Lia Sophia lança ‘Eletrocarimbó’ para ‘expurgar a tristeza da pandemia’

*por Raphael Vidigal

“Se eu sorrio, uma luz tão calorosa
Rebrilha por sobre o vale
Como se a face de um Vesúvio
Seu prazer deixasse vazar.” Emily Dickinson

Lia Sophia é conectada, como deixa claro o disco “Eletrocarimbó”, que ela acaba de colocar na praça, e onde pluga na tomada um dos mais tradicionais ritmos do Pará. “Ninguém Estraga o Meu Dia” foi a última a entrar no repertório, que alia inéditas aos sucessos “Ai Menina” e “Incendeia”, temas de novelas da Globo. Lia teve o start para a derradeira música enquanto navegava pelo Instagram e se entretinha com as postagens do perfil “Manga Poética”.

Ali, ela colheu as expressões que celebram o modo de viver do povo paraense e deu corpo aos envolventes versos: “De bubuia na rede/ Tomando açaí com farinha/ Ao som de um brega marcante/ Pra embalar o meu dia…”. Nascida em Caiena, na Guiana Francesa, Lia foi criada em Macapá, cresceu em Belém e, atualmente, reside em São Paulo. As influências desse mundo diverso e pulsante aparecem no álbum.

1 – “Sinhá Pureza” foi sucesso em todo o Brasil ao ser gravada por Eliana Pittman em 1974. Como essa música entrou na sua vida?
A minha mais antiga lembrança com essa música é da minha infância, em festas que aconteciam em casa. Quando tocava “Sinhá Pureza” era como se acontecesse uma explosão de alegria! Todos se levantavam e começavam a dançar. Essa música é uma inspiração para o meu trabalho. Eu já venho fazendo experimentações com o carimbó e a música pop nos meus trabalhos, e essa influência vem do grande mestre Pinduca, autor da música, que eletrificou o “carimbó pau e corda”, colocando guitarra, contrabaixo e bateria, desde 1974.

E, claro, ele sofreu muitas críticas por isso, mas abriu o caminho para muitos outros artistas que se inspiram na cultura do carimbó, como eu. Quando conversei com o mestre Pinduca, explicando para ele o projeto e pedindo a sua permissão para regravar “Sinhá Pureza”, ele me disse, com toda a sua torcida e carinho de sempre, que eu sou a sucessora nesse caminho de experimentações com o carimbó, e que ele torce para que as pessoas estejam mais abertas e me critiquem menos do que o criticaram no passado.

2 – Você nasceu na Guiana Francesa, foi criada em Macapá, mudou-se para Belém e, atualmente, reside em São Paulo. Como essas influências regionais afetam a sua música?
Cada lugar onde vivi me marcou com a sua cultura e a sua música. Caiena, lugar onde nasci, é presente na minha vida até hoje, com o zouk que é produzido e muito tocado por lá. Tenho várias composições que tem essa levada sensual do zouk. De Macapá eu trago os batuques e o marabaixo, música das festas tradicionais africanas dos quilombos da região do Amapá. A minha infância foi em um bairro de Macapá tradicionalmente de maioria negra, onde aconteciam muitas festividades que incluíam missas, danças de roda e diversos rituais do marabaixo.

A minha música “Eu Me Chamo Amazônia” é um marabaixo. De Belém, eu trago toda a alegria e o suingue do brega e do carimbó. Ritmos que eu ouvia mesmo morando em Macapá. Belém conseguia expandir e exportar a sua cultura para Estados próximos com mais facilidade do que outros da região. E acho que isso acontece até hoje. Morando em São Paulo, que é uma cidade cosmopolita, urbana e cheia de influências de diversas culturas, eu expandi ainda mais a mistura que eu faço, firmando parcerias com outros artistas e produtores, como na música “Ela Chegou Pra Ficar”, feita com o carioca Bernardo Massot, o mineiro Charles Júnior e o paulista Marcelo Brito.

3 – Em um mundo de crescente intolerância aos retirantes e de xenofobia contra os refugiados, qual a importância de se proclamar a diversidade de origens?
Quando você conhece as pessoas, as histórias e a cultura de um lugar, os preconceitos diminuem e as pessoas se aproximam. Ainda há um preconceito muito grande com a região amazônica e com a cultura produzida lá. É incrível como o olhar colonizador e desbravador sobre a Amazônia profunda, a sua gente e a sua cultura, são presentes e atuantes ainda hoje. Há sempre alguém achando que descobriu uma grande novidade escondida nos remotos recantos amazônicos. Na verdade, essa é uma cultura pulsante, original e plural, que está em constante diálogo com a cultura-mundo. Eu sou uma filha dessa floresta, como tantas e tantos, que falam das suas raízes, mas estão em constante diálogo com o mundo.

4 – O que te inspira a compor e como é o seu processo de criação artística?
Muitas coisas me inspiram a compor. Por exemplo, “Ninguém Estraga o Meu Dia”, que também faz parte do “Eletrocarimbó”, eu compus a partir de posts de um perfil no Instagram, chamado “Manga Poética”. Esse perfil usa, de forma bem humorada, expressões que enfatizam o modo de ver a vida do povo paraense. Já “O Que É Que Ela Tem?” é uma parceria minha com a Jana, que surgiu em junho de 2020.

Ela me propôs fazermos uma música para o aniversário de Santarém, porque ela cantaria em um telejornal local e queria apresentar algo novo. Tínhamos pouco tempo para compor e concluímos a música em um único dia. Inclusive, gravamos um clipe, eu dentro de casa e ela em Alter do Chão, e que lançaremos em breve. Acabamos não lançando a música no ano passado, e agora ela entrou nesse EP. A música faz um paralelo entre uma personagem feminina e a cidade de Santarém, perguntando sempre o que é que ela tem. Aí vamos falando das belezas e da cultura da cidade.

5 – Aproveitando o ensejo, como nasceu a música “Vem Me Namorar”?
“Vem Me Namorar” é uma parceria minha com o Matheus VK. Ele me enviou uma parte dessa música no início de 2020, me dizendo que ela era a minha cara e só eu poderia terminá-la. Quando eu ouvi, entendi que se tratava de um carimbó, mas com a cara moderna do Matheus, e eu adorei! Foi assim que surgiu essa parceria. Todas elas foram produzidas em casa e à distância, num processo lento que exigiu paciência. Mas ficamos felizes com o resultado. “Vem Me Namorar” está sendo super bem recebida pelo público, em menos de 24 horas do lançamento, ela alcançou mais de 4 mil plays em uma única plataforma de streaming. Essa é uma marca muito boa para uma artista independente!

6 – Qual a importância das músicas “Ai Menina” e “Incendeia” na sua trajetória?
Elas me abriram espaços importantes e me fizeram alcançar um público enorme por causa das novelas de que fizeram parte. “Ai Menina” foi composta em 2011, em um momento não muito tranquilo da minha vida. Eu estava insatisfeita com a música e pensava em mudar de profissão. Mas, ainda assim, lancei neste ano um EP com 3 músicas (“Ai Menina”, “Amor de Promoção” e “Salto Mortal”) e coloquei em uma plataforma de música gratuita para que as pessoas pudessem ouvir e baixar gratuitamente.

Foi assim que o produtor da novela “Amor Eterno Amor” encontrou a minha música. Daí aconteceu que ela entrou na novela e foi a segunda música mais executada da trama. Aí a minha vida deu uma virada! Rodei o Brasil todo fazendo shows, ela estourou em várias rádios, eu fui a dezenas de programas de rádio e TV, participei de uma cena da novela, etc. Enfim, ela é um divisor de águas na minha carreira. Já “Incendeia” foi lançada na novela “A Força do Querer”, em uma cena em que participei fazendo um show. Aí de novo aconteceu todo o movimento que a visibilidade de uma novela traz.

7 – Porque você decidiu revisitá-las agora, com uma nova roupagem?
Os remixes só vieram agora porque eu realmente não sentia a necessidade de apresentar uma nova versão para elas antes. Elas cresceram naturalmente, e mesmo “Ai Menina”, que já tem dez anos, ainda é muito bem recebida pelo público. Como sou muito fã do Dj Lucio K, resolvi entregar a ele a missão desses remixes. E estou muito feliz com resultado! Revisitá-las funciona para mim como um amálgama na minha trajetória artística, mostra a evolução dessa caminhada.

8 – De que maneira você tem lidado com a quarentena e enfrentado a pandemia?
Eu tenho vivido essa pandemia como muitas pessoas, entre altos e baixos, oscilações de humor, horários trocados, falta de sono ou sono intenso, e torcendo a cada dia para que isso acabe logo. A preocupação com o sustento é grande. A classe artística, onde me encaixo, foi uma das mais afetadas. Os rendimentos não diminuíram, eles desapareceram. Mas eu tenho visto acontecer um movimento muito bonito de colaboração entre os profissionais da área. Esse álbum é, de certa forma, uma catarse, uma explosão de alegria, uma forma de expurgar toda essa tristeza que temos sentido nesses dias. Espero que as pessoas se entreguem a esse sentimento de alegria que a música e as animações produzidas para o álbum pelo artista visual Kambô sugerem.

Fotos: Fred Chalub/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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