Morre Nelson Sargento, que definiu o samba melhor do que ninguém

*por Raphael Vidigal

“Samba, agoniza mas não morre
Alguém sempre te socorre
Antes do suspiro derradeiro
Samba, negro, forte, destemido
Foi duramente perseguido
Na esquina, no botequim, no terreiro” Nelson Sargento

Foram 96 anos, quase um século de vida de dedicação ao samba. Filho da cozinheira dona Rosa Maria e do chefe de armazém Olympio, Nelson Sargento foi criado no Morro de Salgueiro com outros 17 irmãos e, aos dez anos, já desfilava na Escola de Samba Azul e Branco. Depois de servir ao Exército, foi batizado com o apelido que carregaria para o resto da vida, e passou a dispor da companhia de bambas como Cartola e Nelson Cavaquinho. Logo, foi levado por Carlos Cachaça para a ala de compositores da Mangueira e apresentou, com o padrasto Alfredo Português, seu primeiro samba-enredo: “Rio São Francisco”.

A trajetória longeva de Nelson Sargento nunca se dissociou do amor à escola de samba e das raízes de seu povo. Pintor de paredes por formação, tornou-se artista plástico com exposições no Museu da Imagem e do Som e na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, traçando caminho semelhante ao de Heitor dos Prazeres, que também compunha e pintava. Querido e admirado por seus pares, pelo jeito doce, afável, e os versos simples que carregavam profundidade, Nelson fez parte do histórico espetáculo “Rosa de Ouro”, dirigido por Hermínio Bello de Carvalho, ao lado de Araci Cortes, Clementina de Jesus, Elton Medeiros, Paulinho da Viola, Jair do Cavaquinho e Anescarzinho do Salgueiro.

Com Zé Kéti, Oscar Bigode e José Cruz, ele formou o conjunto A Voz do Morro, que gravou dois álbuns. Na sequência, integrou o grupo Os Cinco Crioulos. Frequentador assíduo do Zicartola em sua fase áurea, cantado por Beth Carvalho, Jamelão, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, João Nogueira, Chico Buarque, Teresa Cristina, entre muitos outros, Nelson Sargento soube definir o samba melhor do que ninguém, com versos que refletem a própria alma do brasileiro, sempre disposto a recomeçar: “Samba, agoniza mas não morre/ Alguém sempre te socorre/ Antes do suspiro derradeiro”. Que nesse momento de luto, o Brasil não perca a esperança na primavera, sublime estação das flores.

“Cântico à Natureza (Primavera)” (samba, 1955) – Nelson Sargento e Alfredo Português
Nelson Sargento passou quatro anos tentando emplacar um samba-enredo para a Mangueira desfilar na avenida, até que, em 1955, conseguiu. Batizado por ele e o padrasto, Alfredo Português, de “Cântico à Natureza”, a canção ficaria mais conhecida como “Primavera”, cujos versos, sublinhados por uma delicada melodia, logo trazem à memória um tempo de bem-estar e esperança: “Oh primavera adorada/ Inspiradora de amores/ Oh primavera idolatrada/ Sublime estação das flores”. As outras estações do ano são também citadas na letra, mas é a primavera que se impõe, abrindo e fechando a canção. Lançada por Jamelão em 1955, ela chegou a ter o nome do cantor credenciado entre os compositores, o que era comum na época, mas foi escrita somente por Nelson e o padrasto. Ganhou regravações de Monarco, Chico César, Ivo Meireles e do próprio Nelson.

“Vai Dizer a Ela” (samba, 1957) – Nelson Sargento e Carlos Marreta
Em 1957, com a morte do padrasto Alfredo Português, Nelson Sargento teve que arranjar outro parceiro para seus sambas, e logo o encontrou em Carlos Marreta. Àquela época, ele já era enturmado com a turma da Mangueira, formada por Cartola, Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça, Saturnino, Babaú e Aluísio Dias, com quem aprendeu a tocar violão. “Vai Dizer a Ela”, parceria com Marreta, é um samba dolente, queixoso, cheio das mágoas do amor. O eu-lírico reclama da saudade e pede à amada que ela retorne. Como de costume, fica clara a capacidade de Nelson Sargento, tanto na melodia quanto na letra, em falar sobre as coisas simples, comuns a todos, de uma maneira própria, guiada pela beleza. O samba foi registrado por Nelson no álbum “Encanto da Paisagem”, o segundo de sua carreira, em 1986, e revisitado em “91 Anos de Samba”, com o conjunto Galo Preto e o cantor Pedro Miranda, que saudavam o mestre mangueirense.

“Ciúme Doentio” (samba, 1962) – Nelson Sargento e Cartola
Nelson Sargento sempre foi bom de prosa, capaz de frases lapidares, como, por exemplo: “Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve”. Admirador confesso da obra do amigo, Nelson Sargento se tornou uma espécie de guardião de sua memória, participando de vários tributos e mantendo acesa a chama de sambas que se tornaram clássicos. Como não poderia deixar de ser, ele também se tornou parceiro de Cartola, em músicas menos conhecidas, mas igualmente belas, como “Deixa”, “Samba do Operário”, “Velho Estácio” e “Vim Lhe Pedir”. Também com Cartola criou, em 1962, o samba “Ciúme Doentio”, que fala sobre a complicada relação com Ana Maria, “bonita mulher, mas de gênio, uma fera”. O samba só veio à luz muitos anos depois, nos anos 2000, quando Nelson o interpretou com Zeca Pagodinho, que já o apresentava em shows. Segundo Nelson Sargento, “Zeca queria gravar ‘Falso Amor Sincero’, mas eu não deixei”.

“Falso Moralista” (samba, 1972) – Nelson Sargento
Nelson Sargento é dono de um divertido samba intitulado “Triângulo Amoroso”, de 1979, que já dava pistas de seu viés para cronista das complexas relações conjugais: “É um triângulo amoroso/ Funcionando com perfeição/ Uma me domina, a outra me fascina/ Mas as duas têm meu coração”. Antes, em 1972, Paulinho da Viola gravara “Falso Moralista”, que também desafiava os padrões com bom-humor. Na introdução do samba, gravado no emblemático álbum “Dança da Solidão”, Paulinho chama os percussionistas um a um, antes de proclamar: “Tudo isso pra cantar um samba do Nelson Sargento”, reforçando o seu respeito pelo mestre, de quem, em 1971, gravara “Minha Vez de Sorrir” (parceria com Batista). Em “Falso Moralista”, Nelson Sargento dispara, sem dó, contra a hipocrisia: “Você se julga um tanto bom e até perfeito/ Por qualquer coisa deita logo falação/ Mas eu conheço bem o seu defeito/ E não vou fazer segredo não…”.

“Agoniza Mas Não Morre” (samba, 1978) – Nelson Sargento
Um LP histórico, gravado por Beth Carvalho em 1978. Na capa, a cantora em um pagode no Cacique de Ramos. A primeira música: “Vou Festejar”, de Dida, Neoci e Jorge Aragão. A última, “Agoniza Mas Não Morre”, um clássico de Nelson Sargento. O disco de Beth era um verdadeiro estudo sobre o samba e, consequentemente, sobre o povo brasileiro. “Agoniza, Mas Não Morre” ficou tão forte na memória nacional que passou a ser repetido de boca em boca, como um verdadeiro ditado popular, muitas vezes, esquecendo-se o autor dos versos. Não tem importância. A força da obra de Nelson Sargento, sublinhada por essa canção especial, é justamente essa. Ter uma profunda relação com o popular, sem perder a elegância, a natural sofisticação. “Samba, agoniza mas não morre/ Alguém sempre te socorre/ Antes do suspiro derradeiro…/ Samba, negro, forte, destemido/ Foi duramente perseguido/ Na esquina, no botequim, no terreiro…”. Ela foi regravada por Martinho da Vila, João Nogueira e Tantinho da Mangueira.

“Falso Amor Sincero” (samba, 1979) – Nelson Sargento
Outra canção sobre a falsidade, a hipocrisia e as complicações do amor. “Falso Amor Sincero” carrega no título uma aparente contradição, que Nelson Sargento distende nos versos cheios de malícia e ironia: “O nosso amor é tão bonito/ Ela finge que me ama/ E eu finjo que acredito”. A música foi apresentada em 1979, no primeiro disco da carreira de Nelson, “Sonho de Sambista”, quando já alcançava a idade madura de 55 anos, repetindo a sina de bambas como Cartola, Nelson Cavaquinho, Zé Kéti e outros, que tardaram a ter os olhos da indústria fonográfica voltados para si. Apesar da chance, Nelson passou um longo período afastado dos estúdios, só retornando em 1986, com “Encanto da Paisagem”, um trabalho de inéditas em que cantava, por exemplo, “Homenagem ao Mestre Cartola”, graças à determinação do produtor japonês Katsunori Tanaka, que o levaria a realizar turnês de sucesso na Terra do Sol Nascente. “Falso Amor Sincero” foi bisada inúmeras vezes por Nelson, e recebeu uma impagável versão de Dorina e Walter Alfaiate, que a interpretou como um casal.

“Fundo Azul” (samba, 1983) – Nelson Sargento
O interesse de Nelson Sargento pelo samba era também teórico. Em 1984, ele escreveu com Alice Campos, Francisco Duarte e Dulcinéia Duarte a monografia “Um Certo Geraldo Pereira”, premiada pela Funarte, em que pesquisava as origens da obra do sambista de Juiz de Fora. No ramo literário, também escreveu “Prisioneiro do Mundo” e, com sua figura representativa e emblemática, participou dos filmes “O Primeiro Dia”, de Walter Salles e Daniela Thomas, “Orfeu”, de Cacá Diegues, e “Nelson Sargento da Mangueira”, de Estêvão Pantoja, premiado por sua trilha sonora no Festival de Gramado. Uma das responsáveis por resgatar o samba do morro para os ouvidos desatentos da zona sul, Nara Leão dedicou o LP “Meu Samba Encabulado”, de 1983, ao gênero. E aproveitou para gravar uma pérola de Nelson Sargento: “Fundo Azul”, com ares bucólicos e inspirações no chorinho, que dizia: “Ninguém é de ninguém/ Esta é a frase padrão/ Salve-se quem puder/ Neste mundo de ilusão”.

“Encanto da Paisagem” (samba, 1986) – Nelson Sargento
“Encanto da Paisagem” batizou o disco de Nelson Sargento de 1986, lançado pela Kuarup. Com uma cuíca em destaque, a música é uma declaração de Nelson ao lugar onde nasceu, com todas as suas belezas e circunstâncias: “Morro és o encanto da paisagem/ Suntuoso personagem/ De rudimentar beleza/ Morro, progresso lento e primário/ És imponente no cenário/ Inspiração da natureza”. A música foi regravada por Zeca Pagodinho, no álbum “Vida da Minha Vida”, de 2010, em parceria com o próprio Nelson. Sempre fiel às origens, Nelson tornou-se presidente de honra da Mangueira em 2014, ao completar 90 anos. Outra paixão que ele fazia questão de frisar era pelo Clube de Regatas Vasco da Gama, seu time de coração, por influência do padrasto Alfredo Português. Mesmo nos momentos mais difíceis, Nelson nunca abandonou suas bandeiras.

“Idioma Esquisito” (samba, 1986) – Nelson Sargento
A Divina Elizeth Cardoso gravou para a novela “Dona Xepa”, em 1977, da Rede Globo, a música homônima composta por Nelson Sargento. Embora não tenha feito o sucesso esperado, o sambista teve ali a honra de ser gravado por uma das maiores cantoras da música brasileira. Décadas depois, Nelson Sargento passou a ser reverenciado por nomes da nova geração, que se identificaram com a irreverência criativa de “Idioma Esquisito”, samba originalmente gravado por ele em 1986, no segundo LP de sua carreira. Intérpretes como Carol Naine, Marina Íris, Raquel Palma, Daúde Sarambá e Pedro Miranda revisitaram a canção, que narra: “Fui fazer o meu samba/ Na mesa de um botequim/ Depois de umas e outras/ O samba ficou assim/ Estrambonático, Palipopético/ Cibalenítico, Estapafúrdico/ Protopológico, Antropofágico/ Presolopépipo, Atroverático”.

“Nas Asas da Canção” (samba, 1990) – Nelson Sargento e Dona Ivone Lara
Os bonitos vocalises de Dona Ivone Lara sublinham a poesia de “Nas Asas da Canção”, composta pela Dama do Samba com Nelson Sargento em 1990, e regravada por ambos. A versão de Dona Ivone conta com um arranjo solar e um coro de vozes. É uma gravação para cima, animada. Nelson optou por um registro mais contido e melancólico. A essência, no entanto, se mantém nos dois exemplos. “Nas Asas da Canção” é uma espécie de resumo, um compêndio das experiências que uma vida dedicada à música garante. “Ó musa/ Me ajude como outrora/ Não me abandone agora/ No ocaso da vida/ Sei que a minha mente está cansada/ Foram tantas madrugadas/ Quantas ilusões perdidas/ Quero versos com muito lirismo/ Para tirar do abismo, meu pobre coração/ Rica melodia emoldurando a fantasia da minha imaginação…”, desfilam Nelson e Ivone Lara.

Ouça a playlist completa:

Foto: Edinho Alves/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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