidente, o que insere algo de exótico na narrativa, até pela natureza da atividade da Senhora, assim referida. O misticismo de lendas aparece como uma tentativa de elucidar questões não-respondidas. Selva se coloca, num delicado equilíbrio entre o distanciamento e a possível solidariedade, sem descambar para a demagogia e, tampouco, adotar um ar blasé típico do cinismo, as duas principais tentações a rondarem todos aqueles que se aventuram como portadores de uma história alheia. Como crenças de uma cultura, as interpretações da vidente, na verdade, revelam uma coletividade. É o caso dos ossos de lobo que viram mulher, e entregam a Selva a sua missão…

“recolher os ossos das garotas, armá-las, dar-lhes voz e depois deixá-las correr livremente para onde tiverem que ir.”, resume. A estratégia narrativa de Selva é interessante e reclama destaque. O tom e o modo de sua escritura, além de conterem o excesso, mantêm-se, por muitas vezes, no âmbito da possibilidade. É uma postura não só de acordo com o preceito de máxima aproximação da verdade e de honestidade ética com o leitor – posto que o gênero praticado, genericamente chamado de “jornalismo de não-ficção ou literário” opera na premissa desse contrato –, mas que, principalmente, professa sua ambiguidade. A via contrária, a do autoritarismo, está plena de certezas que esclarece ao outro.

A ambiguidade, aqui, não pode ser vista como imprecisão ou falta de norte, mas, justamente, no âmbito da esfera dos caminhos que se abrem, da amplitude de visão em contraposição ao campo fechado, enfim, e, em suma, da liberdade. A narrativa de Selva divide suas incertezas e a inquietação da dúvida com o leitor, oferecendo a ele a oportunidade de ser parte ativa da engrenagem literária, longe do mero receptor onde são despejadas as verdades únicas e inquestionáveis, a chave tão cobiçada. Não. Para Selva Almada, o segredo e o mistério são insondáveis, o que não dispensa a caminhada. Ao modo de Guimarães Rosa, “o real não está na saída nem na chegada, (…) ele se dispõe no meio da travessia”.

Desta forma, Selva reconstitui acontecimentos que não presenciou com a lente aguçada da possibilidade, mediada pelo provável. Os dados não são jogados ao acaso. Eles se integram a uma estrutura em que depoimentos, recortes de jornal, pesquisa e aclimatação da época costuram uma teia rígida a despeito de sua aparente fragilidade. Apesar disso, como construção está móvel e pode sofrer com o bramido do vento ou ser encoberta pela sombra de uma árvore. Pontos de indefinição seguem como parte desse desenho a lápis, que não tem a pretensão tola de abarcar o todo. Selva assume o seu ponto de vista ao narrar. E histórias tenebrosas que ouvia da mãe percorrem as páginas enxutas do livro…

Porque o que ela verifica em seu trabalho jornalístico/literário tem nome, embora não fosse reconhecido pela alcunha no período dos fatos. Feminicídio. Termo que passou a ser empregado muito recentemente em debates midiáticos da América Latina, até o reconhecimento, por exemplo, no código penal brasileiro, em 2015. Trata-se do ódio destinado às mulheres e de uma cultura que permite e sustenta relações de violência praticadas, sumariamente, pelos homens, levando, invariavelmente, a fatalidades. Como mulher latino-americana, Selva possui essa perspectiva dupla. Dotada do distanciamento jornalístico e da elaboração literária, ela está sujeita a essa mesma cultura que aniquila mulheres.

Como sujeita da história, parte ativa e, ao mesmo tempo, vítima em potencial, Selva se guia por essa dubiedade que abre um caminho frutífero e próspero para a reflexão. Munida intelectualmente da compreensão da realidade, ela sabe o que é sofrê-la. Possui memória, e também pensamento, como preconizava a filósofa Susan Sontag que, em sua sentença, as enxergava em oposição. Para Selva, mais do que os casos individuais e a especificidade do detalhe, interessa compreender a cultura de uma sociedade que autoriza e incentiva o assassinato dessas mulheres, na qual ela está inserida. Ao refletir com a sua escrita, Selva atua e, aberta às possibilidades, talvez modifique o real. É uma pequena vitória…

Foto: Keiny Andrade/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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