Literatura: Dia dos mortos

“Perdeste o melhor amigo,
não tens sequer um cão
… mas e o humour?” Carlos Drummond de Andrade

Dia dos mortos

Vou para casa ouvindo Maria Callas. Volto do seu enterro. Fagulhas pinçam minha perna esquerda, costas. Cálida. Cessa. Vagarosa: compreendendo a ânsia esquiva-se do sentimento. Monótono. O dia que salvei meu cachorro da piscina. O sinal da porta quando minha tia morreu.

Não costumava ir até a parte de fora da casa, onde ficava a piscina entregue aos mosquitos e outros insetos a almejarem a água. Sem pressentir a natureza terrena este ser o fim de seu corpo íngreme. Arvoram-se em vôos dos quais serão incapazes de completá-los. Ao intento, à manobra que nem se sabe julgam arriscada. Não é pelo tique nervoso das antenas ou das minúsculas asas que se conclui a indecisão de um movimento destes. Mas eles o escolhem por pura culpa de inteligência incauta. Cega de beleza, de precisão, de identidade. Esses bichos sem nome, nem mágoa.

O meu cachorro tinha uma mágoa. Dava para se estabelecer uma linha fina entre o ponto em que nos adorava, e quando divulgou sua discórdia silenciosa, individual, sugestiva. Catarata nos dois olhos, azuis como a impressão azul do beija-flor. Não enxergava, trombava em vasos, plantas, não mais por descuido, vontade, algazarra. Por aspereza do toque. Perdeu a sensibilidade dos olhos. Possuía o faro, é verdade. Mas para um cachorro criado, a visão muitas vezes é a estrada entre o dono e a estimação.

Foi tratado como gente, levado ao veterinário. Submetido a esperanças de cura inúteis. Sofreu do martírio de ser gente. Que muitas vezes dos animais é poupado. Resignam-se com maior facilidade. Não se iludem como gente, em busca. Encontram ou desistem. Apenas basta.

Mas a nossa voracidade em mudar o curso das cachoeiras incutiu em sua alma de cachorro a famigerada, fatigada, lenço branco sob os olhos da morte: esperança. De tanto crer, tornou-se incrédulo. De tanto ser levado a observar, ficou cego. Luzes eram agora de dentro de seu corpo distribuído em pêlos e caracóis de poodle branco. Manso, virou-se contra nós: seus súditos eram agora carrascos. Não nos culpava. Não é inserindo ameaças e acusações que se cria a culpa, a verdadeira culpa que se enovela bem junto do peito e fixa, gruda. Apresentava seu ar de descaso, arfava, caçava sombra ao invés de gaitas. Ignorava a música de latidos e brincadeiras pelo silêncio de sua espera debaixo à árvore da eternidade.

Enquanto os pedreiros trabalhavam notei a falta daquele cachorro manso. E fui à forra sacudir-lhe do pranto, determinado a passar-lhe a mão em sinal de “vamos brincar que a vida ajuda”. Encontrei o coitado, esbaforido a nadar com remos e pranchas mancos, improvisados, nas águas manchas da piscina, com a porta de entrada aberta por descuido. Salvei-o. Enxuguei seu corpo branco, e acalmei-lhe o coração confuso. Remexeu-se todo. Mas quando se recompôs os olhos azuis da catarata, cor de beija-flor em disparada, ainda eram olhos azuis de choro.

Bem antes, ainda criança, debaixo a cobertas de uma cama de madeira verde musgo, dormia sonhos escriturários. Criança meiga, imaginava a vida em lindos sonhos, portas falantes, chaleiras bordadas. Um suspiro abarrotado despertou-me do sono em ligas de ouro em pó e rubis feitos com calda de chocolate. Alguém tentava invadir a casa.

Mas ao passo em que se tentou algo para impedir a invasão, reconciliamo-nos com o invisível. Todos perplexos com o telefonema: a morte de minha tia havia sido levada minutos antes em carta, por um anjo invisível que bateu à porta. Em tentativa desastrada, ele, por ser anjo iniciante, provocou excessivo barulho, debateu-se contra as grades feitas para impedir os ladrões cotidianos, e, ao invés de chegar calmo aos ouvidos, atordoou-os. Ouvimos com tristeza, e comoção, mas a visita inédita de um carteiro de outro mundo, minimizou a dor de morte.

Zumbido do som do rádio. Vou para casa ouvindo Maria Callas. No retorno do seu enterro. Fagulhas pinçam minha perna esquerda, costas. Cálida. Cessa. Vagarosa. A vida se desfez em você, na noite em que o salvamos. E é no que me pego agora. Com mãos que fremem ao aviso monótono do cosmos. Na minha família celebra-se o dia dos mortos. Que nos livraram do charco em sorrisos brandos.

Literatura dia dos mortos

Raphael Vidigal

Pinturas: “Impressão, nascer do sol” e “Lago com Nenúfares”, de Monet.

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4 Comentários

  • “Zumbido do som do rádio. Vou para casa ouvindo Maria Callas. No retorno do seu enterro. Fagulhas pinçam minha perna esquerda, costas. Cálida. Cessa. Vagarosa. A vida se desfez em você, na noite em que o salvamos. E é no que me pego agora. Com mãos que fremem ao aviso monótono do cosmos. Na minha família celebra-se o dia dos mortos. Que nos livraram do charco em sorrisos brandos.”

    Me lembra o país México.
    “O México celebra a partir desta quarta-feira o Dia dos Mortos, data que remonta o legado pré-hispânico dos povos mesoamericanos, e que foi declarada pela Unesco como Patrimônio Imaterial da Humanidade em 2003.
    “As origens da realização do Dia dos Mortos no México são anteriores à chegada dos espanhois, mas se fundem com a tradição medieval católica”, explicou à Agência Efe, Andrés Merina, Instituto de Pesquisa Antropológica da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM).
    O pesquisador ressaltou o papel dos mortos na vida de parte da população. “Os mortos representam um papel muito importante em todo o ciclo agrícola. Pedem apoio para eles nos momentos críticos, como nas chuvas. Eles são os intermediários com os deuses”, explicou Merina.
    As festividades eram presididas pela deusa Mictecacíhuatl, conhecida como a “Dama da Morte”. Com a chegada dos espanhóis, a tradição da colheita se uniu com os costumes medievais católicos, fazendo aparecer modificações na elaboração das oferendas e nos altares.
    Durante a celebração, além de comparecer aos panteões, as crianças costumam sair à rua, para cantar e pedir oferendas em homenagem aos mortos, com um chilacayote (fruto de forma parecida a abóbora), com uma vela dentro.
    Este elemento faz confundir o Dia dos Mortos com o Haloween, festividade de tradição nórdica que, de acordo com Merina, foi introduzida na cultura mexicana graças a influência da televisão e do comércio. “A influência do Halloween tem a ver com a classe média, que vai aos supermercados, que tem modelos mais americanos por influência da televisão. Mas este não é o caso das comunidades tradicionais”, comentou o estudioso.
    O Dia dos Mortos se prolonga por dois dias. Amanhã será dedicado as almas das crianças, enquanto hoje se lembra a memória dos adultos. Na madrugada do último dia da festividade, os mexicanos velarão os seus mortos no cemitério.”
    retirado na página da internet:

    http://noticias.terra.com.br/mundo/noticias/0,,OI6269831-EI8140,00-Mexico+celebra+seu+tradicional+Dia+dos+Mortos.html

    Resposta
  • Os contos, são ótimos, todos eles. Realmente surpreendentes!
    Nossa, chorei com “Dia dos Mortos”, me lembrei do Luquinhas,
    da sua luta por causa da catarata.
    Com toda sinceridade, você é meu escritor favorito e Eduardo
    também está apaixonado por seus contos.
    Parabéns, você está se superando!
    beijos,
    Maria Inês

    Resposta

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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