O chocalho da cobra

“Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras!” Mario Quintana

O chocalho da cobra prepara seu bote

O escritor irlandês Oscar Wilde (1854 – 1900) afirma que “nada é tão perigoso como ser moderna demais. Fica-se com uma tendência a virar antiquada de repente”. Por outro lado existe uma piada produzida para a televisão baseada em séculos tão passados que o protagonista garante que nada substitui o texto escrito sobre a pedra, pelo valor de toque e materialidade que essa experiência proporciona, até que ela cai e se espatifa no chão. Há ainda definições que um dia me vieram como forma de poesia livre: À frente do seu tempo é um homem ansioso. Um homem do seu tempo é um sujeito conformado. Um homem do passado, esse sim, é um clássico.

O caráter provocativo dos três exemplos serve para relativizar a discussão em torno dos suportes e determinar o quanto temporalmente as inovações tendem a uma natureza cíclica. Essa não reverência ao novo simplesmente por esse aspecto é o que pode levar a uma relação de profundidade com as tecnologias que se insurgem, mais destacadamente o virtual, cuja dimensão de fronteira entre definições limítrofes traz à tona outra máxima poética valorosa, desta feita do poeta gaúcho Mario Quintana (1906 – 1994): “o fato é um aspecto secundário da realidade”. O que significa aqui interpretar que a PRESENÇA do VIRTUAL é hoje, ironicamente, irrefutável.

Embora sempre relativa e polêmica, há uma dimensão de fundo e de ordem que parece fundamental no contato daqueles que pretendem produzir conteúdo ante as perspectivas buliçosas e muitas vezes tentadoras oferecidas pelas tecnologias de última hora. A premissa da iniciativa deve ser mantida, o que significa não transformar os recursos disponíveis em adereços de charme ou como meras acrobacias estéticas. Novamente Quintana pede a palavra: “Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras!”.

Logo, permitamo-nos a valência de outras duas máximas acerca de discussões, aparentemente, marginais ao tema. Desde a arte moderna, ou de vanguarda, os critérios em torno do tema tornaram-se mais nebulosos, porque ampliaram suas perspectivas. Não existem mais as noções técnicas, por exemplo: de perspectiva, traço, cor, fidelidade da representação para determinar o valor de um quadro. A arte abstrata tratou de limar esses conceitos. Pôs fim ao valor absoluto (ou absolutista) do que seria a qualidade. A noção de arte passa a depender fundamentalmente da relação entre as partes, por assim dizer: de quem olha e do que é olhado. Se aquilo lhe provoca alguma admiração, sentimento de qualquer ordem ou extrapolação cerebral, se lhe “abre a cabeça” ou “afunda o coração”, enfim.

Nesse sentido, chegam-me as máximas, a primeira: a arte ultrapassa a condição exposta. Comecemos pela negação: um drible, por mais belo (no sentido plástico) ou inesperado (caráter provocador) jamais almeja dizer algo além do que um drible. Ele não ultrapassa sua condição exposta, portanto física. Ao passo que, em arte, o que se vê é apenas parte do que se mostra, conta, alude, permite-se imaginar, suas possibilidades jamais estarão imersas no caráter físico da pintura, do gesto de um ator, da condição gramatical da palavra. Ainda que eu escreva vassoura ela continua sendo uma palavra, e não uma vassoura. Mas sua interação com o outro ultrapassa esse fisiologismo. Tempo para a próxima máxima: a mortal função da arte é propor a liberdade, ou, ao menos, alguma libertação. Qual seja: libertar-se de preconceitos, visões, certezas, momentos, da realidade mera e tacanha, alcançar a magnitude de uma dimensão que não se prende aos domínios burocráticos, pragmáticos, óbvios. Supor uma banalidade para além do comum e do cotidiano, da rotina.

O virtual pode, sim, aliar-se a esse tipo de produção artística. Mas é preciso, conceitualmente, não se afastar dessas noções na medida em que o objeto aqui tratado, no caso o cinema, quer ser usado para produzir, com todos os seus recursos, algum discurso que leve às pessoas algo que ultrapasse a condição exposta, para que se veja além do olho, e que se provoque alguma libertação. Temos um auxílio luxuoso quase no momento de sua fabricação. Quando o nosso tempo é aquele da transformação é preciso habilidade para lidar com a mutação daquilo que troca de pele agora: pois ela está brilhante.

Algumas incursões cinematográficas – campo profícuo para tecnologias desde o seu nascimento pela natureza de uma arte que predispõe a necessidade do aparato tecnológico, afinal de contas, numa explanação mais direta e simplista, consiste o cinema na mistura de várias outras artes (teatro, literatura, música, fotografia, pintura, etc.) – estão mais próximas parentalmente do chocalho do que de outra imagem metafórica: provocam barulho, ruído, colorem o ambiente, mas elas pouco legam à história que, supostamente, contam. Portanto, o impulso inicial (a ideia, o mote, o sentimento, a sublimação) é que deve sugerir a presunção formal. Ainda que elas nasçam juntas (estética e conteúdo) esse entendimento do que está a determinar o uso tem mais a ver com a compreensão do que se pretende dizer, mesmo que o ocorra de forma intuitiva, sentimental, ou outras denominações do pensamento sensível. O virtual pode ser tão vasto quanto um deserto ou labirinto.

Passado o deslumbre e assimilada a que é a característica fundamental que preenche os suportes, é possível compreendê-las como linguagens e, a partir daí, torna-las parte presente e fundadora de uma narrativa. O rádio, hoje, ainda que colocado na internet, reconheceu propriedades e uma personalidade que o torna linguagem. Da mesma maneira, é possível que a palavra TRANSMÍDIA desça o capuz sobre a tela e nos mostre que, para além de pedras ou teclados levados pelo tempo (e até fabricados com a tal obsolescência programada), existe ali uma linguagem capaz de ampliar as perspectivas de tempo, espaço e interação, aferindo uma relação mais horizontal e interativa com o outro. Se assim a conseguiremos usar, só o tempo (esse senhor clássico e sempre tão jovial) poderá dizer sem precisar palavras.

Quando o animal prepara o ataque

Raphael Vidigal

Imagens: Charges de Aroeira; e Benett, respectivamente.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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