*por Raphael Vidigal
“Nunca fui senão uma coisa híbrida
metade céu, metade terra com a luz de Mira-Celi dentro dos olhos” Jorge de Lima
Flora foi ao YouTube para conferir. Ela precisava de vídeos, não com a voz cantando, mas falando, talvez dando entrevistas, como escutara há poucos segundos no telefone, ainda um tanto atordoada, para se assegurar de que Roberto Carlos tinha lhe telefonado. A dúvida vinha acompanhada de outras: “Quem sabe que eu gravei ‘Sua Estupidez’? Não é possível um trote desses”, elucubrava, num diálogo consigo própria. O início da conversa desapareceu de sua memória. Ela não entendia o que estava acontecendo. “Oi, Flora, tudo bem? É o Roberto”, apresentou-se o interlocutor do outro lado da linha. A cantora engatou um papo com Roberto, “voando” até compreender que aquele era o Rei.
“Sou uma artista desconhecida, surgindo agora, estou em casa e recebo uma ligação do Roberto Carlos?”, diz, justificando o espanto que não a abandonou completamente. A ficha caiu quando o compositor da histórica parceria com Erasmo Carlos, que rendeu hits juvenis e românticos do porte de “Sentado à Beira do Caminho”, “Detalhes”, “É Proibido Fumar”, mencionou “Sua Estupidez”, canção lançada em 1969 e eternizada por Gal Costa no revolucionário espetáculo “Fa-Tal: Gal a Todo Vapor”, dirigido por Wally Salomão, que bradava contra as atrocidades da ditadura militar e clamava por liberdade no ano de 1971. Flora decidiu gravar uma versão quando seu primeiro disco estava quase pronto.
Estreia. “A Emocionante Fraqueza dos Fortes” acaba de chegar à praça, com nove faixas autorais e apenas uma releitura, justamente a do clássico de Roberto e Erasmo. “Nunca tinha parado para prestar atenção, e a letra me bateu forte. Percebi que tinha tudo a ver com os assuntos do disco, arrematava, dava um laço. Eu acho ela escandalosa de linda! Pensei: ‘Que inveja, é uma música que eu queria ter escrito’”, conta. A ideia foi passada a Wado, produtor da empreitada, porém, a intenção inicial nem era incluí-la no álbum. Já se tratava de um outro projeto, tanto que Dinho Zampier foi convocado para arranjá-la. Finalizada, a versão encantou aos envolvidos. O desafio era convencer Roberto.
Conhecido pelo rigor com a própria obra, a fama de vetar regravações de suas músicas foi conseguida com méritos. Um dia, disseram a Flora que Roberto Carlos queria falar com ela. A cantora ficou preocupada, intuiu que a modernidade injetada no clássico desagradaria a um dos pais da cria. E regravou uma versão mais próxima da original, mas nem precisou dela. Ela tinha desistido de receber um retorno quando os trinidos no celular avisaram que havia uma chamada à espera. Com palpites pontuais sobre a gravação, Roberto elogiou o arranjo da revigorada “Sua Estupidez” e desejou a Flora sucesso na carreira. “Ele foi muito gentil e generoso”, exalta ela, cujo “amor é bem maior que tudo”.
Afeto. As relações afetivas guiam as composições que Flora revela ao mundo em seu primeiro ato musical. Atriz, idealizadora do Coletivo Loba, nascida no Rio e criada em Maceió, ela conserva o sotaque alagoano tal como carrega por todo o corpo as influências da mãe e do pai, ambos artistas plásticos, e, atualmente, cursa História da Arte para seguir o fluxo cultural que iniciou com o teatro. “Poderia recitar ou escrever um livro. Escolhi fazer um disco. Me considero muito mais artista do que cantora. De fato, a música é um canal de mídia que coube em mim e que uso para compor e transformar minhas dores, amores e experiências em canções”, explica. “Tento ser o mais sincera possível ao criar”.
Nesse sentido, “A Emocionante Fraqueza dos Fortes” se apresentou a Flora como “o único título possível para um disco tão visceral e autobiográfico”. O verso é repetido na música como um mantra. “Tem esse paradoxo do que é força e do que é fraqueza. A que ponto a gente é levado a pensar que está sendo forte, porque vive num mundo cada vez mais individualista, egoísta, em que o amor ‘Exagerado’ que o Cazuza cantava e que o próprio Roberto coloca em ‘Sua Estupidez’ é visto como démodé, as pessoas têm vergonha de assumir que estão sofrendo, que sentem falta. Criamos essa ideia de seres humanos fortalecidos, analisados, autossuficientes, quando, na verdade, isso talvez seja uma enorme fraqueza, não conseguir estar disponível e se mostrar vulnerável”, reflete Flora.
Antropofagia. Ela observa que, dada a etimologia da palavra, “paixão” significa “martírio, sofrimento, se doer pelo outro”. “Esse álbum é sobre tudo que enfraquece a gente e, ao mesmo tempo, nos dá forças. Vem como um entendimento das relações que vivi”. O tema também dá as cartas em “O Banquete”, de maneira descontraída, ao aproximar a filosofia de Platão e Zygmunt Bauman da tradicionalíssima e arretada música brega nordestina. “E se eu nunca desse/ Se tu nunca comesse/ O que seria do amor/ Se não Platão e o banquete/ (…) Porque se o amor é líquido/ Eu taria liquidada/ Se eu for a última romântica/ Querendo ser a sua namorada/ Pedindo a canção mais brega”, canta Flora, com ênfase na última palavra, antes dum solo de sax tomar a cena.
“É uma música descarada, e aí uso Platão porque ele tem uma obra chamada ‘O Banquete’, em que ele separa o amor carnal do celeste. Tem a coisa sexual, que é Eros, do comer, se alimentar dos outros, e o amor mais fraterno”, destaca ela, que emenda a construção poética por meio do mito de Andrógino, quando os humanos, que possuíam quatro braços, quatro pernas, duas cabeças, dois órgãos genitais, foram divididos em duas metades, almas gêmeas destinadas a se buscarem pelo resto da vida terrena. “Nesse momento, eles são fragilizados e se descobrem mortais porque procuram um par, hetero ou homoafetivo. Os deuses do Olimpo não se apaixonam. Mas como uma pessoa que se entrega lida com as relações descartáveis e líquidas da pós-modernidade de Bauman?”.
Mistura. Esse caldo teórico se adensa com o tempero que Flora resgatou de memórias remotas. “Só fiz nascer no Rio, sou criada no Nordeste. E, ali, brega é um negócio que você nasce escutando, principalmente em Maceió, Recife, até o Norte. É um ritmo que não fala de outra coisa senão o amor, ele cultua a ‘sofrência’, é dramático, extremamente latino, a cara do Brasil”, saúda. “A cultura brega surge das regiões mais precárias e chega a ser ingênua. Virou um clichê, quando se está apaixonado, dizer ‘tô ficando brega, cafona’. É muito sincero porque a pessoa apaixonada escorrega o tempo todo e a gente ficar brega é bonito”, completa. Numa toada diversa, ela exalta o ser feminino em “Triângulos”.
A música deu vazão a um videoclipe conceitual, em consonância com a letra, onde a artista explora performances com espelhos, uma escada e jogos de luz. A primeira faculdade que ela cursou, sem concluir, foi a de cinema. “Escrevo muito e sempre tive, desde a escola, essa vontade de contar histórias. As pessoas escutam minhas músicas e dizem que é tudo muito visual, imaginam cenas”, diz ela, que, ao compor, costuma partir da palavra. “Meus triângulos são todos invertidos/ As pirâmides são todas em pé/ (…) Meus amores me botam de castigo/ Os triângulos ainda estão de pé”, invoca a abertura da faixa, ao que o refrão determina: “O coração a gente vê depois/ Se você tiver vontade eu quero”.
Feminista. “Ser mulher já é uma atitude política nessa luta constante por espaços. Falam das cantoras do Brasil, sou compositora também. É fundamental abrir espaços para a mulher que escreve, fala, é uma liderança política, carrega a chave do intelecto. Tudo isso foi muito negado. A mulher não podia estudar, escrever. Se espera no palco que ela cante, seja uma diva, a musa, mas, não necessariamente, escreva o que está cantando, diga o que sente. A mulher com um papel e a caneta na mão é muito poderosa”, garante Flora, para quem “o feminismo vem antes de tudo na vida da mulher”. “O que seria do Brasil e do mundo sem a população de mulheres votando? As pessoas esquecem, principalmente as ignorantes. Feminismo pra usar calça jeans, montar cavalo, subir no palco, viajar sem a autorização de um homem, votar”, enumera a artista.
“Acho o Chico (Buarque) um compositor excepcional. Ninguém chega para julgar a voz dele, conferir se atingiu tal nota. A mulher é muito julgada nesse lugar, não pode desafinar, errar, tem que ser a musa, seduzir. A ela é conferido esse lugar da beleza e, ao homem, o do intelecto. Mas a gente também compõe, escreve, toca bateria, baixo, e esse mercado segue dominado pelos homens. O meu trabalho tem também o papel de ocupar esses espaços e ser explícito nesse sentido. Não existe mundo sem feminismo para mim”, afiança. O atual cenário político do Brasil não desabona menos o presente do seu ponto de vista, ao contrário. “América”, que abre os trabalhos, aborda a questão. “Ele não conhece o Brasil/ Que sangra no ano 2000”, infere a letra em meio a batidas eletrônicas.
Pátria. “Tentei ser bastante educada nessa música, o mais educada possível. Não ignoro que vivemos um desgoverno total. A gente, enquanto nação, errou muito e ‘América’ é um pouco esse hino”, declara Flora. Elis Regina já exibia para quem quisesse ver e ouvir, em 1978, que “o Brazil não conhece o Brasil”, ao entoar o samba “Querelas do Brasil”, da dupla Aldir Blanc e Maurício Tapajós. Dois anos depois, em 1980, ela subiu ao palco com o espetáculo “Saudade do Brasil”, o último de sua carreira. “A nossa maior crise é que o principal chefe de Estado não conhece o país. Os brasileiros não conhecem o Brasil. Vejo um cidadão brasileiro levantar a bandeira norte-americana e o principal problema não é este, mas não se reconhecer na sua própria bandeira”, analisa a intérprete.
“A gente que é do Nordeste precisa viajar, ir para esse eixo industrial no Sudeste, e me parece que quem está na margem acaba ficando mais consciente do que quem está no centro e não olha para as margens. Se você não sabe qual a demanda do povo, não conhece nossos povos nativos, isso tudo vira uma Torre de Babel. A história do Brasil, desde o descobrimento, é pautada por uma política genocida, um apagamento cultural que é recorrente. A América Latina parece fadada a repetir os mesmos erros. Espero que entremos em algum progresso com esse sofrimento das pessoas, porque o que está acontecendo é uma catástrofe, o desastre de um governo despreparadíssimo”, lamenta. “Não entendo como se elege no Brasil pessoas que não têm projeto. Aqui se vota na propaganda, em quem é famoso no Twitter. É tudo muito revoltante, irresponsável, infantil. Falta amadurecimento político enquanto nação”, sublinha.
Infância. O Brasil que ainda não conhece o Brasil precisa descobrir Flora. E talvez esteja prestes a isso. Ao menos na música, o Rei do país deu uma dica pra lá de preciosa. A primeira lembrança musical da entrevistada, ainda criança, remete a uma composição do mineiro, de Viçosa, Hervé Cordovil, um estouro da Jovem Guarda. “Rua Augusta” foi lançada por Ronnie Cord antes de ser agraciada com a interpretação de Rita Lee no grupo Os Mutantes e chegar aos ouvidos de Flora. “Subi a Rua Augusta a 120 por hora…”, cantarola ela. A cantora mirim também se esbaldava ao mimetizar o canto lânguido de Ney Matogrosso em “O Vira”, da trupe Secos e Molhados, com marcada inspiração lusitana. Essa pequena agitada foi aliando ao gosto musical Raul Seixas, Chico Buarque, Milton Nascimento, Gal Costa, Maria Bethânia, e, especialmente, Caetano Veloso.
“Caetano influenciou muito a minha forma de compor. Chico Buarque nos ensina a escrever, a falar de amor. Minha pesquisa sonora é abrangente. Tanto de músicas brasileiras quanto do mundo todo. Os ritmos nordestinos são uma fonte inesgotável: forró, brega, reggae, coco de corda, os folguedos populares, indo para o Sudeste temos bossa, samba, rock, é uma riqueza incrível”. Não por acaso, ela coloca o Brasil como “um dos países mais influentes do mundo musicalmente”. Esse país ocioso em se redescobrir e reconhecer tem dentro de nossas plagas artistas como Djavan, para quem Flora abriu um show em sua Maceió. “Foi desses momentos mágicos que a gente sequer acredita que é real”.
Foto: Lúcio Luna/Divulgação.