Aos 80 anos, Teca Calazans diz: ‘Nunca vi uma imagem tão ruim do Brasil’

*por Raphael Vidigal

“Árvore, s.f.
Gente que despetala
Possessão de insetos
Aquilo que ensina de chão
Diz-se de alguém com resina e falenas
Algumas pessoas em quem o desejo
é capaz de irromper sobre o lábio
como se fosse a raiz de seu canto” Manoel de Barros

Os vizinhos não compreendem como ela vive “sem correr como eles correm de manhã”. “Acontece que eu preciso de repouso matinal/ Pois não desligo antes das cinco da manhã”, prossegue Teca Calazans, ao dar vida à personagem de “Estrela da Canção”, música de Ricardo Vilas lançada quase simultaneamente por ela, Angela Maria e Simone na década de 1980. A faixa que integrou o LP “Povo Daqui”, de Teca e Ricardo, talvez ajude a compreender a personalidade da cantora que completa 80 anos, e que jamais colocou os holofotes da mídia à frente da real natureza de seu ofício: “Sempre fui coerente com meu trabalho e nunca aceitei os desejos das grandes gravadoras e do showbiz. Sempre cantei o que quis cantar, sem pensar se aquilo faria sucesso ou não”, assinala Teca.

Artista intransigente, cult, ao largo de modismos, autêntica e dona de uma limpidez de som no meio da cacofonia infernal do chamado mercado fonográfico são expressões que surgem em artigos de jornal que buscam qualificar a obra da compositora, de quem Milton Nascimento, Gal Costa e Nara Leão gravaram, respectivamente, “Caicó”, “Atrás da Luminosidade” e “Firoliu”. “A inspiração chega e eu trabalho em cima dela, tentando criar um clima que bebe na música do folclore nordestino”, explica. Nascida em Vitória, no Espírito Santo, e batizada Terezinha João Calazans, ela foi criada no Recife, em Pernambuco, onde teve os primeiros contatos com o violão que ganhou dos pais e aprendeu a tocar aos onze anos de idade. A mãe, que tocava bandolim, ensinou os primeiros acordes.

Essência. A professora disse: “Você tem uma voz bonitinha, mas essa música não é para festejar o Dia das Mães”. Teca estava na escola primária e, quando a classe ouviu a pergunta sobre se alguém podia cantar uma canção para comemorar a data, ela logo se prontificou. De pé, cantou “Marina”, clássico de Dorival Caymmi. Na vitrola de casa, Dorival, Noel Rosa, Aracy de Almeida e Marília Batista ecoavam o dia inteiro. Habituada a cantar no lar, a garota intensificou o hábito no momento em que passou a carregar seu violão a tiracolo. O incentivo não poderia ser maior: as irmãs se revezavam ao piano e o avô era professor de música. A farra sonora era constante. No meio desse caldeirão, Teca descobriu as cirandas, os cocos, xangôs e a Banda de Pífaros de Caruaru.

Imbuída de toda essa cultura, ela fundou o Grupo Construção, que unia música e teatro, ao lado de Geraldo Azevedo, Naná Vasconcelos, José Fernandes de Lira, Zélia Monteiro, Marcelo Melo, Paulo Guimarães e Márcia. A iniciativa se mirava nos exemplos de Rio e São Paulo, encabeçadas por encenadores como Augusto Boal, Zé Celso Martinez Corrêa, Antônio Abujamra e Antunes Filho. A estreia foi com “Cantochão, Um Espetáculo de Bossa Nova”. No mesmo ano, o golpe militar instituía a ditadura que perduraria vinte anos. “A nossa preocupação maior era fazer com que o nosso teatro, além de divertir, despertasse nas pessoas a consciência do seu dia a dia comum, bem como fazê-las compreender suas possibilidades de mudança nos instantes mais simples da vida”, diz Teca.

Opinião. Era a sequência de um pulsar artístico que começara com o Movimento de Cultura Popular. “A visão artística que tive antes de 1967, fazendo parte do MCP (Movimento de Cultura Popular), atuando no teatro e trabalhando com os folguedos populares de Pernambuco, abriu uma porta importante na minha vida. A base de todo o meu trabalho artístico vem desse conhecimento da cultura popular”, destaca ela. Faltava pouco para Teca inaugurar sua carreira em disco. Luiz Mendonça, diretor do grupo de teatro do MCP, a convenceu a estudar Arte Dramática na Escola de Belas Artes de Recife. A experiência serviu para que, uma vez no Rio de Janeiro, em 1968, ela encarnasse Totoca em “Jornada de um Imbecil até o Entendimento”, de Plínio Marcos, peça dirigida por João das Neves.

“Fui para o Rio de Janeiro por conta de uma peça de teatro que foi selecionada para o Festival Universitário. No dia da nossa estreia, os diretores do Teatro Opinião estavam presentes e me convidaram para trabalhar na peça do Plínio”, conta. Posteriormente, ela atuaria em programas da TV Globo, até assumir, em 1983, o comando do semanário “Forró”, na Televisão Educativa, a convite do compositor Fernando Lobo, em substituição a Carmélia Alves. A tônica era o imenso e diversificado caldo rítmico do Nordeste. Teca não poderia estar mais em casa e à vontade. Na capital carioca, a estadia foi rápida. Ela tinha na praça um compacto simples com uma adaptação dela própria e uma marchinha de Geraldo Azevedo e Carlos Fernando, “Aquela Rosa”. O futuro estava na França.

Dupla. Os jornais pareciam incrédulos ao anunciar o sequestro do Embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Elbrick, em 1969, enquanto os porões da ditadura militar estavam infestados de torturadores. Encarcerado pelo regime, o músico Ricardo Vilas foi um dos presos políticos trocados pelo Embaixador, que era mantido refém por integrantes da Dissidência Comunista da Guanabara e da Aliança Libertadora Nacional, movimentos de resistência à ditadura que partiram para a luta armada. Livre, Ricardo se exiliou imediatamente em Paris, onde deu início à dupla com Teca que renderia sete álbuns, cinco deles editados no país europeu. “Musiques et Chants du Brésil” deu o pontapé inicial, seguido por “Caminho das Águas”, “Cadê o Povo?”, “Desafio de Viola” e “Jardin Exotique”.

“Na França, trabalhávamos com uma total liberdade de criação e os cinco discos que fizemos são obras pessoais e criativas. É um trabalho que adoro. Já os dois realizados no Brasil, depois que voltamos, têm a influência dos produtores, um som do mercado da época e o clima que já anunciava a ruptura da dupla”, analisa Teca. Com a anistia, em 1979, ela e Ricardo regressaram ao Brasil. “Povo Daqui” e “Eu Não Sou Dois”, este último de 1981, encerraram a parceria. Apesar dos poréns, as faixas “Gabriel”, “Aguaceiro” e “Velha Amizade” caíram nas graças do público. Solo, ela lançou “Teca Calazans”. Hermínio Bello de Carvalho a recolocou no prumo com “Mário Trezentos, 350”, montado pela Funarte (Fundação Nacional de Artes) para comemorar os 90 anos de Mário de Andrade.

Origens. O espetáculo se valia de poemas cantados e recitados, com melodias de Dona Ivone Lara e Martinho da Vila que se entremeavam a danças populares, caso das cheganças, o bumba-meu-boi, maracatus e pastoris. O projeto deu vazão a um CD. Intuitivamente, Teca se reencontrava com o que mantinha guardado no peito. “Mina do Mar”, de 1984, selou a despedida definitiva. Ali, ela cantava “Pedras de Sal”, com Alceu Valença, “Cavalos do Cão”, com Antônio Nóbrega, e “Mulher Nova, Bonita e Carinhosa Faz o Homem Gemer Sem Sentir Dor”, de Zé Ramalho, conservando o sotaque, a extensão e a limpidez do canto. No final da década de 1980, resolveu morar na França, levando o Brasil consigo. Lá, homenageou Villa-Lobos, Pixinguinha e lotou o Olympia com Baden Powell.

Tal encantamento resultou em “Musique du Nordeste”, com acervo sonoro de 1916 a 1945; três volumes de “Cantadores Repentistas”, com os poetas Oliveira de Panelas e Daudeth Bandeira, e, ainda, os aclamados “Cavalo Marinho”, “Fête de Rue du Nordeste” e “Aboio & Embolada do Nordeste”. No LP “Jardin Botanique”, reinterpretou “Tive Sim”, de Cartola, com direito a participação especial do saxofonista franco-americano Barney Wilen. Paralelamente, outros trabalhos aportaram no Brasil: “O Samba dos Bambas”, “Firoliu”, “Intuição”, “De Cara Nova” e “Alma de Tupi”, contabilizando 27 discos. O mais recente foi “Suíte Popular”, com a Camerata Brasilis, em 2015. “Comecei a curtir as maravilhas da música chamada semierudita: modinhas, choros e sambas camerísticos”, elogia.

Presente. “É impensável para mim não cantar e não conhecer a música dos grandes compositores do Brasil”, afirma Teca. Ao longo da carreira, ela se apresentou com Cátia de França, a quem considera “uma grande amiga, com quem tive o prazer de trabalhar” no histórico projeto Seis e Meia, em 1982. Juntas, elas interpretaram “Viver”, “Pois É, Falou”, “Estes Discos Voadores Me Preocupam Demais”, “Acorda Povo”, “Coito das Araras”, “Ponta do Seixas”, “Estilhaços”, dentre outras, num repertório que agregava Gonzaguinha, João Cabral de Melo Neto e Luiz Carlos Sá, afora as autorais das compositoras. Com Elomar, Pena Branca & Xavantinho e Vitor Ramil, gravou “Cantorias e Cantadores”, também fundamentado na música tradicional do Brasil profundo.

Atualmente, ela se orgulha de, depois de dez anos, ter se tornado diretora de um coral em Paris, “só cantando música brasileira”. “Nada mudou, eu sou a mesma de sempre. Adoro cantar, tocar violão todas as tardes e trabalhar as músicas que gosto de cantar”, declara. Agora octogenária, Teca garante que a “a idade não é o meu assunto de cada dia”. A direção do coral a ocupa tanto quanto a natação, que ela pratica quatro vezes por semana. “Nado 1 quilômetro na piscina”, informa. Com o marido, realiza antologias musicais. Só o que a desanima é o Brasil, mesmo visto à distância. “Sobre o governo Bolsonaro, posso dizer que, no tempo que moro aqui, nunca vi uma imagem tão ruim do Brasil. É uma pena”, lamenta Teca, nossa estrela da canção popular que foi brilhar em vastas plagas.

Foto: Pedro Guimarães/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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