Luli Braga estreia disco ‘Sinuose’ e desafia pensamento ultraconservador

*por Raphael Vidigal

“Tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.” Thiago de Mello

Luli Braga interrompeu o banho porque “sussurrando lá dentro da mente”, as palavras “passo a passo, lento, imediato”, pediam para ser anotadas. O trecho seria incorporado a “Sinuose”, música que dá título a seu disco de estreia, e que chegou a se chamar “Régua” e “Fronteira” antes do batismo definitivo. “A música nasceu numa conversa com uma amiga, quando a frase ‘não se pode medir minha vida com base em sua régua’ emergiu e eu anotei a palavra ‘régua’ para desenvolver depois”, relembra ela.

Amazonense, nascida na cidade de Manaus, mas de família com origem em Maués, no interior do Estado, a cantora recebe no álbum nomes da nova geração com as quais ela se identifica, como a pernambucana Flaira Ferro, a paulista Tiê e a artista trans Ju Strassacapa, da banda Francisco El Hombre. “Quis unir vozes de mulheres diferentes para trazer a força feminina para a identidade do álbum, sobretudo porque a busca temática das minhas letras também passa por esse lugar de se entender mulher”, diz Luli.

1 – Porque a música “Sinuose” foi escolhida para dar título a seu primeiro álbum?
“Sinuose” foi escolhida em razão da ideia de pensamento não-linear que busquei expressar nela, tanto no que se refere à letra como também aos instrumentos. As intenções colocadas na composição são de fluidez e de liberdade de ser inconstante, sinuosa, sem medidas ou fronteiras pré-estabelecidas. O mesmo movimento alternado se imprime no álbum como um todo, que ora transita em lugares mais leves e descontraídos, ora em lugares mais densos e reflexivos.

2 – Como nasceu essa canção e qual a importância dela para você?
A música nasceu numa conversa com uma amiga, quando a frase “não se pode medir minha vida com base em sua régua” emergiu e eu anotei a palavra “régua” para desenvolver depois. O momento em que a ideia começou a tomar forma coincidiu com uma grande mudança na minha vida profissional, que também envolvia o processo de se reconhecer como cantora e compositora, que muitas vezes é, equivocadamente, invalidado como uma forma de viver, trabalhar e ser. Antes de se tornar “Sinuose”, a música chegou a se chamar “Régua”, “Fronteira”. Foi o álbum que lhe trouxe o novo nome, mas, desde a concepção, eu já a tinha em mente como a música que expressava o conceito do todo buscado no processo de identificação visual do disco.

3 – Como é o seu processo de composição e o que te inspira a compor?
Meu processo de composição é bem aleatório. A frase “passo a passo, lento, imediato”, por exemplo, surgiu durante um banho, em que notei essas palavras sussurrando lá dentro da mente e resolvi parar o banho para anotar. Outras partes da música “Sinuose” já vieram de um processo de se concentrar e, com o auxílio do violão, extrair a ideia que eu buscava expressar. Não tenho um método específico, mas costumo ter ideias durante conversas e situações cotidianas, como um banho, e parar para anotá-las e desenvolvê-las depois com a ajuda do instrumento. Existem algumas músicas que surgem de uma vez e outras que surgem da somatória de momentos distintos, seguindo essa aleatoriedade que a faixa “Sinuose” busca expressar. Estou sempre anotando essas frases ou palavras num bloco de anotações ou gravando no celular.

4 – O que te levou a convidar as pessoas que participam do disco e qual a sua relação com cada uma delas?
Inicialmente, foi a ideia de unir vozes de mulheres diferentes para trazer a força feminina para a identidade do álbum, sobretudo porque a busca temática das minhas letras também passa por esse lugar de se entender mulher. Além disso, quis trazer para somar ao meu trabalho a presença de mulheres que têm minha admiração em suas respectivas criações e jornadas artísticas, que estão há mais tempo trabalhando com a música e resistindo através do seu canto, como Tiê, Flaira Ferro e Ju Strassacapa. A participação delas no álbum acaba facilitando o alcance de pessoas que provavelmente têm afinidade com os conteúdos abordados em “Sinuose”. Por fim, algumas participantes são amigas cantoras que também têm seus trabalhos na cena musical amazonense, como a Gabriella Dias, Iana Moral e Ianeza Wanzeler.

5 – De que maneira as origens amazonenses estão presentes em sua música?
Essa origem se faz presente na utilização de elementos orgânicos nas temáticas abordadas nas letras, que surgem da observação da natureza que me cerca. Além disso, a minha jornada de reencontro com a música na fase adulta também está ligada à cultura de povos originários da Amazônia, tendo em vista que foi após o meu primeiro contato com o xamanismo que voltei a compor canções, depois de um longo período me dedicando a outras atividades.

6 – Quem são as suas principais influências e quando você decidiu que trilharia o caminho da música?
Minhas principais influências foram pessoas com quem convivi, musicistas que cruzaram meu caminho e que me ajudaram a enxergar o que brotava de mim, musicalmente falando. Foi um processo de me reconhecer, porque o canto e a escrita sempre me acompanharam, desde a infância. Nesse processo de reconhecimento, experienciei mudanças que chacoalharam a minha vida na medida que eu precisava para que os encontros acontecessem e eu chegasse até meu primeiro trabalho. Além dessas pessoas, artistas que mais me influenciam são mulheres da MPB, em especial Flaira Ferro, que participou do álbum, Luedji Luna, Duda Beat, Céu, Marisa Monte, Maria Bethânia e por aí vai.

7 – Qual a sua mais remota lembrança musical?
É ainda na minha infância. Meu pai sempre foi apreciador de músicas ligadas à cultura amazonense, como o boi-bumbá. Minha mãe escutava muitas mulheres como Marisa Monte, Dolores O’riordan do The Cranberries e Paula Toller do Kid Abelha. Cresci ouvindo e cantando tudo isso e acho que minha lembrança mais antiga de quando me senti tocada pela música sou eu ainda criança, cantarolando pelas ruas da cidade as músicas que meus pais ouviam. Depois disso, aos 10 anos, minha avó materna me deu um violão de presente de aniversário e acho que ali foi plantada a semente do que hoje é minha relação com a música.

8 – Na sua opinião, o que esse disco tem a dizer de mais forte para o conturbado momento pandêmico e político que o Brasil e o mundo vivem?
O disco sinua entre diferentes aspectos rítmicos e temáticos, trazendo composições dos últimos três anos da minha vida. Porém, algumas faixas como “Sinuose”, “O Tempo Que Leva” e “Mar da Ilusão” são composições que surgiram no contexto de isolamento social. Acho que o álbum se conecta com o momento que estamos vivenciando hoje ao abordar temas que desafiam pensamentos ultraconservadores, ao explorar dinâmicas de relacionamento dentro da realidade de pandemia e ao trazer conteúdos mentais confrontados sob circunstâncias de isolamento e distanciamento social e, ao mesmo tempo, aproximação com nosso próprio interior.

Foto: Laryssa Gaynett/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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