*por Raphael Vidigal Aroeira
“São palavras de mais para um povo que sabe de menos e menos saberá, porque os verbos matam.” Chico Anysio
O homem sem rosto definido. De mil rostos, 209 tipos irrestritos. Abrilhantavam o rádio, a TV e o teatro brasileiros com quadros humorísticos ligados umbilicalmente ao povo, que colocava o dedo na ferida da grávida, da parteira, do palanque e do padeiro.
Desde as contribuições sertanejas ao repertório eclético da musa da dor de cotovelo Dolores Duran, até zombarias instantâneas com o vocabulário rebuscado e planador de Caetano Veloso e a turma dos Novos Baianos, Chico Anysio sucedeu na música com o mesmo entusiasmo e clamor popular.
Contribuiu também para o futebol, com comentários, locuções e análises abalizadas por seu senso de crítica sempre instaurado pelo humor latente e coloquial. Ademais, pintou quadros impressionistas, pouco divulgados para seus adoradores fervorosos da frente do palco.
Uma única palavra para definir ‘aquele que fazia vários’, que salientou que ‘no humor, somos todos insubstituíveis’, escapa a um alfabeto ralo para caldo tão grosso, bem temperado e que tem na delícia do sabor a impertinência política, comportamental, filosófica.
Maranguape, no Ceará, pode ser bem pequena, comparada ao Brasil. No entanto quando se usa lupa de artista todo o universo reflete no quintal da nossa infância. Já dizia o mestre, existem dois tipos de piada: a sem graça e a engraçada. Humor não tem limite. Mas possui selo de qualidade. No caso de Chico Anysio, o próprio.
A Fia de Chico Brito (baião, 1956) – Chico Anysio
Segundo sua mãe lhe contava, Francisco Anísio de Oliveira Paula Filho, ainda longe de assinar Chico Anysio com um Y em lugar do I, nasceu defronte uma mangueira frondosa que abrigou vários pássaros cantores no dia de sua vinda à Terra. Embora tenha também cantado em discos, tanto séria quanto humoristicamente, a ligação com a música vinha de antes. Não só pela voz grave e bem empostada de locutor, rádioator e comentarista esportivo, como principalmente através da escrita. No baião de 1956, composto especialmente para o repertório da amiga Dolores Duran, famosa por baladas doridas de fim de noite, Chico Anysio trouxe a boca do povo para o centro do mundo. Usando as expressões típicas e matreiras do interior onde passara a infância, Maranguape, no Ceará, criou o segundo sucesso da carreira da cantora: ‘A Fia de Chico Brito’, contando a saga da mulher em busca de casamento.
Rancho da Praça XI (marcha rancho, 1965) – Chico Anysio e João Roberto Kelly
Dalva de Oliveira, dona da linda voz que conquistava súditos por onde desfilava, lançou em 1965 a marcha rancho eternizada como o grande sucesso do carnaval daquele ano, conhecido como o do IV centenário do Rio de Janeiro. Uma dupla de hilários caricaturistas do povo foi a responsável pela composição do feito. Guardavam diferenças entre si: um, cria do berço da cidade; o outro, retirante nordestino vindo de longe, muito longe, mas para ficar, e arrancar risos com várias caras. No entanto, uma semelhança os aproximava e diluía as distâncias geográficas e de formação: o riso, o humor, a maneira de olhar a vida. Com apenas estes ingredientes, João Roberto Kelly e Chico Anysio criaram juntos o ‘Rancho da Praça XI’, bonita homenagem a um dos templos de festa e alegria do Rio de Janeiro.
Rio Antigo (samba, 1979) – Chico Anysio e Nonato Buzar
Craque dos pés à cabeça, desde as sapatilhas da personagem Haroldo, o heterossexual convertido até a touca do empertigado ator Antônio Roberto, Chico Anysio sabia como manusear palavras, imagens, lápis e maquiagem. Nostalgia, esperança e reverência uniram-se umas às outras para formar a música ‘Rio Antigo’, composta no ano de 1979 em parceria com Nonato Buzar, um dos nomes do movimento ‘pilantragem’, estouro na voz de Alcione, a sabiá marrom. Séries de lembranças inserem a sensação de bem estar que as performances do humorista despertava, seja através do riso ou da lágrima. Conhecida também pelo prefixo de ‘Como nos velhos tempos’, evoca o momento onde agora repousa igualmente a seus ídolos e companheiros, a figura do multi-talentoso Chico Anysio.
Prece de Vitalina (baião, 1959) – Chico Anysio e Dolores Duran
Dolores Duran não foi somente a voz da fossa, da dor de cotovelo, do amor sinônimo de tristeza. Assim como Chico Anysio não se prendeu a um só personagem. Dolores, como a estrela que era, se aventurou em diferentes galáxias, e visitou os territórios da canção estrangeira em espanhol, inglês alemão, italiano, e mesmo esperanto. Chico, como o meteoro que se acostumou a ser, explodiu um bordão atrás do outro. Dolores Duran, municiada por contribuições de peso do compadre Chico Anysio e outros amigos, gravou um disco inteiro dedicado aos ritmos do norte brasileiro. Entre estes, coube um espaço bem alugado para uma parceria dos dois no ramo da escrita musical: ‘Prece de Vitalina’, um baião lançado em 1959, no referido disco, que com o habitual bom humor traça os planos da uma moça desenganada com o santo casamenteiro.
Tá nascendo fio (baião, 1959) – Chico Anysio e Haydée de Paula
O mestre do humor, amado condutor da Escolinha do Professor Raimundo orgulhava-se de ter espalhado filhos no gênero, na vida e também utilizava deste dom para fazer música. Como ele se definia, ‘advogado dos pobres, reprimidos, maltrapilhos, esculhambados’ onde em seu programa ‘rico só fazia papel de ridículo’, Chico sempre se importou e manteve acesa a veia crítica e social do seu trabalho. No baião lançado em 1959 por Dolores Duran, o comediante limava junto com Haydée de Paula as contradições e dificuldades das famílias de baixa renda no Brasil. Onde falta tudo, sobra espaço pra cria.
Zefa Cangaceira (baião, 1959) – Chico Anysio
Espírito gregário, protetor, dono de bom coração, alma caridosa e imensa comportam os elogios mais freqüentes ao ícone do humor brasileiro, Chico Anysio. Pois ele estava lá, no rádio, quando o tipo de humor que se conhece hoje definiu-se como o do país. Participou de inúmeras chanchadas da Atlântida, atuando ou compondo diálogos. Observador atento dos trejeitos, traquejos e causos somente encontráveis na ‘terra que tem palmeiras onde canta o sabiá, pois as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá’, Chico é instrutor do povo na condução do bonde onde este encontra risos, mobílias, ironia para a solidão, o abandono e o descaso. Embora vivesse cercado, o hábil pintor de telas e características abusou sozinho do direito de descrever a trajetória apedrejada da valente ‘Zefa Cangaceira’, em baião de 1959 lançado por Dolores Duran, no LP ‘Este Norte é Minha Sorte’. Briga boa para quem entende do riscado!
Vô bate pá tu (MPB, 1974) – Arnaud Rodrigues e Orlandivo
Como pode um rei da arte dramática, baluarte do espetáculo teatral da improvisação e espontaneidade, servir de escada para tanta gente? É que na humildade, palavra de ordem de Chico Anysio, reside o poder da palavra proferida com inteligência e sabedoria. Assim também o mestre aproveitou da fraternidade de Arnaud Rodrigues e Orlandivo, que criaram na medida exata para a sátira idealizada por ele de Caetano Veloso e o grupo Os Novos Baianos’. Sucesso de 1974 que se estendeu para os anos seguintes, ‘Vô bate pá tu’, fazia graça com o jeito sugestivo e pouco incisivo dos então destaques da cena musical brasileira. Distintamente, Chico apartou para si o papel de cantor e contribuinte.
Hino ao músico (marchinha) – Chico Anysio, Chocolate e Nanci Wanderley
Devidamente consagrado como um exemplo a ser imitado no campo da arte, Chico Anysio foi singular, único, inimitável na imitação de louros, lorotas, velhos, jovens, profetas e carolas, irreverências cultivadas no celeiro, capinadas no pasto do boi, mamadas nas tetas da vaca de um amontoado de políticos salafrários, candidatos corruptos, galãs canastrões, armado até os dentes com a verdade e a vontade de provocar riso com a reflexão, ou vice versa ao contrário. Criou a canção ‘A família’, cantada por Jair Rodrigues em festival, ‘Guarda chuva de pobre’ em que saltava como grilo mais um de seus bordões (“guarda chuva de pobre é cachaça”), cantou músicas de Mário Lago e Bruno Marnet, ambíguas entre si, ‘Não sou de nada’ e ‘Eu sou durão’, foi cantado por Elis Regina, Emilinha Borba, Alcione, Dalva de Oliveira e a amiga Dolores Duran. Encheu de felicidade muitos lares brasileiros em tardes amenas e aparentemente sem graça, até a sua chegada. Não por acaso, compôs com Chocolate e Nanci Wanderley o ‘Hino ao músico’, no qual referendava, com a autoridade de que dispunha: “Música é alegria”.
17 Comentários
Palmeirense. Ilustre. Único. Vai com Deus, Chico! Bela homenagem, PH!
Oi Raphael,
Belíssima e merecida homenagem
que me emocionou.
Sempre mandando bem, Sr. Raphael. Chico merece ser lembrando eternamente. Um gênio do humor, bom ator e compositor. Mais um que vc soube descrever bem com seu grande dom. Valeu!!!
Uma Grande Homenagem pro Grande Anysio… 😀
Palavras verdadeiras, na medida e tão merecidas ao “Grande Chico Anísio”. Parabéns, Raphael! Beijos…
Muito obrigado a todos que aqui passaram e louvaram o talento do mestre Chico Anysio! Abraços
Raphael,
Meu xará, foi uma singela e bela homenagem de sua parte. Viva Chico!
Abraços.
Muito obrigado, Rafael. Abraços
?”Ex-mulher minha não se casa de novo. É muito difícil para um marido resistir a uma comparação comigo. Até hoje dou pensão a todas as minhas ex-mulheres.” Genial!! Chico Anysio vai fazer muita falta!!
Nossa, isso sim é mestre.
Com toda a razão, Diego e Vitor. Abraços! Voltem sempre ao site.
Um adeus para quem fez…tudo,para tv e o radio. Toda a luz possivel. Bruno marnet filho
Com certeza, Bruno. Abraços
coisas que conheci no trabalho com grande chico !!!
é isso ai valeu ….
Agradecemos a homenagem, será enviada para a viúva de Chico, Malga Di Paula e os filhos dele. Um abraço.
Agradecemos a homenagem, será encaminhada à viúva e ao filhos de Chico Anysio. #ChicoVive