10 músicas de Sérgio Natureza para redescobrir o Brasil

*por Raphael Vidigal

“A poesia não é um perder-se na emoção mas um escapar da emoção; não é a expressão da personalidade mas uma fuga da personalidade. Porém, de fato, somente aqueles que têm personalidade e emoção sabem o que significa querer escapar dessas coisas.” T. S. Eliot

Ele gostava tanto de natureza que o pai resolveu chama-lo assim. O apelido pegou de vez quando Gilberto Gil notou o seu interesse por macrobiótica e vegetarianismo. A partir daí, o próprio Gil assumiu essas condições em sua vida. Sérgio Natureza pode até parecer um nome oculto, mas o fato é que suas canções estão na boca de muita gente. Ou melhor, as letras, já que Sérgio é poeta dos mais diletos, que mantém a sofisticação sem sacrificar o poder de comunicação das palavras e versos. Elis Regina, Paulinho da Viola e Luiz Melodia foram alguns dos que souberam interpretar as letras desse poeta do Brasil, que muito tem a dizer sobre nossa gente, e a reconstrução dessa nação.

“Bem Entendido” (balada, 1974) – Renato Piau e Sérgio Natureza
Em 1974, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Moraes Moreira, Jorge Mautner, Galvão, Roberto e Erasmo Carlos, e outros nomes do cenário nacional, criaram canções especialmente para homenagear e serem interpretadas por Edy Star. Dentre esses nomes, estavam Renato Piau e Sérgio Natureza, que criaram a balada “Bem Entendido”, à época uma gíria para designar os homossexuais. A letra não poderia ser mais explícita e libertadora, com versos como “o amor só faz sentido todo/ quando a gente gosta e sente um calafrio/ um frio fino na espinha/ e o coração cheio de sangue quente, bem quente”. É a pura liberdade.

“Vela no Breu” (samba, 1976) – Paulinho da Viola e Sérgio Natureza
Um sujeito exótico, vestido de simplicidade, ligado à essência. Assim é o personagem da música “Vela no Breu”, que Sérgio Natureza construiu com Paulinho da Viola, em 1976. Lançado no disco “Memórias: Cantando”, de Paulinho, esse samba é um dos mais sublimes da obra de Natureza, e obteve regravações de Luiz Melodia e Jards Macalé que também merecem destaque. Espécie de retrato social embebido em poesia, a canção alcança uma sintonia fina entre essas duas dimensões da vida, sem sacrificar uma em função da outra. Ao contrário, elas se ajustam perfeitamente à intenção dos compositores.

“Se Eu Disser” (bolero, 1978) – Tunai e Sérgio Natureza
Intérprete de personalidade, que sabe conjugar os tempos da entrega e da paixão, invariavelmente negando trégua às dores de amores, Fafá de Belém estava no auge da forma vocal quando recebeu de presente, de Tunai e Sérgio Natureza, a música “Se Eu Disser”, um bolero ajustado ao canto quente da paraense. A música foi lançada em 1978, no disco “Banho de Cheiro”, em que Fafá sensualizava na capa, deixando à mostra um generoso decote e olhar de desejo para o ouvinte. Fiada na tradição da música brasileira, a música reencena os encontros e desencontros de um casal apaixonado, cheio de fogo.

“As Aparências Enganam” (MPB, 1979) – Tunai e Sérgio Natureza
Elis Regina toma para si todas as nuances da música “As Aparências Enganam”, letra de Sérgio Natureza com melodia de Tunai, reforçando o epíteto que ela concedeu para si mesma, de “maior cantora do Brasil”. Lançada em 1979, no disco “Essa Mulher”, a canção exige da intérprete a atenção a uma emotividade concentrada, que não se deixa derramar nos versos cheios de passionalidade. Natureza constrói um paralelo entre as estações do ano para dividir os altos e baixos da relação amorosa, com rara sensibilidade. No CD “Um Pouco de Mim”, Natureza recita os versos com uma voz emocionada…

“Ensacado” (MPB, 1979) – Cátia de França e Sérgio Natureza
Em 1979, a paraibana Cátia de França estreou com disco que já trazia um de seus maiores sucessos. “Kukukaya: Jogo da Asa da Bruxa” seria regravada em grupo por Elomar, Vital Farias, Geraldo Azevedo e Xangai. De acordo com a compositora da canção, ela a recolheu de quadrinhas de domínio público, e o termo que a intitula faz referência ao “pai de todos os ciganos”, que ela descobriu em uma revista de esoterismo. No mesmo disco, ela estreou parceria com Sérgio Natureza, na dolorida e áspera “Ensacado”, que mistura poesia a sabedoria popular, com poética peculiar, ajustada ao canto de Cátia de França.

“Eternamente” (MPB, 1983) – Tunai, Liliane e Sérgio Natureza
A voz cristalina de Gal Costa dá tudo o que tem na interpretação de “Eternamente”, música de Tunai, Liliane e Sérgio Natureza, em um encontro onde melodia e letra extravasam a mais fina, doce e delicada poesia. Lançada em 1983, no LP “Baby Gal”, a música traça um paralelo entre as relações afetivas e a natureza das canções, com ternura e alguma dose de existencialismo. Posteriormente, a música recebeu as regravações de Vânia Bastos, Belchior, Fafá de Belém, Célia e Tânia Bicalho, mas a pioneira, de Gal, permaneceu no topo desse panteão, eternizando para sempre: o cristal da voz.

“Roda Morta” (balada, 1984) – Sérgio Sampaio e Sérgio Natureza
Sérgio Sampaio foi um desses compositores renegados pela indústria da música brasileira. Depois de estourar com “Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua”, ele caiu no ostracismo e foi etiquetado como “maldito”. O seu último LP em vida é de 1982. Após a morte de Sampaio, Zeca Baleiro resgatou pérolas no álbum “Cruel”, como “Roda Morta”, feita com Sérgio Natureza. “Gaviões bem sociáveis vomitando entre os cristais”, diz um verso. A ave ficou associada ao Corinthians por ser muito comum no campus da USP, onde os seus fundadores estudavam. A música tem o subtítulo “Reflexões de Um Executivo”.

“Gesto” (samba-bossa, 1996) – Rosa Passos e Sérgio Natureza
Baiana de Salvador, Rosa Passos foi imediatamente comparada a João Gilberto quando surgiu para a música brasileira com seu violão cheio de suingue e a voz delicada, doce, colocada com precisão sobre a melodia. Uma das mais requintadas instrumentistas e compositoras da música brasileira, ela logo traçou caminho próprio e cravou seu nome com destaque no cenário nacional. Em 1996, encontrou-se com Sérgio Natureza para compor o samba-bossa “Gesto”, que, com a habitual sofisticação, elabora comparações entre o gesto de dar à luz uma vida com o gesto de gestar uma canção. É poesia pura.

“Azulejo” (balada, 2003) – Fagner, Zeca Baleiro e Sérgio Natureza
Fagner e Zeca Baleiro unem suas vozes para cantar “Azulejo”, parceria com Sérgio Natureza. A música, lançada em 2003, presta reverência à poesia de Ferreira Gullar (1930-2016), no instante em que capta uma musa que passeia entre sobrados e lugarejos enfeitadas de azulejos. Com um proposital anacronismo, a letra verte seu olhar para o passado, a partir de imagens que resgatam banjos e alaúdes, sem esquecer a presença do bandolim. O cenário é o Maranhão, estado natal de Baleiro. Desse encontro triplo, emerge uma canção prenhe de significados, e uma balada feita para casais de enamorados.

“Sutilezas” (MPB, 2006) – Rosa Passos e Sérgio Natureza
Uma década após o primeiro encontro, Rosa Passos e Sérgio Natureza voltaram a trocar figurinhas na reflexiva “Sutilezas”. A música é uma lição de vida que, novamente, coloca o ato da criação no centro de seu discurso. A letra procura os caminhos da simplicidade, na busca do essencial, algo que Natureza já esboçava com rigor e capricho na belíssima “Vela no Breu”, parceria com Paulinho da Viola lançada em 1976, exatos trinta anos antes. Como comprova “Sutilezas”, Sérgio Natureza é um desses tesouros da música brasileira. Guima Moreno registrou uma versão imperdível para essa linda letra.

*Bônus
“Agora Tá” (samba, 1980) – Tunai e Sérgio Natureza

Ser gravado por Elis Regina não é pra qualquer um. Ser gravado duas vezes, menos ainda. A reincidência na vida de Tunai e Sérgio Natureza aconteceu com o samba “Agora Tá”, um ano após o lançamento do sucesso “As Aparências Enganam”. Em 1980, a canção entrou para o histórico e derradeiro espetáculo de Elis, “Saudade do Brasil”, que, como prenunciava o título, abordava a situação econômica, política e social do país, com um olhar cultural pra lá de esperto. Ágil e envolvente, o samba “Agora Tá” perfaz esse retrato com ironia e mordacidade, armas contra a nossa imutável desigualdade social.

Foto: Renato Hernandes/Triciclo Fotografia.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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