Joyce Moreno: “Nunca tinha visto um governo com este ódio à cultura”

*por Raphael Vidigal

“Procuro palavras para definir o que sinto e não encontro. Talvez elas nem sequer existam, talvez seja apenas um fluxo mais forte de vida abrindo os sentidos, embrutecendo o raciocínio.” Caio Fernando Abreu

Logo que surgiu, a cantora Joyce Moreno, 71, chamou atenção por ser uma mulher dona do próprio discurso. Ou seja, além de cantar, ela era a autora de obras que, com melodias inspiradas na bossa nova e uma lírica particular, desvendavam o universo feminino sob o prisma único da mulher que se colocava como detentora dos próprios desejos e vontades. Ao festejar, em 2018, os 50 anos de seu LP inaugural, ela decidiu regravá-lo na íntegra. Ali estava presente “Me Disseram”, que integra a sétima coletânea da Mostra Cantautores. Joyce comemora o lançamento mas, com todo seu tempo de estrada, se revela preocupada com a valorização da autoria, grande mote da mostra.

1 – O que foi mais marcante para você na sua participação na Mostra Cantautores?
Gostei muito de tudo, as conversas sobre música e criação com músicos e jornalistas, o show solo para um público incrível, foi tudo ótimo. Mas o ponto alto em Minas são sempre as comidinhas, não conte pra ninguém (risos). Agora falando sério, acho muito importante que se celebre a autoria, sempre. Estamos vivendo um momento em que os autores são escondidos do público por estas novas plataformas digitais. Ninguém mais sabe quem são os autores das músicas. Isso é muito grave, pois somos produtores de conteúdo, e sem conteúdo as plataformas não existem.

2 – Como tem visto o momento político de polarização do país e o que pensa sobre a situação da cultura?
Bom, em minha carreira de 50 anos na música, pensei que já tinha visto de tudo. Mas este ódio a cultura que vem sendo fomentado pelas altas instâncias governamentais, isso eu nunca tinha visto. Acho essa polarização terrível, o país está muito doente. Famílias se desentendendo, amizades de anos e anos sendo desfeitas, uma parte da sociedade rejeitando a ciência, o progresso, a cultura, a civilização. Outra parte se sentindo exausta, deprimida, sem energia. Isso é alimentado diariamente, como uma forma perversa de manutenção do poder. Ou mesmo para desviar a nossa atenção. Isso não vai dar certo nunca. Quando a ficha cair, tudo que foi conquistado e construído por décadas terá desmoronado. E levaremos o dobro do tempo para reconstruir. Por mim, não tenho medo de nada, mas temo pela geração dos meus netos. São eles que terão que lidar com as consequências do que deixamos acontecer hoje.

3 – Quais são os seus planos mais imediatos?
Não sou muito de fazer planos, as coisas vão acontecendo em sequência e eu apenas acompanho o fluxo. No momento, estou numa turnê entre Europa e Estados Unidos. Daqui a um mês estarei no Japão. O próximo projeto é o de um DVD referente aos 50 anos de carreira, mas bem diferente do formato de show gravado, será uma coisa mais documental mesmo. Basicamente, é isso.

“Bloco do Eu Sozinho” (marcha, 1968) – Marcos Valle e Ruy Guerra
No Festival de Música Popular Brasileira de 1968, Marcos Valle e Ruy Guerra concorreram com “Bloco do Eu Sozinho”. Embora não tenha faturado o prêmio, a marcha angariou regravações de Joyce e do Quarteto em Cy naquele mesmo ano. Chico Buarque também deu voz a essa canção décadas depois. Como já anuncia a letra, a música traz a convivência entre a melancolia da solidão e uma leve esperança carnavalesca. “No bloco do eu sozinho/ Sou faz tudo e não sou nada/ Sou o samba e a folia/ De fantasia cansada/ (…) Sou o enredo da parada/ Sou cachaça e sou tristeza/ Pulando junto e sozinho/ Faço da rua uma mesa”. Já em 2001, a expressão que dá título à música serviu para batizar o segundo disco do grupo carioca Los Hermanos, que alcançou muito sucesso.

“Essa Mulher” (MPB, 1979) – Joyce e Ana Terra
Joyce e Ana Terra são duas das compositoras mais proeminentes e pioneiras da música brasileira. As duas tomaram as rédeas da composição feminina em uma espécie de segunda onda desse movimento, após o aparecimento de nomes como Dolores Duran e Maysa nos anos 1950. Não foi por acaso que, em 1979, a música “Essa Mulher”, parceria da dupla, deu nome ao disco de Elis Regina, que trazia uma belíssima flor na capa. Segundo Elis, as compositoras “conseguiram traduzir o dilema das mulheres que”, assim como ela, “trabalham e cuidam da casa e da família”. A música é uma das mais fortes desse repertório.

“Feminina” (MPB, 1980) – Joyce
De maneira um pouco menos explícita e mais comedida, Joyce também contestou, em seu disco, “Feminina”, de 1980, as obrigações que a cultura machista legava às mulheres. Na música de mesmo título, a compositora e cantora ensaia um suposto diálogo com a mãe, que seria representante desta tradição, e desvirtua o rumo da conversa. Afinal a mulher feminina de Joyce possui caminhos, possibilidades, e tem toda a liberdade para traçá-los como bem desejar. Uma típica peça da nossa MPB que encanta pela singeleza dos acordes, centrados no melhor do nosso samba, em que Joyce desfia o poema: “Termina na hora de recomeçar, dobra uma esquina no mesmo lugar…”.

“Marcha da Quarta-Feira de Cinzas” (marcha-rancho, 1963) – Vinicius de Moraes e Carlos Lyra
Um ano antes de a ditadura militar se instalar no Brasil, Vinicius de Moraes e Carlos Lyra compuseram a “Marcha da Quarta-Feira de Cinzas”, como que pressentindo aqueles tempos sombrios. Mas a canção, ao contrário de se entregar à tristeza pelo fim da folia típica da quarta-feira, apostava numa mensagem de esperança: “E, no entanto, é preciso cantar/ Mais que nunca é preciso cantar/ É preciso cantar e alegrar a cidade…”. Os versos inspirados de Vinicius receberam uma melodia igualmente contagiante e comovente de Carlos Lyra. A música foi lançada em 1963, por Jorge Goulart, e regravada por Nara Leão em 1964, na versão que ficou mais conhecida, quando os militares já estavam no poder. Elis Regina, Jair Rodrigues e Joyce também a gravaram.

“Louco (Ela é Seu Mundo)” (samba, 1943) – Wilson Batista e Henrique Almeida
Era notória nos arredores da Lapa, a fama de conquistador de Wilson Batista. Apesar disso, ele fixou residência no amor, ao se casar com Marina Batista e ter com ela três filhos. No samba de 1943, “Louco (Ela é Seu Mundo)”, em parceria com Henrique de Almeida, Wilson apresenta a loucura como a condutora oficial do sentimento menos previsível do homem. Com versos que descrevem a agonia do protagonista, o compositor apresenta uma bela letra, que acompanha os passos sem rumo. Lançada por Orlando Silva, ela ganhou regravação de Nelson Gonçalves, que revive com maestria todas as nuances da melodia, João Nogueira, Noite Ilustrada, Joyce, Cristina Buarque, Aracy de Almeida, João Gilberto, Elza Soares entre outros, reafirmando a sua qualidade.

“Saudade dos Aviões da Panair” (clube da esquina, 1975) – Milton Nascimento e Fernando Brant
Morto em 2015, aos 68 anos, após complicações decorrentes de uma cirurgia de transplante de fígado, Fernando é o homenageado de “Vendedor de Sonhos”, álbum com produção de seu sobrinho e músico Robertinho Brant, que começou a ser arquitetado quando o compositor ainda era vivo. Foi o próprio Fernando, aliás, quem sugeriu que Joyce Moreno cantasse “Saudade dos Aviões da Panair”, uma das 20 faixas do disco. Além de exaltar a melodia “em compasso quebrado, em 5/4, que você não sente a estranheza, depois vira 3/4 e tudo continua parecendo fácil, intuitivo”, de Milton Nascimento, Joyce chama a atenção para a letra de Fernando, que, segundo ela, “faz da Panair (companhia aérea extinta em 1965 pela ditadura militar) um símbolo de um tempo e de um país que se perderam”, lamenta Joyce.

“Ontem ao Luar” (polca, 1907) – Catulo da Paixão Cearense e Pedro de Alcântara
“Catulo foi o grande gênio da música e da cultura popular brasileira de 1880 a 1940, o maior poeta desse período e talvez o compositor que mais tenha tido músicas gravadas entre 1902 e 1930”, atesta o pesquisador e jornalista Gonçalo Junior, que lança mão de uma força de expressão para melhor denotar essa característica. “Ele é o pai de Luiz Gonzaga e Guimarães Rosa. Catulo absorveu a tradição portuguesa à literatura de cordel, que ele popularizou durante a República no Rio de Janeiro. Tinha muita facilidade com versos, tanto que publicou uma infinidade de livros”. Em 1913, à revelia do compositor da melodia, Catulo criou versos para “Ontem ao Luar”, polca de Pedro de Alcântara que se eternizou e recebeu regravações de Marisa Monte, Fafá de Belém, Rubel, Vicente Celestino, Carlos Galhardo, Joyce, entre outros.

“O Poeta Nasce Feito” (MPB, 2017) – Torquato Neto e Joyce Moreno
A compositora Joyce Moreno, que foi amiga do poeta e o conheceu num encontro em que também estavam Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia, tornou-se parceira póstuma de Torquato. “Por conta do documentário ‘Todas as Horas do Fim’, os diretores descobriram uma anotação na casa da família dele, em Teresina, onde ele dizia que queria fazer uma música comigo”, conta Joyce. “O Poeta Nasce Feito”, fruto da união entre os versos de Torquato e a melodia de Joyce, é uma das faixas do disco da cantora de 2017, “Palavra e Som”. “No canto esquerdo do riso?/ No lado torto da gente? Talvez/ O que mais forte preciso/ Não sei sequer se é urgente”, diz a letra.

Foto: Léo Aversa/Divulgação

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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