Godard e os árabes: o olhar do cineasta francês sobre ‘os perdedores’

*por Raphael Vidigal

“ todos os resistentes apagados,
Do naufrágio do tempo caído na costa,
estes fragmentos protegidos contra a ruína,” Ezra Pound

A morte é iminente. Estamos todos na iminência da morte, alguns mais, outros menos, ou todos igualmente, dependendo do aguçamento do olhar. Há três meses, Jean-Luc Godard, um dos maiores cineastas de todos os tempos, abandonou a vida por iniciativa própria, num recurso chamado de suicídio assistido. Aos 91 anos, tomou uma atitude que reforçou a imagem petulante e insubordinada que ele construiu, num ato final que, sob outras circunstâncias, poderia soar como fuga, mas, no seu caso, obteve a medida do enfrentamento.

Ao escolher a morte – ainda que diante de sua inevitabilidade, muitos procuram rechaça-la ad aeternum –, Godard trocou a mansidão pelo mistério, a segurança pelo desconhecido e abraçou a dúvida com todas as suas dores. Lançou-se no abismo do que não-é sem temer as consequências. Assumiu o nada como sujeito. Extinguiu-se voluntariamente. O desaparecimento do gênio do cinema colocou ponto final numa história marcada por interrogações. No último filme que dirigiu, “O Livro da Imagem”, de 2018, mal traduzido para “Imagem e Palavra” no português, ele seguia a sua investigação da linguagem.

A linguagem, morada da humanidade, como disse um. Mas “não pode tudo estar numa linguagem”, refletiu Ezra Pound, poeta norte-americano preso por sua colaboração com os nazistas. De fato, além da linguagem, Godard se concentrava na política, o que não deixa de estar atrelado, e aí entram os árabes. Defensor do Estado da Palestina, em “O Livro da Imagem” ele revê a trajetória do povo árabe, à sua maneira caótica, poética e livre. São os inventores da linguagem e, ao mesmo tempo, a quem foi reservado o lugar de marginalidade. Eles vagueiam no deserto e cobrem o corpo de túnicas brancas.

A simpatia de Godard vem justamente do fato de serem eles “os perdedores”, e, até mesmo, os perdidos. Num mundo globalizado que transforma tudo em mercadoria, e guerreia para subjugar os que não aderem à sua lógica mercantilista, os árabes resistem com crenças milenares, uma cultura ancestral e primitiva, e costumes que saíram de moda nas vitrines do ocidente uniforme. À pasteurização de relações mediadas pela superficialidade, eles respondem com violência, e isso também agrada Godard. Há algo de real em todo sangue.

Godard satura as imagens, estoura o calor do sol ao limite do suportável para a visão humana, explode com a linguagem, e refaz um mundo cuja constante é a destruição e o martírio dos povos erráticos, que os árabes representam como nenhum outro no século XXI. De lá, surgem as piores e mais devastadoras guerras desde as hecatombes nucleares, em busca de petróleo. A riqueza do solo árido, de uma paisagem desértica, é o que causa a sua desgraça. Mas Godard rejeita a calamidade bíblica, terminada em redenção. Para ele, não há destino. A culpa pertence à humanidade e às suas escolhas erradas. Sempre…

A marginalidade de Godard está em “Carmen”, quando ele acompanha um grupo de jovens terroristas, e, antes ainda, no “Bando à Parte”, de 1964. Enquanto a ditadura dos milicos se instaurava no Brasil, Godard filmava a história da dupla de camaradas que seduz uma moça da sociedade para assaltar a mansão de uma tia milionária. Não é preciso ir muito longe para detectar esse gosto pelo proibido. “O Acossado”, sua barulhenta estreia, começa com o roubo dum carro e prossegue com a perseguição ao galã-herói.

Afinal de contas, é ele quem está sendo acossado. Inconformado com o mundo à sua volta, intransigente com toda e qualquer mediocridade, Godard conservou o pensamento próprio como forma de liberdade. Ao mirar os árabes, ele vislumbrou um espelho retorcido, em que sua própria imagem ganhava contornos dramáticos. Franco-suíço, nascido em berço de ouro na Europa cuja tradição ele usualmente renegou, Godard manteve o espírito do radicalismo. E, para ele, aquele que tivesse o estigma da derrota era um aliado na revolução…

Fiel aos preceitos da esquerda, com flertes para o marxismo alemão, o comunismo chinês e o proletariado soviético, a identificação de Godard não era meramente estética, mas continha elementos de forte teor ideológico. Não se deve cair na esparrela de concluir que essa aliança entre ele e os marginalizados fosse mera inquietação juvenil, ao estilo “rebelde sem calças”. A crítica que Godard realiza ao modo de produção e às relações estabelecidas pelo capitalismo está no cerne de sua identificação com os excluídos. A percepção de que essa lógica produz injustiça, avareza e mediocridade, impedindo o humano de alcançar as profundezas da vida, foi o seu farol-guia…

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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