*por Raphael Vidigal
“Mas hoje tudo mudou! O homem, o torturado, ergue a cabeça e diz: eu posso viver. É tanto o ganho quando um só que seja levanta e diz NÃO!” Brecht
A foto é conhecida. Enquanto seus interlocutores escondem o rosto com as mãos, ela mantém os olhos fixos, com uma expressão altiva e desafiadora. Presa e torturadora pelo regime militar, Dilma Rousseff é a personagem dessa fotografia histórica, tirada em 1970. Quarenta anos depois, ela seria a primeira mulher eleita presidente do Brasil. Nesse espaço de tempo, situa-se a peça que Gabriela Luque construiu a partir de um processo de pesquisa de mestrado em Artes Cênicas na UnB (Universidade de Brasília), que retorna aos palcos no próximo dia 27 de janeiro, uma sexta-feira, como parte da Campanha de Popularização de Teatro e Dança de Belo Horizonte, agora em sua 48ª edição.
Em 2018, Gabriela visitou o prédio onde o Dops (Departamento de Ordem Política e Social) funcionava na capital mineira durante a ditadura militar. Transformado em Memorial dos Direitos Humanos, o espaço abrigou torturas físicas e psicológicas entre 1964 e 1985, quando o país se redemocratizou. Além da memória, o contexto político também pesou no impacto que a experiência causou sobre Gabriela no ano que a vereadora Marielle Franco, defensora das minorias, foi brutalmente assassinada (em crime ainda hoje não solucionado) e a prisão do presidente Lula permitiu a eleição de Jair Bolsonaro, um adorador da ditadura que exaltou o torturador de Dilma no momento em que ela era deposta. A história do país se conectou à história familiar da autora.
Batismo. “Pensava em contar um recorte da história da minha avó, por um ponto de vista bastante particular, e, ao procurar documentos, encontrei um caderno que tinha uma receita com esse nome. Ela, em si, é uma receita de um bolo comum, mas achei curioso o nome dado a ela, ainda mais que ela foi escrita há quase setenta anos”, explica Gabriela, ao abordar o batismo de “Bolo Republicano”. A narrativa encontra a personagem G refletindo sobre os impactos das chamadas “Jornadas de Junho de 2013”, quando uma multidão ensandecida e com pautas difusas tomou as ruas e os espaços de poder para reivindicar melhores condições de vida, protestando contra as classes políticas.
Ao mesmo tempo, a personagem Z lida com a agonia de ser mãe de um preso político nos anos de chumbo, entre 1966 e 1971, o período mais duro do regime. “As personagens principais não possuem nomes por um truque dramatúrgico-literário, para que possam causar identificação com o público”, afirma Gabriela. “O contexto social foi a maior inspiração para a escrita da dramaturgia. Se a visita ao Dops foi o gatilho para repensar a relação da minha família materna com a política, as eleições de 2018 me levaram a pensar em mim, e, consequentemente, no tipo de trabalho que faço, como agente político. O que eu herdei da memória e vivência da minha família no contexto da ditadura militar no Brasil que me impacta até os dias atuais?”, indaga a artista…
Tempo. Por abordar uma realidade latente, que nos revela que o presente segue invariavelmente preso ao passado, o que talvez nos impeça de dar um passo adiante, Gabriela Luque acredita que a peça retorna aos palcos “no momento ideal para que temas como memória, família, democracia e república possam ser debatidos com o público”. Novamente, ela tem a realidade a favor de seu discurso. No segundo domingo do ano, uma semana após a posse do presidente Lula, o país assistiu a uma nova tentativa de golpe de Estado, com a invasão e depredação da praça dos Três Poderes e a anuência de diversos agentes militares. Atualmente, cerca de 700 golpistas estão presos em Brasília.
“A peça traça um paralelo social e político entre duas épocas e duas gerações, em uma parte estamos vivendo a ditadura militar, as consequências diretas, sobretudo nas mães, que algumas famílias sofreram. Na outra parte, estamos nos dias atuais, refletindo sobre o atual cenário e como a escalada autoritária aconteceu a partir de 2013, culminando em outra tentativa de golpe como observamos no dia 8 de janeiro”, sustenta. “Como nós, enquanto sociedade, trabalhamos a nossa memória de país? Como nós, jovens adultos que participaram de perto de alguns eventos, deixamos as coisas chegarem a esse extremo? É uma peça para refletir sobre passado, presente e sobre qual futuro queremos pavimentar”, completa Gabriela, com interrogações de toda geração.
Experiência. Gabriela não é nenhuma veterana do teatro, mas também está longe de ser uma novata. Formada pela Universidade Federal de Minas Gerais, com uma passagem importante pelo Teatro da Vertigem, em São Paulo, no ano de 2015, ela estreou como diretora em 2016, à frente da aclamada montagem “Rua das Camélias”, com uma linguagem moderna que colocava em cheque a relação entre real e fictício, e destrinchava o estigma da prostituição na afamada rua Guaicurus, região central de BH. A diferença mais óbvia para Gabriela em relação aos outros trabalhos é que, desta vez, ela não só dirige como atua. “Também não me limitei a trabalhar apenas em espaços alternativos, assumi o palco italiano como uma possibilidade, coisa que, no passado, eu renegava”, diz, sem esquecer de características que permanecem.
“Se pensarmos no ‘Rua das Camélias’ é possível perceber que a autoficção já estava dando sinais de presença na dramaturgia, mesmo que, à época, nenhuma de nós pensasse muito nisso. ‘Bolo Republicano’ é uma autoficção, é uma versão dos fatos que pode ser completamente verdadeira ou não”, aponta. Com outros projetos na gaveta, a artista aproveita a ocasião para refletir sobre o cenário dramatúrgico-teatral de Belo Horizonte. “Até saírem os editais de emergência, passamos muito aperto financeiro durante a pandemia. No meu caso, fui contemplada com um edital da prefeitura para uma outra peça, que estreia em maio deste ano”, revela ela, já dando a dica para anotar na agenda.
Ofício. “Não posso falar em nome da classe artística porque ela é muito plural, mas vivi uma situação durante a pandemia, junto com vários outros atores, que foi bastante humilhante. Passamos praticamente um dia inteiro, das nove horas da manhã de sábado até às 3 da manhã de domingo apenas com um almoço, para ganharmos mil reais”. O desabafo encontra ressonância. Extinta durante o governo Bolsonaro, a Cultura recuperou sua pasta ministerial com a posse do presidente Lula, que nomeou a cantora Margareth Menezes como ministra. Apesar disso, a mediação das relações pelas várias mídias sociais e o declínio do jornalismo cultural seguem como impedimentos à plena realização do ofício.
“Eu venho de uma família de classe média que me acolheu quando fiquei sem dinheiro. Durante a pandemia, comecei um mestrado com bolsa da Capes (programa de pós-graduação vinculado ao Ministério da Educação), o que segurou um pouco a barra. A maior dificuldade que sinto no momento são os meios para divulgação dos nosso trabalhos. Precisamos ficar investindo em mídias sociais e isso cansa bastante, os grandes jornais estão mais interessados em dar visibilidade a grandes nomes, ou a nomes que já sejam conhecidos por uma parcela. Ser independente e ter a sua cara no jornal é uma tarefa árdua”, constata Gabriela. Pois o teatro segue na estrada. Atento e forte.
Serviço.
O quê. Peça “Bolo Republicano”, com Gabriela Luque
Quando. Sexta-feira, dia 27 de janeiro, às 20h
Onde. Grande Teatro Palácio das Artes (av. Afonso Pena, 1.537)
Quanto. R$20,00 pelos postos Sinparc ou através do site https://www.vaaoteatromg.com.br/detalhe-peca/belo-horizonte/bolo-republicano
Fotos: Felipe Temponi/Divulgação.