“A alma escolhe sua companhia
E fecha a porta, depois.
Em sua augusta suficiência,
Cessam as intromissões.” Emily Dickinson
Como comemoração ao conto que havia escrito. Desci à cozinha, e quebrei um prato. Seguida, celebrei a vitória com o príncipe negro: Átila. Permita-me não recorrer à figura histórica. É que esse nome, para mim, diz respeito somente a meu conhecido íntimo, e essa é uma das benesses a que me dou o direito.
Um cachorro de personalidade felina: arredio e esnobe. Pouco se mexe quando alguém aproxima. Jamais balançou o rabo. Nega-se a dar a pata. Não se considera um animal da espécie, em suma consciência. As perguntas mais freqüentes que se faz, pois pouco (ou quase nada) se dirige aos outros, são: Qual o sentido da existência? Quando?
Nunca lhe respondi por que a pergunta não é endereçada a mim, e naturalmente respeito privacidades alheias. É dono dum cheiro forte, e olhar guloso. Tem uma bola amarela e vermelha com a qual não brinca. Ocorreu depois de empanturrar-me com bolo de cenoura e chocolate. Fui à sua casinha para uma visita.
Bom anfitrião, não me convidou a passar pelas cercas, nem a me juntar à sua sugestiva agonia. Encontrava-se prostrado. Em sinal de que havia a resposta se julgado a ele apenas diante à sua condição extinta. Sabia que a condição é um destino que debocha sem trazer receita. Inconformado, nunca fora. Não se podia dizer que almejava uma forma para lhe suceder o contrário. Portanto não se lastimava, prostrava-se. Naquele estado em que a razão faz charadas e a emoção acompanha.
A campainha soou em falso alarme, admito que o príncipe negro alimenta-se na hora inexata. Salivou a língua entre dentes pequenos. Todo ele pequeno, terreno, absorto, abstrato. Se um rato passasse à sua frente, bocejava. Conhece a razão das horas seguintes e o incrível compensar do mundo em linhas furtivas.
Antes que eu pudesse esticar a mão, ele ergueu a pata. Ali duas compensações distintas, dois contornos inexatos. Ele, num refrear absurdo de príncipe e cachorro. Eu, numa urgência erma de plebeu e gente. Despedimo-nos ao som da língua que nos ensinaram. Latindo em senil silencioso.
Tudo o que se passou em minha congruência, nem sequer sequei a tocá-lo.
Mas o prato está quebrado.
Raphael Vidigal
Esculturas: “A Onda” e “Shakuntala”, respectivamente, de Camille Claudel.
11 Comentários
Um texto fantástico! E um personagem formidável de tão doce… é que lembrei dos olhos do senhor Atila… olhos da pureza da simplicidade rica no espírito.
Oi Raphael,
Simplesmente amei o conto e a referêcia:
_”Personalidade felina, arredio e esnobe”.
Todos são ótimos, aguardo que publique
seu livro.
Beijos,
M.Inês
na hora que vc cita que levantou a mão e o cachorro a pata, lembrei da pintura da capela cistina, de michelangelo
kk
Gostei muito dessa parte.
“Despedimo-nos ao som da língua que nos ensinaram. Latindo em senil silencioso”.
Sensacional esse texto zim, se o Átila pudesse ler ficaria contente, ou meio contente, pois talvez
bocejaria e não terminaria de ler!!!
hahah…
Muito bom mesmo!
Belo texto. Parabéns!!!
Raphael Vidigal adorei essa parte “Antes que eu pudesse esticar a mão, ele ergueu a pata. Ali duas compensações distintas, dois contornos inexatos. Ele, num refrear absurdo de príncipe e cachorro. Eu, numa urgência erma de plebeu e gente. Despedimo-nos ao som da língua que nos ensinaram. Latindo em senil silencioso.”
Balançando o rabo em troca de gorjetas. Gordas, fartas e enxutas…Qual o sentido da prostituição? Até quando? Até você Hilda Furacão?
Saudades de Atila… 🙁
Beijinho Atila
Obrigado a todos que comentaram e se solidarizaram com a história deste nobre cachorrinho: Átila. Abraços fraternos!
Se me permite, apaixonei-me pelo pequeno! Produção ótima, bem articulada. Parabéns! Aguardo novidades.