*por Raphael Vidigal
“passou um bom tempo olhando e recordando, nessa operação comparativa e melancólica da recordação frente à realidade perdida; recordação petrificada, como toda fotografia, onde não faltava nada, nem mesmo e principalmente o nada, verdadeiro fixador da cena.” Julio Cortázar
Charmosa, meio debochada, com as mãos nas cadeiras, parece que Elis assobiava. Essa é apenas uma das cem fotos que integram o livro “História da Música Brasileira em 100 fotografias”. Com o reconhecido apuro editorial da Bazar do Tempo e organização dos pesquisadores Hugo Sukman e Rodrigo Alzuguir, a publicação é um deleite para os olhos e, porque não dizer, os ouvidos. “Essa foto linda da Elis”, como Alzuguir define, flagra a artista nos bastidores de “Falso Brilhante”, “talvez o show mais significativo dentre tantos shows maravilhosos que a Elis fez”, pelas lentes do fotógrafo Bob Wolfenson, um mestre do ofício, dono de cliques consagradores de Caetano Veloso, Luiz Melodia, Chico Buarque, Angela Ro Ro, Rita Lee, Elza Soares, Belchior, e etc.
“Acabamos optando pelo ‘Falso Brilhante’ porque é o momento em que ela está ali, empoderadona, à frente, não está colaborando com ninguém, nem é um trabalho compartilhado”, explica Alzuguir, que cogitou escolher uma foto de Elis durante as gravações do disco com Tom Jobim, de 1974, “considerado um marco da música brasileira e clássico até internacional, a turma do jazz ama”, ou um dos instantes luminosos ao lado de Jair Rodrigues no comando do histórico programa “Dois na Bossa”, apresentado na TV Record na década de 1960. “A gente sabia que precisava ter a Elis no livro, aí fomos pensar qual momento a gente queria retratar e era difícil porque a Elis teve vários auges”, diz. Ele compara o processo a “uma mistura de quebra-cabeças com gincana”.
Cliques. Surpresas e desapegos também fizeram parte da caminhada. “A gente tinha um assunto que queria que estivesse no livro, ou uma figura que achava importante estar representada e, a partir dessa certeza, buscava uma fotografia relevante, significativa desse assunto, tema ou pessoa”, detalha Alzuguir. Tom comparece ao lado do insubstituível parceiro Vinicius de Moraes, que lhe acende o cigarro; Caetano Veloso levanta uma sobrancelha mais do que a outra, em gesto de inquisição; Raul Seixas e Paulo Coelho tocam as trombetas de um anjo de mármore; Clara Nunes exibe o sorriso numa roda de samba; enquanto Dolores Duran não esconde a melancolia na mesa do bar; e, quando você acha que já viu de tudo, Nelson Cavaquinho e Lupicínio Rodrigues entrelaçam os braços e copos com a destreza peculiar dos boêmios.
Fotos escolhidas, essa brincadeira de criança – no melhor sentido do termo – entra na fase chata. “Aí tem a negociação com os fotógrafos, ver a que acervo pertence a fotografia, se ela está disponível ou não, mil questões burocráticas que interferem no processo”, conta Alzuguir. “A gente, como pesquisador, sabe mais ou menos os acervos principais com os quais podemos contar, como o do Museu da Imagem e do Som, o do Instituto Moreira Salles, o da Revista Cruzeiro, que fica em Minas Gerais, e, às vezes, entramos em contato direto com os fotógrafos, como foi o caso do Wilton Montenegro, que fotografou aquelas imagens icônicas da Clara Nunes”. Clementina de Jesus, que gerou um dilema, aparece com o grupo Rosa de Ouro. A imagem da cantora no Teatro Municipal tentou os autores, mas, por força do todo, optaram pela outra.
Impressão. “Não teve uma foto que me impressionou especificamente, mas o conjunto das imagens impressiona, quando a gente as observa todas reunidas, impressiona a força da música brasileira, a quantidade de personagens fantásticos que tivemos ao longo dessa história”, crava Alzuguir. Ele considera “um achado de pesquisa”, as primeiras imagens do livro, que captam a chegada da música colonial, barroca, indígena, dos povos originais ao Brasil. Com a curadoria dividida entre ele e Sukman, a dupla realizou uma divisão afetiva dos temas e personagens. Diretor de “Clara Estrela” (2017), documentário feito com Susanna Lira, e autor da biografia “Wilson Baptista: O Samba Foi Sua Glória!” (2013), Alzuguir tomou para si os ídolos, assim como Villa-Lobos, Sinhô, Aracy Côrtes, Pixinguinha, Nelson Cavaquinho, e etecetera.
“São assuntos que fazem o olho brilhar. E o Hugo (Sukman) também teve os dele. Nós somos muito complementares. Embora a gente ame a música brasileira como um todo, cada um tem as suas predileções. Ele tem uma afeição e um interesse mais específico pela geração da bossa nova pra cá, os grandes compositores da MPB, Vinicius, Tom, e eu tenho paixão pela geração mais antiga, de Noel Rosa, Wilson Baptista, Ary Barroso, os pioneiros do samba e alguns artistas específicos que alcançaram muito sucesso nos anos 1970, como Elis, Clara Nunes, Paulinho da Viola”, exemplifica. A dupla, no entanto, não ficou sozinha nessa parada. Um time de peso foi convocado para assinar os verbetes que acompanham as fotografias no decorrer da publicação. E a parceria com a historiadora Heloisa Starling foi decisiva para a empreitada.
Tempo. O grupo de pesquisadores coordenado por Heloisa entrou em campo para complementar os verbetes, escalado com nomes como Luiz Antonio Simas, Eucanaã Ferraz, Helena Aragão, Luciana Medeiros, Silvio Essinger e Vagner Fernandes, responsável pelas linhas sobre Paulinho da Viola. Outra opção foi pela linearidade da narrativa. “História da Música Brasileira em 100 fotografias” nasceu como espécie de desdobramento da “História do Brasil em 100 fotografias” (2017), o que justificou a decisão. “Essa questão cronológica é um pouco herdeira do formato do livro anterior. Às vezes a gente tenta fugir do formato cronológico, mas eu acho que ele apresenta boas soluções em vários sentidos”, avalia Alzuguir, que admite lançar mão de “uma palavra desgastada”.
“A gente consegue uma ideia da ‘evolução’, não no sentido de melhora, mas do desdobramento de cada etapa, do que foi que levou a quê, o que acarretou em quê, enfim”, observa. “Então, quando passeamos pelo livro, dá esse sabor de uma espécie de viagem de trem por mais de um século de música brasileira e você vai vendo tudo acontecer, não apenas do ponto de vista musical, mas também em relação à história social e cultural do Brasil”, vaticina. Apesar desse interesse, Alzuguir salienta que o lançamento permite novas possibilidades. “Tenho vários amigos, colegas e pessoas que me escrevem nas redes sociais dizendo que estão lendo fora de ordem, porque é um livro que tem essa capacidade de ser lido ao gosto do freguês, como uma espécie de almanaque que fica na cabeceira, ao alcance da mão, para uma leitura rápida”.
Brilho. Outro destaque são os verbetes daqueles que operam as câmeras, os olhos por trás das imagens que nos fascinam. “Talvez seja um trabalho inédito reunir essa galeria de fotógrafos que se dedicaram à música brasileira”, afirma Alzuguir. “Muita gente se dedicou inteiramente a fotografar a música brasileira, ou tem esse trabalho numa zona de brilho”. Os perfis contemplam especialistas do porte de Cafi (da icônica capa do disco “Clube da Esquina” de Milton e Lô); Paulo Scheuenstuhl, que congelou o encontro de uma constelação da MPB em 1967, organizada por Vinicius de Moraes e pelo executivo (e pai de Cazuza) João Araújo, mandachuva da gravadora Som Livre; Steph Munnier (que fotografa Elza); Pedro de Moraes (herdeiro direto de Vinicius), entre outros. “É um livro que tem muita informação e conteúdo, embora seja de fácil manuseio”.
A aventura não seria possível sem a determinação da editora Ana Cecilia Impellizieri, fiadora do projeto, a quem Alzuguir chama, carinhosamente, de Ciça. Os dois se conheceram quando ele escreveu a biografia de Wilson Baptista para comemorar o centenário do sambista, e abocanharam o prêmio Jabuti de Literatura, Alzuguir na função de escritor e, Ciça, como editora. Foi o primeiro livro do entrevistado, o que deu início a uma parceria e amizade que seguem firmes. “A Ciça é uma editora muito generosa e obstinada, que dá um jeito de fazer as coisas mesmo em tempos de pandemia e de política anticultura”, elogia. Na opinião de Alzuguir, o livro tem um papel importante, “nesse momento sombrio aonde parece que o artista está sendo criminalizado”.
Força. “A arte é contestação, ela está sempre trazendo novos olhares, sendo irreverente ao estabelecido, e isso é muito perigoso aos olhos do status quo, de quem quer que tudo continue igual no Brasil”, destaca o escritor. “A música brasileira contém essa possibilidade de mudança”. Ele dá como exemplo a trajetória de Nara Leão (1942-1989), que, em plena ditadura militar, estreou em disco cantando Nelson Cavaquinho, Cartola e Zé Kéti, “meio que virando a página da bossa nova e trazendo os sambistas populares para o centro da arena”. “Depois ela faz o espetáculo ‘Opinião’ no momento em que estava se iniciando a ditadura no Brasil. Você percebe como a música brasileira está o tempo inteiro traduzindo e reinventando o Brasil”, afiança Alzuguir, e não para.
A contribuição da música de origem africana também é destacada. “A música brasileira é preta, temos fotos lindas da Elza Soares, do Pixinguinha com os Oito Batutas, os sambistas todos, Lupicínio Rodrigues”, enumera. “A quantidade de figuras importantíssimas que fizeram nossa cultura e que são oriundas de cenários pouco privilegiados dá a medida dessa contribuição fundamental, ter negros protagonizando essa história, nesse momento, é fantástico, revela um espaço democrático, de liberdade de expressão, que precisa ser preservado e celebrado”, enaltece o autor, com legítima satisfação.
Luz. “A história da música brasileira é tão vibrante e conectada com o entorno, que só de folhear o livro isso nos salta aos olhos. Ter o artista, a cultura e a intelectualidade celebrada dessa forma tangível, em um livro que vai estar aí para sempre, pode ser considerado até um grãozinho de areia, mas é fundamental nesse momento tão sombrio que atravessamos”, finaliza Alzuguir.
“História da Música Brasileira em 100 fotografias”
Editora: Bazar do Tempo
Organização: Rodrigo Alzuguir e Hugo Sukman
Edição: Ana Cecilia Impellizieri Martins e Heloisa Starling
Páginas: 304
Preço: R$ 120,00
Vendas: www.bazardotempo.com.br