Entrevistas: Diretoras, atrizes, produtoras e pesquisadoras debatem sobre assédio

*por Raphael Vidigal

“arte não é pureza, é purificação, arte não é liberdade, é libertação.” Clarice Lispector

Uma menina de 13 anos havia sido abusada sexualmente e contou a história para Tarana Burke. Na hora, a ativista afro-americana nascida no Bronx, nos Estados Unidos, não soube o que dizer. Mais tarde, ela entendeu que queria ter dito apenas “eu também”. Esse foi o gatilho para que Tarana criasse, em 2006, o movimento Me Too (tradução literal de “eu também”, em inglês), a fim de promover a empatia entre mulheres negras que foram vítimas de abuso sexual. A primeira plataforma digital a disseminar a campanha foi o Myspace, naquela época uma das mais populares redes sociais.

Passados 11 anos, o movimento voltou à tona, em 2017, com a força de uma ressaca marítima. Publicada no “The New York Times” no dia 5 de outubro daquele ano, a reportagem intitulada “Harvey Weinstein pagou os acusadores de assédio sexual por décadas” começou a minar um cruel império de silêncio, ao revelar o que parcela considerável da indústria cinematográfica norte-americana já sabia: o poderoso produtor de filmes de Hollywood era um contumaz abusador sexual.

A enxurrada de denúncias culminou no relançamento de palavras de ordem, quando a atriz Alyssa Milano passou a usar a hashtag #MeToo no Twitter e incentivou outras mulheres a fazerem o mesmo, incluindo colegas de profissão como Angelina Jolie, Gwyneth Paltrow e Asia Argento, todas, por sinal, vítimas de Weinstein. A onda, que teve início no dia 15 de outubro, logo migrou para o Facebook e se estendeu para diversas partes do mundo, com a abrangência da realidade virtual.

Gabriela Luque (Diretora da peça “Rua das Camélias”)

1 – Desde que o movimento foi lançado, o que mudou, de fato, na indústria cinematográfica e qual foi a principal contribuição do movimento, na sua opinião?
No ano passado surgiram denúncias de assédio sofridos por mulheres na área teatral, tanto aqui quanto em São Paulo foram denúncias muito sérias e fortes, e na época pude sentir uma união entre nós mulheres, um apoio entre nós, grupos de Facebook foram feitos e debates e ações foram sugeridos. Hoje em dia eu sinto que ficamos em alguma medida mais fortes, muitas mulheres não se calam mais. O mais impactante para mim foi perceber que a força do mundo virtual, através dos grupos de Facebook, ganhou uma potência verdadeira no dia-a-dia, nas trocas da vida real.

2 – Você percebe uma melhora na representatividade feminina, com a presença das mulheres ocupando espaços como de produção, direção, roteiro, e etc.? E o que essa presença feminina nessas outras áreas que não a de interpretação agrega?
Sim, a minha geração tem muita sorte de ter como exemplo mulheres como a Cida Falabella, Yara de Novaes, Grace Passô e Sara Rojo que ocupam brilhantemente espaços para além da atuação. É muito importante que as mulheres se enxerguem em diferentes funções para que cada vez mais percebamos que somos capazes de produzir a nossa própria narrativa, embora ainda seja exigido de nós uma eficiência muito maior do que a de um homem médio. Os olhares avaliativos estão prontos para nos subjugar de uma forma muito mais cruel, por isso é importante que a gente exista, produza e tenha condições de produzir. Recentemente participei de uma rodada de negócios da área teatral e foi complicado perceber que a maioria dos festivais de teatro do Brasil tem como representantes homens cis com mais de 45 anos. Falta muita representatividade ainda, faltam mulheres, falta a comunidade trans.

3 – Quais são os principais e mais urgentes desafios que precisam ser enfrentados na questão do assédio contra as mulheres nesse cenário atual?
O que tenho percebido é que o assédio moral ainda é muito grande. É urgente aumentar as possibilidades de trabalho, assim como não duvidar da capacidade e competência da mulheres. Belo Horizonte ainda é uma cidade conservadora em muitos aspectos e em muitos casos se você não é legitimada por um “homem considerado importante ou influente” seu trabalho não tem valor. Isso precisa ser mudado. As mulheres precisam ser lidas, assistidas pela qualidade do seu trabalho.

4 – Você já presenciou, foi vítima ou ouviu relatos de assédio contra mulheres antes ou depois desse movimento?
Já fui vítima de assédio sexual e moral, já presenciei e já ouvi relatos antes e depois do movimento. Já sofri assédio moral dentro da academia e fui taxada de louca, assim como no trabalho, quando fui taxada de “imatura e não-profissional”. Eu tenho 29 anos e todos os assédios que sofri vieram de homens com pelo menos dez anos a mais do que eu, percebe-se aí uma coisa geracional. Certos comportamentos masculinos que antigamente eram normatizados hoje não são aceitos mais e por reclamar e exigir respeito te chamam de “difícil”. Acho que a cena está assim: mulheres se juntando e trabalhando juntas.

5 – Embora se estenda para outras áreas, o início do movimento teve como foco o cinema. Na sua opinião, por que isso acontece especificamente com essa área?
Bom, posso especular a partir de coisas que minha amigas do cinema já contaram. O que me disseram é que é uma área majoritariamente masculina onde a mulheres acabavam sendo pressionadas a trabalhar mais com produção, a força criativa das mulheres era sempre questionada. Mas isso é especulação porque não sou da área.

Marina de Morais (diretora do documentário “Assédio Não É Elogio”)

1 – Desde que o movimento foi lançado, o que mudou, de fato, na indústria cinematográfica e qual foi a principal contribuição do movimento, na sua opinião?
Acredito que há algumas mudanças importantes. A primeira é que as situações de assédio e outras formas de violência sofridas por mulheres no meio cinematográfico não estão mais sendo varridas para baixo do tapete. As mulheres não têm se calado mais, as denúncias estão sendo feitas e expostas. Acredito que isso tem um impacto direto não apenas na indústria, mas também no público, que acaba às vezes também se organizando contra os agressores, seja em forma de manifestos ou boicote de filmes, por exemplo. Além disso há a mudança que eu acredito ser a mais significante: o fortalecimento de mulheres na área. Acho que foi a partir principalmente do movimento que nós, mulheres no cinema, de diversos países, começamos uma rede de fortalecimento entre nós. Não apenas para apoiarmos as denúncias das companheiras, como também para incentivarmos mais umas às outras em oportunidades, formação de equipes de trabalho que priorizem mulheres, entre outras.

2 – Você percebe uma melhora na representatividade feminina, com a presença das mulheres ocupando espaços como de produção, direção, roteiro, e etc.? E o que essa presença feminina nessas outras áreas que não a de interpretação agrega?
Eu vejo, sim, um aumento no número de mulheres em espaços que concernem a produção cinematográfica. E não apenas um aumento, como uma maior visibilidade dos filmes que têm mulheres como diretoras, roteiristas, etc. Há até mesmo festivais focados nisso. Mas ainda considero esse número bastante pequeno, sobretudo levando em consideração a interseccionalidade. Mulheres negras e trans estão em número ainda menor nesta estatística. No Brasil mesmo, por exemplo. Acho que precisamos de mais espaço e de políticas públicas que nos favoreçam nestes ambientes. A presença feminina em funções como direção e roteiro, por exemplo, tem relação direta com a forma como as mulheres são representadas nas telas. Quando, por exemplo, temos uma roteirista escrevendo sobre uma personagem mulher isso afetará diretamente como se dará a construção dela, ou seja, qual é sua história de vida, como se apresenta, como se posiciona perante o mundo, quais seus conflitos. Quando uma mulher escreve sobre outra ela evoca seu imaginário e experiências pessoais e femininas na construção. Isso auxilia, por exemplo, na negação de estereótipos, na criação de personagens melhor estruturadas, na chamada de atenção para assuntos próprios do universo feminino, entre outras tantas possíveis questões.

3 – Quais são os principais e mais urgentes desafios que precisam ser enfrentados na questão do assédio contra as mulheres nesse cenário atual?
Acredito que há dois principais desafios. O primeiro é ter políticas que nos auxiliem verdadeiramente. As denúncias são importantes, mas é preciso que elas sejam um meio e não um fim. É preciso que a denúncia seja um caminho para que se evitem novos casos de assédio. Não podemos compactuar com a impunidade. O segundo seria fazer com que mulheres preencham mais espaço na área. Não apenas no mercado, mas também na educação. Para que se tenha mais mulheres trabalhando no cinema e no audiovisual é interessante que tenhamos também mais mulheres sendo capacitadas e formadas nas áreas.

4 – Você já presenciou, foi vítima ou ouviu relatos de assédio contra mulheres no cinema antes ou depois desse movimento?
Já presenciei e tenho também amigas que sofreram situações de assédio e outras formas de violência em sets de filmagem, tanto antes quanto depois do movimento. Acredito que o principal impacto é que, a partir do movimento, nós mulheres temos saído em defesa umas das outras quando os relatos vem à tona e essa união nos fortalece não apenas para engrossar o coro, como no caso do “Mexeu com uma, mexeu com todas”, mas também tem nos ajudado a alertar umas às outras sobre locais de trabalho onde já ocorreram tais situações.

5 – Embora se estenda para outras áreas, o início do movimento teve como foco o cinema. Na sua opinião, por que isso acontece especificamente com essa área?
Acredito que por ser uma área em que ainda há a predominância de homens em funções centrais e de maior relevância como direção, roteiro, produção. O machismo ainda é muito forte e presente, tanto por trás quanto na frente das lentes.

Gabriela Egito (cineasta e produtora residente em Los Angeles, EUA)

1 – Desde que o movimento foi lançado, o que mudou, de fato, na indústria cinematográfica e qual foi a principal contribuição do movimento, na sua opinião?
Em primeiro lugar é preciso esclarecer que o #metoo é um movimento na indústria cinematográfica, assim como o #eleNão é um movimento das mulheres no Brasil. Tem pessoas que ajudam, colaboram, que se voluntariam para coordenar o engajamento, e vozes que se revezam no protagonismo na mídia, representando aquilo que acreditamos, mas não há uma líder, não é uma instituição formal. E, mesmo que fosse, não seria uma instituição com poderes legais para mudar todo um sistema à revelia desse próprio sistema. A mudança depende da indústria e de todos nós.

Então me incomoda um pouco esse tipo de pergunta sobre “o que de fato mudou” porque encontra eco no discurso machista de que a pessoa oprimida e assediada seria a responsável por implementar as mudanças necessárias. O movimento denunciou e propôs a discussão. Cabe a todos encontrar soluções e mudar de fato o quadro.

Por outro lado, é necessário ressaltar que esse movimento de acolhimento de vítimas de assédio e violência sexual já existia desde 2006, antes de viralizar no mundo com as celebridades do cinema. Foi fundado por Tarana Burke e continua existindo (https://metoomvmt.org/). O significado da hashtag #metoo é demonstrar a essas mulheres vítimas que elas não estão sós, é uma palavra de apoio, de solidariedade.

Machismo na indústria cinematográfica não é assunto novo, nem muito menos as denúncias de assédio e estupro contra predadores seriais. A grande contribuição do #metoo para a indústria é colocar o assunto em evidência, propor uma discussão na sociedade a respeito de uma opressão sistêmica, normalizada e altamente nociva para as mulheres, não só em termos de assédio e violência sexual, mas principalmente das repercussões profissionais disso nas carreiras das mulheres (contemplado pelo #timesup).

O #metoo é um marco no sentido de que, pela primeira vez naquele momento, a mídia deu voz às vítimas acreditando nelas, sem desqualificar ou vilanizar essas mulheres que vieram a público em massa denunciar o que sofreram. Porque o mais comum, ainda hoje, é dizer que a mulher está mentindo, que ela quer aparecer às custas de destruir a reputação de um homem ilibado, que ela pediu, que ela não se dá ao respeito, que ela é uma vagabunda e por aí vai.

Neste momento, há uma grande polêmica ocorrendo contra o indicado por Trump à Suprema Corte, Brett Kavanaugh. Já pesam contra ele duas denúncias de importunação sexual e há mais mulheres prometendo vir a público contra ele antes que a sabatina sobre seu nome seja concluída no Senado. Diversas celebridades se manifestaram em favor dessas mulheres, dizendo que acreditam nelas.

E, claro, na indústria de entretenimento especificamente há a repercussão negativa do #metoo, com denunciados, como Louis CK e Matt Lauer, se dizendo “vítimas” do movimento e querendo retornar aos seus cargos de poder como se nada tivesse acontecido, como se assédio sexual fosse uma bobagem menor e sem consequências, tipo um “erro que qualquer um pode cometer”. Aliás, muitas mulheres vítimas de assédio que vieram a público denunciar seus assediadores famosos e poderosos contam agora que passaram a ser persona non grata na indústria, foram isoladas por colegas, perderam empregos e oportunidades profissionais exatamente porque denunciaram. Ironicamente, esse argumento sempre pesou sobre as vítimas: “Ah, mas porque não falaram antes?” Eis a resposta! Pra não ser duas vezes vítima!

2 – Você percebe uma melhora na representatividade feminina, com a presença das mulheres ocupando espaços como de produção, direção, roteiro, e etc.? E o que essa presença feminina nessas outras áreas que não a de interpretação agrega?
Essa é uma faceta que surgiu na época do #metoo, mas se chama #timesup, pressionando pela equiparação profissional de mulheres na indústria do entretenimento. Como resultado geral, pode-se dizer que há mais visibilidade para programas de incentivo à diversidade, ou seja, está na moda dizer que contrata-se mulheres. Agora, quando vai se analisar os dados reais, o ponteiro moveu muito pouco em 20 anos. Em 2017, 90% dos roteiristas e 92% dos diretores dos filmes de maior bilheteria nos EUA foram homens. Um fato interessante de se notar é que quando o filme é dirigido por uma mulher, geralmente mais mulheres são empregadas em cargos de destaque, o que já não ocorre muito quando se trata de diretor homem.

A situação na direção de séries de TV é melhor, diretoras são 17% e roteiristas mulheres, 25%, e houve um pequeno avanço neste último ano, contratando-se mais diretoras estreantes, mas está longe de ser o ideal. Na área de interpretação, pode parecer que foi o boom das mulheres nas telas de cinema, mas quando se analisa os números de 2017 não é bem assim: somente 24% dos protagonistas de filmes são mulheres. Como antes tinha menos ainda, dá essa impressão de ser “muito”. Há ainda a questão da representatividade, porque uma grande crítica que se faz é que as mulheres geralmente aparecem nas telas em personagens secundários, quase como figurantes: namoradas, esposas e mães orbitando em torno dos personagens masculinos que comandam a trama. Observou-se em 2017 que 63% das personagens femininas tinham profissão e 55% delas foram vistas no trabalho. Comparando com personagens masculinos, 78% deles têm profissão e 69% são vistos trabalhando.

Veja diversas pesquisa recentes aqui: https://womenandhollywood.com/category/research/, sobre percentuais de papéis femininos e masculinos, falas de personagens, diretores de cinema e TV, distribuidores de filmes e até sobre críticas de cinema escritas por homens e mulheres. Pra resumir de forma bem tosca, é tudo um grande clube do Bolinha.

Inclusive diversos sindicatos de técnicos da indústria se uniram pra fazer um levantamento que demonstra claramente que cargos técnicos majoritariamente ocupados por mulheres, tais como continuísta, recebem salários bem menores do que outros cargos equivalentes mas majoritariamente ocupados por homens, por exemplo, segundo assistente de direção, que em tese teria o mesmo peso hierárquico de uma continuísta. Eles estão lançando a campanha #ReelEquity, por equiparação salarial.

3 – Quais são os principais e mais urgentes desafios que precisam ser enfrentados na questão do assédio contra as mulheres nesse cenário atual?
Ah, isso aí dá um livro e não sou eu que vou escrever. Pra começar, a abordagem está equivocada: fala-se em “assédio contra mulheres” ao invés de falar de “homens que assediam”. Portanto, as vítimas são colocadas na berlinda e os algozes sempre permanecem como sujeito oculto no debate. A solução nunca será encontrada nas vítimas. É preciso subverter esse foco. A pergunta que tem que ser feita é porque homens assediam mulheres? Porque homens estupram mulheres? O que é preciso fazer para que os homens parem de agredir sexualmente? Sugiro o TED vídeo: “Violência contra a mulher é problema dos homens”.

4 – Você já presenciou, foi vítima ou ouviu relatos de assédio contra mulheres antes ou depois desse movimento? Como está a cena em Hollywood hoje?
Já ouvi relatos de mulheres que eu conheço que foram assediadas sim. Mas melhor que o meu testemunho é o resultado de uma enquete recente com técnicos sindicalizados na área, em que se entrevistou mulheres e homens exatamente com essa pergunta. O resultado foi que 49% dos entrevistados relataram ter presenciado ou sido vítimas de assédio sexual como os relatados pelos movimentos #metoo e #timesup, sendo que 12% afirmaram que isso ocorre com freqüência. Esse percentual foi ainda maior em uma enquete da Associação de Roteiristas: 64% das roteiristas mulheres já foram vítimas de assédio sexual no trabalho.

Se os denunciados têm a cara de pau de ir pros jornais escrever artigos defendendo seus pontos de vista, como Louis CK dizendo que tudo bem se masturbar na frente das colegas porque ele perguntava ao baixar as calças e começar, o quanto você acha que realmente mudou? E ainda tem gente concordando com ele, quase como se ele fosse um “assediador gente boa”, sabe? Os caras hoje têm mais medo de serem denunciados, de terem seus nomes envolvidos em escândalos, mas isso não quer dizer que eles tenham mudado intrinsecamente quem eles são. Daí é uma questão de a sociedade como um todo decidir se isso é admissível ou não como comportamento social. Eu acho que não. Eu acho que homens assim não deveriam ocupar espaços de poder nem ser reverenciados, muito menos como formadores de opinião ou celebridades.

5 – Embora se estenda para outras áreas, o início do movimento teve como foco o cinema. Na sua opinião, por que isso acontece especificamente com essa área?
O movimento ganhou repercussão com celebridades da área de cinema, mas não começou com elas. A repercussão se deve à disponibilidade da mídia para reverberar o que elas, as estrelas, dizem, de dar voz e espaço, mas o assédio ocorre em todo lugar. Talvez pelo cinema ter se tornado uma área majoritariamente masculina isso fique mais patente. Assédio é uma questão de poder, não tem nada a ver com sedução. O assediador impõe sua vontade sexual sobre a vítima, à força, se preciso, para mostrar que é potente, que pode fazer o que quiser, e que a vítima tem que fazer o que ele quiser. O motor do ato não é o desejo dele de seduzir, mas sim o desejo dele de dominar o outro, de subjugar.

Carol Almeida (crítica e pesquisadora de cinema)

1 – Desde que o movimento foi lançado, o que mudou, de fato, na indústria cinematográfica e qual foi a principal contribuição do movimento, na sua opinião?
Acho ainda muito cedo para mensurar o que mudou “de fato” depois que o movimento #MeToo foi lançado, porque mesmo com algumas ações gerais dos estúdios em resposta ao movimento, ou com eventos específicos como é o caso de colocar Harvey Weinstein como réu em vários processos por abuso e assédio, ainda é preciso avaliar o quanto o sistema, desde os grandes estúdios até as produções chamadas independentes, está lendo isso como um “movimento” ou como um “momento”, porque movimento é algo que está em ação constante, enquanto que momento pode ser facilmente capturado pelos homens de poder como uma estratégia de marketing pontual ou, no pior dos casos, como um falso discurso desconstruído. Mas se é cedo para avaliar o que mudou em tão pouco tempo, digamos que é possível falar sobre o que está mudando de um sensível comum, digo, de uma sensação palpável de que situações de violências simbólicas, verbais ou físicas que até bem pouco tempo eram negligenciadas e silenciadas vão, progressivamente, ser descortinadas à medida em que essas mulheres do audiovisual se sentirem protegidas e amparadas por outras mulheres.

2 – Você percebe uma melhora na representatividade feminina, com a presença das mulheres ocupando espaços como de produção, direção, roteiro, e etc.? E o que essa presença feminina nessas outras áreas que não a de interpretação agrega ao cinema?
Ainda não. Se falamos da grande indústria, casos como o de Patty Jenkins, diretora de “Mulher Maravilha”, ou de Ava Duvernay, primeira diretora negra a assumir um filme com orçamento de mais de U$ 100 milhões, caso de “Uma Dobra no Tempo”, são ainda muito pontuais, ainda que absolutamente essenciais para que outras brigas sejam compradas. Se falamos de produções com baixo orçamento, o espaço dado às chamadas “cabeças de equipe”, ou seja, direção, roteiro, direção de fotografia e produção, ainda é predominantemente masculino, salvo o caso, aqui no Brasil ao menos, da produção, função que com frequência é delegada às mulheres que, no imaginário da sociedade patriarcal, é quem melhor consegue “organizar a casa”, leia-se, o set. Mas acredito sim que podemos caminhar rumo a situações mais igualitárias. Exemplo internacional disso: foi simbólico ver todas aquelas pessoas vestidas de preto no Globo de Ouro em apoio ao #MeToo, mas foi muito mais efetivo ouvir o discurso de Frances McDormand quando ela subiu ao palco para receber o Oscar de melhor atriz e avisou aos colegas de profissão: exijam o “inclusion rider”, algo que poderia ser traduzido como “cláusula de inclusão”. Leia-se, uma cláusula de contrato que pode ser exigida por atrizes e atores para que o set e/ou o filme/seriado tenha representatividade e representação próximos a uma equidade racial e de gênero. Exemplo nacional: há dois anos, o edital de audiovisual do Funcultura de Pernambuco mudou suas regras criando um sistema de pontuação para aprovação de filmes e séries que faz com que projetos que tenham mulheres, pessoas negras e indígenas em cabeças de equipe subam na avaliação. Esses são apenas alguns dos mecanismos possíveis para que haja, de fato, uma mudança na representatividade no cinema.

Sobre o quanto essa presença feminina agrega, inverto a questão: o quanto a presença masculina agrega? Faço essa inversão porque me parece uma dessas questões que nos levam a falar do tal “olhar feminino”. Ele existe? Como vive? Do que se alimenta? Acho que precisamos de mais mulheres, mais pessoas trans, mais pessoas negras, mais pessoas indígenas fazendo cinema e TV porque precisamos que as histórias sejam contadas por todas elas. Precisamos, portanto, quebrar com essa ideia de que existe um narrador universal do mundo, quando na verdade esse narrador tido como universal é sempre o homem branco cis, de preferência, heterossexual. E uma vez entendendo que é esse corpo hegemônico que estabelece os critérios do que é mais arte e menos arte, mais cinema e menos cinema, ter outros corpos construindo histórias é ter também a possibilidade de abertura para que outros critérios sejam desenhados. A ideia de “agregar”, como é usada nesse sentido de “mulheres que agregam” pode facilmente ser cooptada por uma ideia de “ajudar” meio próxima daquilo que se fala quando surge a frase: “ah, mas ele é um pai que ajuda”. Não acho, e essa é uma opinião minha, que devemos ajudar ou agregar a algo que já esteja consolidado, acho que devemos querer que esses corpos tidos como dissidentes a uma “normalidade” pré-estabelecida mudem a estrutura do pensamento-cinema, como várias diretoras, de Ida Lupino a Claire Denis passando por uma estreante realizadora como a mineira Ana Pi, com seu curta de estreia, Noirblue, já fizeram e continuam fazendo.

3 – Quais são os principais e mais urgentes desafios que precisam ser enfrentados na questão do assédio contra as mulheres nesse cenário atual?
Acho que primeiro é preciso entender que o assédio a mulheres nos mais diversos ambientes do cinema, desde o set até os festivais onde os filmes circulam, sempre aconteceu porque se plantou uma ideia perversa de que esse assédio é parte constituinte da própria fundação mitológica do cinema. Ou como diria Antoine de Baecque em seu livro sobre cinefilia, “o amor pelo cinema é consubstancial ao amor dirigido às atrizes”. De forma que interromper essa cultura do assédio e, por tabela, cultura do estupro, é simultaneamente uma luta pela preservação da dignidade das mulheres e contra um conceito de cinema fundado com base no desejo pelos corpos dessas mulheres enquanto paisagem a ser contemplada e, por que não, violada. Tendo em vista, sempre, que alguns corpos de mulheres são mais passíveis de serem violados que outros, como é o caso da hiperssexualização de corpos de mulheres negras, por exemplo. De forma que para que essa cultura seja interrompida, é preciso que, da parte da indústria, se lancem comprometimentos públicos para que profissionais mulheres não sofram com situações de trabalho misóginas e, da parte das políticas públicas, que afeta diretamente o cinema brasileiro independente, se possa criar parâmetros para que essa “cultura do assédio” deixe de ser um valor cinematográfico e passe a ser encarada como ela é de fato, ou seja, como violência.

4 – Você já presenciou, foi vítima ou ouviu relatos de assédio contra mulheres antes ou depois desse movimento?
Os relatos de assédio chegam todos os dias, sejam de situações de sala de roteiro, sets de filmagem, pós-produção e em toda a cadeia que envolve a realização e exibição de um filme ou série. Eu, por exemplo, estava naquela sessão em que a Anna Muylaert foi apresentar seu filme, no caso era o “Que Horas Ela Volta?”, no Recife, e teve sua fala interrompida a toda hora por dois diretores homens que se encontravam na sala. Naturalmente, alguns, mas apenas alguns, homens em situações de poder nesse ambiente já perceberam que algumas de suas ações e abordagens que, até pouco tempo atrás não seriam uma “questão”, não passam mais batidas. Outros, esses são bem poucos, perceberam que não é preciso apenas frear certo tipo de comportamento, mas de fato mudar a estrutura do próprio pensar hierárquico na criação de suas obras. Vejo algumas mudanças sim, mas acredito que esse é apenas o começo de um longo processo de alteração da ordem das coisas.

5 – Embora se estenda para outras áreas, o início do movimento teve como foco o cinema. Na sua opinião, por que isso acontece especificamente com essa área?
Na verdade, acho que não apenas o movimento #MeToo, mas vários outros movimentos feministas de luta no audiovisual surgem simultâneos a outras ações em outros campos culturais. Exemplo: existe uma ação no Brasil desde 2015 chamado #LeiaMulheres, um clube de leitura que surge pela iniciativa de três mulheres em São Paulo e rapidamente se espalhou pelo país. A ideia do #LeiaMulheres nasce de crescentes incômodos no meio literário que, por muito tempo, só premiava escritores homens brancos, só fazia antologias com escritores homens brancos e assim por diante. De forma que acho que existem várias ações conectadas por um sentimento de “basta” que é coletivo. Naturalmente, o cinema tem uma característica muito particular por ser uma arte fundada em narrativas a partir de imagens visuais que talvez deixe mais expostas situações de violência dentro e fora das telas. Mas certamente esse debate não se encerra nele.

Joana Oliveira (diretora, roteirista e coordenadora do curso de Cinema da UNA-BH)

Eu acredito que o movimento #metoo é fruto de toda uma movimentação feminista maior e mundial. Eu cresci ouvindo que as mulheres já tinham conquistado muito na história e que já ocupavam lugares maiores que no passado, como se isso fosse o bastante. Ao chegar na vida adulta fui percebendo que esse era um discurso silenciador porque as mulheres não tinham conseguido equidade real na sociedade. E que o assédio faz parte desse mecanismo de abuso contra as mulheres que não é só sexual, é de força de trabalho também. As mulheres trabalham mais que os homens segundo dados do IBGE. Além de trabalharem fora de casa, fazem a maior parte do trabalho doméstico, chegam a somar 8 horas de trabalho a mais semanalmente que os homens. Isso é de uma violência extrema.

Junto com o assédio sexual, vem o assédio psicológico. Nós crescemos ouvindo absurdos sobre como ser, como agir e como servir ao homem. Quebrar os valores que são transmitidos pela sociedade e pela própria mídia é muito difícil e eu acredito que a internet, apesar de todos os seus problemas, apareceu como lugar de encontro para as oprimidas e oprimidos. É importante lembrar que antes do movimento #metoo, no Brasil, houve o movimento #meuprimeiroassédio, em 2015, na época em que uma criança de 12 anos, Valentina, sofreu assédio de adultos ao participar de um reality show. Nessa época já várias mulheres que trabalham no mercado audiovisual contaram suas histórias, mas já elencaram com o mercado de trabalho audiovisual.

Há também um grupo de Facebook no Brasil chamado “Mulheres do Audiovisual Brasil” que conta com mais de 18 mil mulheres trabalhadoras e existe também desde 2015. Nesse grupo discute-se casos de todos os tipos de abuso dentro de nosso setor. E foi por essa pressão que começou-se, na Ancine (Agência Nacional do Cinema), a haver pesquisas e levantamento de dados sobre a participação das mulheres no audiovisual para se criar políticas públicas de acesso. Com esses dados, foi possível entender vários fatores sobre a opressão, inclusive que, por exemplo, diretoras faziam curtas metragens e não conseguiam ascender à produção de longas metragens. Fazendo análises mais apuradas descobriu-se que o gargalo estava nas comissões de seleção, quando os projetos concentravam mais dinheiro, as comissões compostas exclusivamente por homens, tendiam a premiar outros homens. Com dados foi possível dar nova cara às comissões de seleção da Ancine. A situação ainda é pior quando fala-se de profissionais negras.

A mudança vêm acontecendo desde então, entretanto, acho que o movimento #metoo escancarou para a mídia mundial os casos de assédio e abuso sexual que nós, mulheres, vivemos cotidianamente. Explicando novamente o abuso é uma forma de opressão. Quando você é tratada como objeto de prazer sexual e diminuída a isso, as consequências psicológicas são muito danosas. Muitas mulheres tiveram que, por séculos, aguentar caladas como forma de sobrevivência. Agora que estamos ocupando lugares de poder, resolvemos lutar contra a mais cruel forma de opressão que é o abuso sexual, o estupro e a violência psicológica que enfrentamos.

Sempre que um homem me pergunta se eu já sofri alguma forma de abuso, eu pergunto se ele já abusou de alguma mulher. Se ele já tentou forçar alguma mulher a beijá-lo na balada, se ele já segurou uma mulher pelo braço para forçar uma conversa de “paquera”, se ele já pegou nos cabelos de uma mulher durante uma micareta, ou se ele já passou a mão na bunda de alguma, sem consentimento. Mesmo na escola, quando esse tipo de atitude acontece, como “brincadeiras” de meninos. Tudo isso é abuso sexual. Tudo isso faz com que nos sintamos menores ou amedrontadas. Então, minha resposta é com dados, 94% das mulheres brasileiras já sofreram algum tipo de assédio.

Tudo isso faz parte da “cultura do estupro” e que pouco a pouco leva aos homens a serem educados para abusarem de mulheres e, não a toa, vivemos em uma sociedade em que a cada cinco minutos, uma mulher é agredida ou estuprada. O entendimento de estupro e de “cultura do estupro” de acordo com a definição apresentada por órgãos internacionais, e resumidas pela ONU Mulheres é: “cultura do estupro é um termo usado para abordar as maneiras em que a sociedade culpa as vítimas de assédio sexual e normaliza o comportamento sexual violento dos homens. Ou seja: quando, em uma sociedade, a violência sexual é normalizada por meio da culpabilização da vítima, isso significa que existe uma cultura do estupro. A cultura do estupro é uma consequência da naturalização de atos e comportamentos machistas, sexistas e misóginos, que estimulam agressões sexuais e outras formas de violência contra as mulheres. Esses comportamentos podem ser manifestados de diversas formas, incluindo cantadas de rua, piadas sexistas, ameaças, assédio moral ou sexual, estupro e feminicídio”.

Quero ressaltar que estupro é, de acordo com o Código Penal Brasileiro, no título VI, que dispõe acerca dos “Crimes contra a dignidade sexual” com uso de violência, constrangimento ou grave ameaça, e que não necessariamente implicam penetração. Masturbação e sexo oral sem consentimento podem ser considerados abusos dessa ordem nesta definição, com fundamento em “ato libidinoso”. O caso do movimento #metoo escancara as diferentes gradações de medo e do abalo psicológico quando um abuso é realizado por pessoas conhecidas ou de confiança da vítima, como parentes, vizinhos, amigos e parceiros e companheiros de trabalho. Historicamente, casos de abuso doméstico não são denunciados por envolvimento psicológico e casos de estupro em locais de trabalho não são denunciados por medo das vítimas de perderem o emprego.

Quando artistas hollywoodianas conhecidas denunciam casos de estupro e abuso cometidos por homens em lugar de poder, entendemos como o abuso e o silenciamento das mulheres acontece mundialmente, não importa a classe social ou o desenvolvimento econômico da sociedade. É a cultura do estupro que atinge mulheres, crianças e LGBT’s no mundo todo. De acordo com a pesquisa “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde”, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o IPEA, há uma subnotificação dos casos desses tipos de abuso: 90% das pessoas abusadas no Brasil não recorrem a órgãos oficiais para realizarem a denúncia. O comportamento se repete em outros países. Nos EUA, por exemplo, a subnotificação é de 35% de acordo com dados do Departamento de Justiça daquele país, apresentados na pesquisa National Crime Victimization Survey.

Agora, no Brasil, é importante lembrar que produções de longas-metragens estão adicionando em seus contratos, códigos de conduta, em que o assédio e abuso sexual é punido com demissão, além de obviamente serem reportados à polícia. Acho que essa conduta das produções é fruto da luta das mulheres brasileiras e reforçada pela lei Maria da Penha, que têm nos empoderado há mais de 10 anos. Tudo o que está acontecendo agora é fruto de luta. #EleNão também é fruto dessa luta.

Imagens: Arquivo/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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Amor de morte entre duas vidas

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