*por Raphael Vidigal
“Diego Armando Maradona foi adorado não apenas por causa de seus prodigiosos malabarismos, mas também porque era um deus sujo, pecador, o mais humano dos deuses. Qualquer um podia reconhecer nele uma síntese ambulante das fraquezas humanas: mulherengo, beberrão, comilão, malandro, mentiroso, fanfarrão, irresponsável” Eduardo Galeano
Os dois maiores países da América do Sul têm lá suas semelhanças, mas apresentam diferenças fundamentais. A começar pelos heróis nacionais, igualmente controversos. Os brasileiros mais conhecidos no mundo são, pela ordem: Pelé, o escritor Paulo Coelho e o ex-presidente Lula. Na Argentina, defendem esse posto Maradona, o cantor Carlos Gardel e a ex-primeira-dama Evita Perón. Mais do que todos os outros, os futebolistas dispensam apresentações. Pelé e Maradona são, respectivamente, a cara do Brasil e da Argentina, inclusive no que têm de masculinidade e feminilidade. Um destro, eficaz, implacável: Pelé e seu equilíbrio perfeito, harmônico. Outro canhoto, espasmódico, relampejante: Maradona e seu hedonismo endiabrado. São como Apolo e Dionísio.
Pelé, o maior jogador de todos os tempos, é um samba: arguto, esperto, aparentemente cordial, tenta tirar vantagem diante das adversidades. Maradona, o maior ídolo da história futebolística, é um tango: dramático, inconformado, autodestrutivo, intenso e vulnerável. Das principais expressões culturais de cada país, extravasam posturas diametralmente opostas tanto dentro quanto fora de campo. Assertivo, seguro, impositivo, Pelé com a bola nos pés era pura força, habilidade e precisão. Negro de Três Corações, no interior de Minas Gerais, ganhou as batalhas da vida no aço dos músculos privilegiados e na capacidade de enxergar as possibilidades e delas se aproveitar da melhor maneira possível.
Maradona, moleque rebelde da periferia argentina, ficou conhecido primeiro como malabarista ao distrair os torcedores antes das partidas aguardadas com ansiedade. O objeto cilíndrico chamado bola era tomado pelos pés com o vigor de uma paixão arrebatadora, com a qual ele desequilibrava as estruturas, sempre pronto ao gesto irreverente, impensado, que quebrava as expectativas. A entrega gerou uma relação passional e não menos tormentosa que os laços conjugais, o que levou o craque a glórias tão altas quanto os fracassos nos estádios. Conquistou uma Copa do Mundo pela Seleção Argentina usando o que tinha de melhor: a disposição para o risco. Que, aliás, ele sempre aceitou correr.
Contra a Inglaterra, em 1986, Maradona se jogou contra a bola correndo a chance de ser expulso ou sair de lá consagrado e vingado pela histórica Guerra das Malvinas. O lance foi alto como a premiação. E, sem vestir o uniforme de atleta, não foi diferente. Envolvido em excessos, pagou o preço dos que não se poupam. Apostou as fichas em revoluções políticas e venerou chefes de Estado como Fidel Castro, Hugo Chávez, Evo Morales e Lula, que simbolizaram a esperança de uma frente de esquerda na América Latina. Pelé, por outro lado, esteve invariavelmente com quem ocupava o poder. Adesista por natureza, evitou confrontos e procurou manter-se confortável de acordo com as situações.
Escorregou quando não quis assumir uma filha fora do casamento, e o que parecia uma estratégia para preservar a imagem ilibada e cristalina acabou se virando na direção do Rei do Futebol e Atleta do Século com uma torrente de ofensas e questionamentos indignados. Apesar disso, não perdeu a pompa. O porte que intimidava adversários no campo continuou como seu aliado. Ficou de pé frente à torcida, fitando a marca penal com a certeza da vitória que carrega desde o berço. Já Maradona caiu tanto que esteve tão perto do chão quanto o mais reles dos times que ele porventura humilhou com gols furiosos. A mão que o ajudou a se levantar não foi a de Deus, mas a de milhões de almas chorosas.