Lula e a (re)conciliação do Brasil: o golpista, a golpeada e ele no meio

*por Raphael Vidigal

“brandura não significa servilismo.” Wally Salomão

Há uma foto sui generis que pode ser descrita como o golpista, a golpeada e Lula no meio – onde sempre esteve, erguendo os braços de Dilma, que ele conduziu à presidência, e Geraldo Alckmin, que o ajudou a subir novamente a rampa do Planalto. A imagem é reveladora da persona que Lula encarna na política brasileira, uma personagem única e de características sobressalentes na nossa história republicana.

Quem mais seria capaz de montar um ministério com a amplitude daquele que Lula acaba de anunciar para seu terceiro mandato e que remete aos outros dois que ele produziu? Ao invés de citarmos nomes como Marina Silva, ambientalista de reconhecimento internacional, e Carlos Fávaro, ruralista dos nossos quintas, ou Anielle Franco, irmã de Marielle, vítima da milícia, e Daniela do Waguinho, a deputada mais votada do Rio, podemos nos remeter a uma música de Miriam Batucada, capaz de aclarar esse imbróglio.

“Ó nóis tudo junto no carro da polícia/ (…) Eu com a viola e um gringo sequestrador/ Um traficante, um político importante/ Um paralítico ambulante, dois amante e um cobertor/ Um libanês só de turbante, um português/ Uma mulata, um índio de terno e gravata e gravador/ Um realejo com um gato/ No lugar de um periquito, um pai de santo/ Um fio de rico, um camelô”, canta ela no xote “Carro da Polícia”, de 1991, uma pérola de tão atual.

Lula sempre teve uma postura muito mais pragmática do que ideológica, por sua própria formação sindical. Portanto não se pode ter ilusões. Ao contemplar essa diversidade, ele não deixa de privilegiar as castas que jamais largaram o osso. Lula não extingue os conflitos, os põe para dialogar. A preponderância de determinadas camadas sobre outras permanece. Basta observar a composição com certa lupa – que nem precisa ser das mais aguçadas.

Os homens brancos permanecem em maioria, ocupando cargos fundamentais. O patrimonialismo segue a todo vapor, perpetuando sobrenomes. A lógica do mercado – da qual Lula nunca foi inteiramente refratário – mantém uma âncora pesada no encalço dos ministros empossados. Ou seja, a despeito dessa pluralidade, o Brasil real continua não sendo devidamente representado. É bom termos claro que somos um país preto, pobre e periférico. Além de continental.

A natureza de Lula é conciliadora. O seu papel no sindicalismo sempre foi o de mediador, ainda que a retórica destinada a cada plateia pudesse supor o contrário, e foi esse tino para balancear que o alçou a postos de liderança. Com a idade, o jeito boquirroto foi cedendo espaço para uma imagem mais amigável, de um carisma irresistível. É próprio dos líderes intuir quando partir para o ataque, tanto quanto a hora de ceder. Lula domina bem esses tempos.

Se o conflito permanece, parece consensual – outra palavra difícil de ser encontrada e muito cobiçada na política – que o Brasil pós-desastre da gestão Bolsonaro precisa de um mínimo de convivência pacífica, para que as divergências venham à tona com o que resta de civilidade. Os endinheirados e poderosos não hesitarão em utilizar as armas mais baixas, como comprovam golpes de toda espécie – políticos, judiciais e militares – perpetrados na América Latina em épocas nada remotas, mas o tiro pela culatra que reabriu nossos pântanos autoritários os coloca, de certa maneira, na retaguarda. Não totalmente, porque eles ainda detém a chave do cofre. Lula desperta nessas pessoas o pior dos ressentimentos de classe, e, paradoxalmente, traz a reconciliação do Brasil com a cordialidade de nosso tipo idealizado. Paradoxos.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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