Pelé, Lula, Bituca: O Brasil reconhecido pelo mundo

*por Raphael Vidigal

“Minha ideologia é o nascer de cada dia
E minha religião é a luz na escuridão” Gilberto Gil

A primeira coisa que vem à tona é o nome: Pelé. A origem do apelido é prosaica, e surge da dificuldade de uma criança em pronunciar corretamente as palavras, mas nos remete, pela sonoridade e poder de síntese, a nossas raízes africanas. O maior jogador de todos os tempos foi um homem negro nascido na pequena cidade de Três Corações, interior de Minas Gerais. A sua força em campo tornou o Brasil respeitado em todo o planeta, e elevou a nação à condição de dominante no esporte mais popular da galáxia. Não é exagero dizer que, a partir de Pelé, o Brasil passou a ser visto, aplaudido e admirado. Pelé é o brasileiro mais popular de todos os tempos, é a expressão de um país.

Ele definiu, para o resto do mundo, o rosto, o corpo, a ginga e a força do Brasil. Os chutes que ele desferiu contra goleiros adversários que estufaram as redes, as cabeçadas que se assemelhavam a disparos com o pé, as comemorações com socos no ar, o sorriso largo e franco, cheio de confiança, além das jogadas inimagináveis, imprevisíveis, formaram um mosaico de qualidades que definiram a imagem do Brasil para o mundo. Pelé era Brasil e o Brasil era Pelé. Autêntico rei negro do futebol, ele reinou até 1977, quando se despediu definitivamente dos gramados, mas sua influência mundial estava apenas começando, e foi estendida com estratégias publicitárias que o capitalismo conhece muito bem. De garoto-propaganda a astro cinematográfico, arriscou notas simples, e soltou a voz sem medo de esconder a desafinação. Era Pelé…

Lula não é muito diferente. Um apelido sonoro, curto, muito comum no Nordeste, com forte influência indígena, que o digam a macaxeira, o aipim e a mandioca, nomes para expressar o mesmo alimento. Luiz, em Pernambuco, virava Lula, e com o futuro presidente da República não foi diferente. Menino pobre nascido no agreste pernambucano, criado pela mãe com mais uma penca de irmãos, ele rumou para São Paulo ainda criança, onde deu início à sua atividade como torneiro mecânico que o levou ao sindicalismo e, na sequência, à militância política. Fundador do Partido dos Trabalhadores, Lula era a cara mais visível do movimento que reunia intelectuais, religiosos e trabalhadores. E as suas pregações contra a exploração correram todo o país…

Ao ascender à presidência, em 2002, Lula deu início a uma política externa que contemplava países historicamente marginalizados, em especial os africanos, com quem ele considerava haver uma dívida histórica, dada as décadas de escravidão e o incômodo fato de o Brasil ter sido o último país latino-americano a aboli-la. Essa característica ganhava robustez com a postura de não abaixar a cabeça, e abandonar a velha subserviência com os cachorros-grandes. Em seu governo, o Brasil zerou a dívida histórica com o Fundo Monetário Internacional, acumulou reservas de dólares e pôde, enfim, dar uma banana metafórica para os Estados Unidos, como clamava Braguinha nas marchinhas. Lula se tornou um político respeitado no mundo, e admirado por suas origens…

Milton Nascimento fez o caminho inverso de Pelé que, nascido em Minas, conquistou o mundo a partir de Santos, no litoral paulista. Milton só veio ao mundo no Rio de Janeiro, mas nunca se sentiu carioca, tanto que, ainda bebê, já residia em Três Pontas, interior de Minas. Foi a sua revolução na música que levou a influência barroca das nossas cidades históricas para os quatro cantos do planeta, atravessando todos os continentes, subindo em diversos palcos. Mas Milton só é conhecido como Milton por quem não o conhece de perto. Por aqui, podemos dizer, com uma intimidade orgulhosa, que ele é o nosso Bituca. Esse apelido de uma criança que fazia bico com a boca, e que revela tanto da nossa história, de uma essência africana, indígena, miscigenada, de um povo…

Bituca é, sem sombra de dúvida, o músico brasileiro de maior aclamação no exterior – rivalizando com João Gilberto e Tom Jobim entre os que já se foram. A mistura única que ele promoveu entre a música barroca, o jazz e o pop-rock radiofônico dos Beatles deixou o mundo inteiro embasbacado, e gerou canções capazes de estimular tanto o público quanto os críticos mais aficionados, unindo erudito e popular, especialista e fã, virtuose e músico de bar. Em novembro, aos 80 anos, ele realizou a despedida dos palcos, para um Mineirão lotado, visivelmente emocionado e abatido pela idade e as doenças que vieram junto. Perdemos Pelé, Bituca – apenas in loco, suas obras permanecem – e recuperamos Lula. O Brasil reconhecido no mundo tem nome simples, africano.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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