Gabriela Luque: ‘Nasci para pensar e trabalhar teatro’

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Vocês, artistas, que fazem teatro
Em grandes casas, debaixo de luzes artificiais
Diante de multidões silenciosas, procuram às vezes
Este teatro que se representa nas ruas.
O teatro cotidiano, múltiplo, que não tem glórias
Mas que é tão vivo, terrestre, alimentado da vida social
E que se representa nas ruas.” Brecht

Dramaturga, atriz e diretora, Gabriela Luque, 35, nasceu em um meio privilegiado, onde cinema, teatro e artes plásticas foram estimulados desde que ela se entende por gente. “Aos fins de semana, minha mãe me dava o ‘Gurilândia’ (jornalzinho para crianças dos anos 1990) e dizia para eu escolher uma peça de teatro para irmos. Sei que isso não ocorre com todas as pessoas e que esse incentivo é uma exceção”, sublinha Gabriela. Em 1994, na 1ª edição do Festival Internacional de Teatro de BH, ela e a mãe foram assistir a um espetáculo de rua do grupo francês Générik Vapeur, chamado “Bivouac”. “Morri de medo porque nunca tinha visto nada daquele tipo. Eu tinha apenas 5 anos, e é uma das lembranças mais interessantes que carrego sobre teatro, pois foi a minha primeira experiência de assistir algo que não era, exatamente, para crianças”, observa.

1 – O que significa ser um artista independente em BH? Como sobreviver do seu ofício sem o apoio de leis de incentivo ou patrocínios? Quais são as opções disponíveis?
Meu olhar para o que significa ser uma artista independente em BH parte de dois recortes bastante específicos: o primeiro o que engloba uma geração que está entre os 30 e poucos e 40 e poucos anos e outro que parte do ser uma artista independente mulher (no meu caso cis). No primeiro caso, grande parte das pessoas enquanto estavam em seus processos de formação, percebiam que havia uma efervescência de apoios culturais e muitos acreditavam que quando se formassem isso se manteria e a construção de uma carreira seria mais fácil. O que ocorre é que cenários políticos mudam e em meados dos anos 2010 muitos espetáculos na capital só foram possível de serem realizados através de vaquinhas, financiamentos coletivos, e afins, práticas que hoje em dia não são mais tão comuns. Levantar uma peça sem lei de incentivo ou patrocínio, para essa geração, é quase impossível pois significar trabalhar de graça. E essa gana de levantar um espetáculo mesmo sem dinheiro é uma particularidade que alcança em maior número pessoas mais jovens. Eu já não posso me dispor a trabalhar oito horas por dia sem receber por isso e percebo entre meus pares que a falta ou limitações de recursos acaba gerando uma certa frustração também, pois há o desejo de se colocar trabalhos em pé. E em algumas leis parece que não se atentam ao fato de que se produzir uma obra artística é algo custoso, oferecer R$30 mil, R$50 mil significa pagar mal um coletivo que possui mais de 4 pessoas por exemplo. De toda forma, olhando o cenário nacional, é perceptível que as últimas gestões de cultura em Belo Horizonte tem se preocupado em ampliar e aumentar as verbas de editais, o contrário do que vem acontecendo em outras capitais do país. Então agradecemos, mas cientes de que ainda não é o suficiente.
Ser artista independente em BH, em suma, é trabalhar muito e receber pouco

2 – De que maneira o cenário artístico e cultural da cidade compete para dificultar ou favorecer que você sobreviva da sua arte? O que as experiências que você teve enquanto artista trouxeram de incentivo e desalentador?
Agora vamos para o segundo recorte que mencionei antes. Não se faz teatro sozinha, é preciso montar uma equipe, e pela minha experiência sei que se você não tiver uma pessoa com bons contatos na equipe ou cair nas graças e ser apadrinhada por alguma figura importante das artes é muito difícil (não impossível, veja bem) que seu trabalho tenha alguma notoriedade na cidade, independente da qualidade dele. Aliás a questão de ser um trabalho bom ou ruim, além de perpassar por uma perspectiva pessoal, não vem ao caso quando seu trabalho sai com destaque na mídia ou tem uma pessoa influente apoiando. E BH é uma cidade provinciana, há um meio de campo de se ter que conviver com algumas pessoas para ser visto e lembrado, enquanto mulher cis (mas sei que não é exclusivo para um gênero apenas) passei por várias situações de abuso para que meus trabalhos pudessem ter algum destaque e sei de colegas da minha faixa etária que passaram o mesmo. Quando há oportunidade de se estar em um grupo ou coletivo estabelecido na cidade, as pessoas agarram essas oportunidade pois há uma sensação de segurança, mas é raro porque é uma característica da cidade que os grupos sejam fechados neles mesmos. No meu caso em que meus trabalhos partem de pesquisas autorais, em BH não caibo em um grupo já existente e isso mais dificulta a minha vida artística do que facilita. De toda forma, no recorte da minha faixa etária, ou geração, são pouquíssimas as pessoas que sobrevivem apenas do seu grupo de teatro, mas aí voltamos para a questão das políticas culturais, não só da cidade, mas do país, em que houve uma época em que isso foi possível. Na nossa vez, demos azar.

3 – Por outro lado, quais as motivações para permanecer lutando por sua arte? O que te leva a não desistir e, por exemplo, procurar outra profissão como frequentemente acontece?
O desejo, a gana, é o que me motivam para continuar produzindo e fazendo teatro. Assuntos que me tocam e me dão tesão de construir um espetáculo, de me comunicar, de trocar com o público e com meus pares. E por estar há 21 anos nessa, não sei fazer outra coisa. É mais da metade da minha vida, se desistir, vou para onde? A opção que encontrei (e muitos colegas também) é não focar somente na criação teatral do seu grupo, mas trabalhar como professor de teatro, curador, crítico, pesquisador. Assim vamos tentando conciliar o trabalho artístico próprio com uma renda mais fixa que ainda está no escopo do trabalho teatral.

4 – Qual a sua primeira lembrança ligada à arte e o que te levou a escolher esse caminho?
Nasci em um meio privilegiado onde as artes plásticas, teatro, cinema foram apresentados a mim desde muito cedo, então a arte sempre foi presente na minha vida desde que me entendo por gente. Em uma das minhas últimas viagens, um amigo que fiz no local comentou que eu gostava de ir em museus, e de fato eu adoro. Tanto a escola, quanto a minha mãe, sempre me levaram. Aos fins de semana, minha mãe me dava o “Gurilândia” (um jornalzinho para crianças dos anos 90) e dizia para que eu escolhesse uma peça de teatro para irmos. Sei que isso não ocorre com todas as pessoas e que esse incentivo é uma exceção privilegiada. Lembro que na 1ª edição do FIT-BH em 1994, minha mãe me levou para assistir o grupo francês Générik Vapeur, com um espetáculo de rua chamado “Bivouac”, eu morri de medo porque nunca tinha visto algo daquele tipo antes. Eu tinha apenas 5 anos e é uma das lembranças mais interessantes que carrego sobre teatro pois foi minha primeira experiência de assistir algo que não era exatamente voltado para crianças e as sensações que aquilo me provocou (e que dizendo agora percebo que ainda provocam em um nível inconsciente). Desde os quatro anos dizia que queria ser atriz e isso nunca foi podado, ao contrário. Aos 13 anos entrei no meu primeiro curso de teatro e me encontrei, ali era o lugar onde eu era mais feliz. Até tentei fazer faculdade de outras coisas, mas não consegui ficar distante. Nasci para pensar e trabalhar teatro, de alguma forma, por mais que tentasse, não havia outra escolha para mim.

5 – Como estão os seus planos para 2024? Tem projetos na gaveta ou já prontos para serem lançados?
Iríamos estrear uma peça em abril desse ano, mas devido há vários problemas de produção tivemos que cancelá-la, o que me deixou arrasada. É um trabalho muito diferente dos meus anteriores, mais maduro, que possui como motor propulsor a vingança e a raiva. Sem moralismos de que são sentimentos ruins para mulheres trabalharem, pelo contrário, são provocadores. A ideia agora é nos reorganizarmos para que o projeto ganhe corpo da forma mais próxima do que queremos. Inclusive gostaria de pedir desculpas públicas, pois anunciei essa peça bastante no ano passado, fizemos uma pesquisa sensível com algumas mulheres cis e o trabalho acabou não saindo no tempo que nos era determinado. Muitas pessoas têm me cobrado e ainda não fiz uma retratação pública sobre o cancelamento, aproveito este espaço para isso. Em todo o caso, nada foi em vão, o trabalho está sendo maturado e se oxalá permitir terá sua estreia em breve.

Meus trabalhos demoram um pouco para serem realizados justamente pelo cuidado e respeito que procuro ter ao produzi-los. Bolo Republicano começou a ser pensado em 2018 e só estreou em 2022, a ideia do Rua das Camélias foi no primeiro semestre de 2015 e demoramos mais de um ano para estrear. Ambos os trabalhos foram muito bem aceitos pela crítica especializada, então confio que passaremos por este imprevisto. O que eu gostaria no momento mesmo é reapresentar Bolo Republicano neste ano, pois a peça fala de ditadura militar e em 2024 se completaram 60 anos do golpe. Mas tenho a sensação que alguns órgãos na cidade sentem certo receio de se falar sobre política de uma forma tão crua. É a sina que carrego enquanto artista independente e não famosa de optar pro trabalhar temas considerados tabus.

Foto: Flávio Tavares/O Tempo.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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