Fábula

“De um exílio passado entre a montanha e a ilha
Vendo o não ser da rocha e a extensão da praia.
De um esperar contínuo de navios e quilhas
Revendo a morte e o nascimento de umas vagas.
De assim tocar as coisas minuciosa e lenta
E nem mesmo na dor chegar a compreendê-las.
De saber o cavalo na montanha. E reclusa
Traduzir a dimensão aérea do seu flanco.
De amar como quem morre o que se fez poeta
E entender tão pouco seu corpo sob a pedra.
E de ter visto um dia uma criança velha
Cantando uma canção, desesperando,
É que não sei de mim. Corpo de terra.” Hilda Hilst

Pieta el greco

Conta um anjo que subiu ao céu e viu que Deus não existia. Deus não existia mesmo. Seu nome era Valquíria, e, como todos sabem, anjos não têm sexo. Valquíria experimentava um prazer inenarrável quando comia uma barra de chocolate. Era um dos momentos de maior felicidade da sua existência, quando mordia, indolente, aquele pedaço da barra de chocolate. Outra característica sua é que desejava “Felicidades Sempre”, mesmo sabendo que essa sentença era impossível, que se tratava de fábula. Valquíria iniciou sua vida indômita, até que se apaixonou por uma orquídea, e, a partir deste momento, estava presa ao universo das flores.

Apesar de ter descoberto, quando de sua ida ao céu, que Deus não existia, mantinha uma gratidão com essa imagem, essa impossibilidade do criador, uma espécie de gratidão obsoleta, obtusa, obstinada como são as esperanças, frutos do desamparo, da necessidade de acreditar em algo e do completo abandono, só acolhido no mundo das orquídeas, no universo das flores. De maneira oblíqua, Valquíria encarava esse Deus infundado. Um dia, quando se viu transformada em cavalo, quis relinchar, mas não havia som no universo das flores, e ela pisava enormes mananciais, donde escorriam dentes exangues.

Na timidez desconfiada que caracteriza anjos e cavalos implorou por um clarão de amor, que veio como um farelo festejar o gozo. Naquele farelo cabiam suas aflições, os êxtases de cavalo, e a sublimação sensata dos anjos. O cavalo nunca subira ao céu, e, nem por isso, elucubrara sobre a existência de um criador, isto não o importunava. O anjo, embora tremesse das asas, agora se via mais calmo, deitado no chão, em meio às entranhas, com uns farelos que lhe sujavam as ancas, as babas e outras deformações. Desta fábula extraiu-se um dente, de cavalo; uma agonia, de anjo; e um lance, de dardos.

Na mistura, surge uma formidável trégua, com pés de pato, de plástico; e pés de galinha, de pele. Esta trégua mantinha uma maçã verde dentro do peito, e se perguntava: “Mas o que fazer com essa maçã dentro do peito?”. Não era trégua nada, apenas a aparência levava a essa circunstância. A trégua pegava chuva a pé; pegava o defeito de volta; e ninguém suspeitava que tinha gozado quando saía do banho (isto num espírito allenginsbergiano). Sem fim nem começo, trégua abriu a boca: “Alijado da tua vida, em prospecções, trincheiras e pavilhões, alijado, dei a minha algibeira como qualidade, alijado, dei a minha qualidade, a minha cautela e minha costela de cacau, são traumas e lances demais, eu adoro a destruição e, como uma avalanche, como um feixe de luz, um ultraje, peneiro a poeira do tempo, a própria paixão é destruidora, a própria paixão exaure”.

Quando caiu na curatela do tempo e viu que Deus não existia. Subiu ao céu e desceu ao inferno, onde Valquíria lhe esperava feito um cavalo.

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Raphael Vidigal

Pinturas: “Pietà”; e “Vista de Todelo”, de El Greco, respectivamente.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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