“Arcanjo domesticado
em pleno gesto das doze,
de plumas e rouxinóis
finge uma cólera doce.” García Lorca
Não havia motivo aparente. A carta era apenas um ponto final. Com o canivete escrevera as duas histórias: a da morte e a da despedida. Uma cravara na carne, a outra num papel qualquer. Quando a encontraram a sua imagem era de transparência. Uma ausência que só a morte concede. Não havia mais os traços de turbulência em sua face, a rubra coloração, que lhe garantia perante os outros uma extrema vitalidade, agora descansava. Tudo era repouso e silêncio. Como se finalmente estivesse integrada ao mundo perante a sua inexistência aos olhos humanos. Os seios que sempre foram a marca de sua inquietude, pois a representavam tanto para si quanto para os outros, esbaforidos e impacientes como pombas que desejavam escapar de uma gaiola, eram agora uma sombra condensada ao corpo, parado, imóvel, sem guardar mais nenhum desejo nem nenhuma aflição.
A turbulência restava na carta. Apenas um ponto final. Ela que em toda vida particularizara-se por hipérboles e redundâncias despedira-se sem nenhum eufemismo, com uma plena concordância. Restava para os outros adivinhar, ou aceitar com resignação a falta de sentido ou profundidade como fazem os bois e as vacas, e todos os animais que sob o comando de Noé escaparam numa arca do dilúvio e da tempestade. Não havia motivo nenhum. Os desejos e as aflições eram os mesmos de seus semelhantes, que continuavam com os olhos abertos, os seios pulando, a coloração rubra da pele, os sexos em riste e se abrindo, e ignoravam que para se integrar ao mundo era necessário que a morte os aplainasse com sua quietude, a imobilidade do sono. Havia uma criança que não saía da frente. Só implorava e se debatia. Silêncio. O poeta está pensando. Foi o que lhe veio na hora.
O poeta guardava uma expressão de desprezo para a criança. Uma expressão séria. Desesperada. Uma expressão que ia se transformando a cada olhar e segundo. A anja, só, em seu colo, e que suicidara, parecia dizer para ele que a vida, apesar de tudo, é uma história. E como inventada pode tornar-se invisível só com um ponto final, numa carta. Apesar de transparentes, a anja, o poeta e a criança, eram vistos por todos que, nesse susto, aceleravam seus corações com cordas. Sem saberem se por fome ou ansiedade (Formidade?), convidaram o autor dos versos a dividirem com eles um banquete, que, também invisível, seria celebrado numa taberna mágica. Uma taberna dos tempos idos quando a anja, antes do suicídio sem motivo aparente, desfilava com suas asas, pulava com os seios mágicos como pombas que fugiriam das gaiolas, despertava desejos e aflições, que eram os mesmos, que eram os seus, que eram nossos. E que ainda nos abalam.
Experimento essas sensações ao escrevê-las, por que ao tocá-las, eu não concedo. Agora morta, agora pérfida, terrível e tenebrosa no aguilhão da morte, tudo o que restou para o poeta é um mingau, uma sopa, um moletom de frio com o qual agasalha sonhos inconscientes, perdidos, distantes. Com querosene esquenta a sopa. Todo alquebrado e em farrapos, um percevejo o bica a sopa, e lembra o beijo que dava a anja. Era um beijo dissimulado, com a ponta dos lábios, o bico dos seios quando lhe tocavam desejos e aflições. Descansa, pois, que chega a morte com sua infâmia. E resta a literatura. Descansa, pois, que eu se quiser ressuscito a anja nesse meu conto, nessa literatura, sem preocupação de cheiro, de tempo, barulho. Pela discórdia. E por amor.
Raphael Vidigal
Pinturas: “O Concerto”; e “Sobre a Cidade”, de Marc Chagall, respectivamente.