Entrevista: Raphael Vidigal fala sobre “O Sol Áspero”

“Acho que o mundo não tem sentido final, mas sei que algo nele tem sentido, e é o homem, porque é o único ser que reclama um sentido.” Albert Camus

É tudo mentira, tudo inventado, esclarece o autor Raphael Vidigal. “Como digo em determinada passagem, é um ‘livro da mentira, do enfeite’”, acrescenta o jornalista, referindo-se a “O Sol Áspero” (Gentil Editora). A empreitada de agora insere-se num formato de “romance experimental”, segundo o autor, letrista e repórter de O TEMPO, para acrescentar, na sequência: “Um pouco na linha do que Paulo Leminski propôs com o ‘Catatau’ (1975), ao chamá-lo de ‘romance ideia’”. “O Sol Áspero”, na verdade, deriva de um projeto para o qual Vidigal foi convidado em 2012.

1 – O embrião do livro encontra-se num projeto para o qual você foi contratado em 2012. Esse projeto, portanto, já visava um livro como resultado? Queria que especificasse mais, fiquei curiosa. Ou você tinha essa encomenda e, no curso do processo, resolveu dar outro rumo? Digo até pela extensão do prazo, pois imagino que, à época, 2012, você deve ter trabalhado com um período, digamos assim, mais curto para a entrega?
O projeto já visava um livro, sim, que entreguei em 2012, após 4 meses de trabalho. Mas era algo, digamos assim, mais objetivo e arcaico. Passado esse tempo, comecei a trabalhar sobre os escritos e a intensificar o caráter literário que havia naquelas letras. O trabalho foi o de ocultar ao máximo aquela história mais aparente e reduzi-la ao essencial, para chegar ao resultado que eu almejava: o de um romance simbólico, experimental, pautado em sensações e ilusões.

2 – Em que escaninho você colocaria seu novo livro, ou seja, como o define, em termos de gênero, ou gêneros? Sim, li que está no limite entre poesia e prosa, mas queria que você esmiuçasse mais.
Se é para nomear, eu o batizo de romance experimental. Um pouco na linha do que Paulo Leminski propôs com o “Catatau” (1975), ao chamá-lo de romance ideia.

3 – Como essa experiência nas 16 cidades citadas desaguou na obra? O que há de ficção e realidade ali? Ou quanto há?
É tudo mentira, tudo inventado. Como eu digo em determinada passagem, é um “livro da mentira, livro do enfeite”. Não acredito que exista uma ‘verdade’, essa senhora deslumbrada. É tudo uma questão de olhar. Paisagens, pessoas e acontecimentos passaram pela minha frente e eu as inventei da maneira que quis, foi assim que aconteceu. A literatura é um espaço de liberdade. É preciso cuidar dos que ainda temos.

4 – Aliás, a obra é contínua, ou seja, há um início, meio e fim, com personagens que vão da primeira à última página? Nesse caso, como as cidades aparecem?
Há uma personagem que conduz a trama, que vai mudando de forma: Ágata é onça, cigana e cidade. No prefácio que escreveu para o livro, a professora de cinema e artista plástica, que também fez as ilustrações, Clara Albinati, a define como “uma obsessão ou como aquilo que se perdeu e que se impregna em tudo o que se vê”. Concordo com esse olhar, o que acaba por tornar a narrativa circular. As cidades servem de espelho do desamparo que sentimos diante do vazio da existência. Não compreendo a lógica da vida, ela ainda não se explicou para mim. Gustave Flaubert pretendeu escrever um livro sobre o nada. O principal elemento desse romance é o nada, a inexpressão, o vazio e o desamparo.

5 – Em caso positivo, poderia sintetizar a narrativa?
Respondo com um trecho do livro:
Trancada. Gira a maçaneta uma, duas, três, quatro, cinco, incontáveis vezes, inutilmente. Todo o esforço de bíceps e tríceps comprimidos, avermelhados, músculos estouram. Suores chegam a formar pastosas babas de vacas ou dragões da Indonésia, o peso do volume embarga como náusea, ânsia de vômito. Olho caminha ao buraco da fechadura. Pálpebras apertam, depois afrouxam. Cílios caem feito gotículas de neve na tempestade. Sobrancelhas reagem pelo barulho imediato. Teto, paredes e piso impõem a posição fetal. Ouve-se do outro lado. O amplo vazio da visão preenchido por solas de sapato no assoalho, talvez tamancos, arrisca o salto. A esperança é uma abertura constituída de cabeça e tronco, porém agoniza: à falta de auxílio. Não há o manejo dos braços, o aconchego das mãos, o toque dos dedos, o equilíbrio das pernas, a firmeza dos pés, o fraco do calcanhar, nada se estende. O rosto opaco, lustroso e calvo. A nulidade dos membros. Veludo azul encobre a luz. A massa abarca órgãos vitais intermitentes. Respirar, bater, respirar, bater, respirar, bater, respirar. Sopra o tecido, a secura da boca cravada de fendas a oscilar, para cima e para baixo, e cor pálida, um leve esmorecer, pois permanece tapando a paisagem. Veludo grosso, escuro, ondula e mantém-se firme. Trancar pertence às portas. A esperança uma abertura, uma porta escura, um coração. E está moldada às chaves.

6 – Qual cidade mais te impactou e por qual motivo?
Nenhuma em especial. O que me tocou foi justamente a falta de identidade em todas elas, o quanto eram iguais e sem perspectiva, desinteressantes, formando um grande vazio em torno do nada.

7 – Vamos conversar um pouco mais sobre as influências confessas: Godard e João Cabral de Melo Neto. Como elas respingaram na obra? Estão lá de forma sutil, velada, ou, ao contrário, aparecem de forma explícita?
Godard aparece na epígrafe, com uma frase de que gosto muito: “Faça milagres se quiser desvendá-los. Só assim chegará lá.” Ela aparece no filme “Carmen de Godard” (1983). O que me interessa em Godard é a conduta experimental, o radicalismo da linguagem e uma certa fragmentação das perspectivas, que se tornam enredos intrincados e, por vezes, até delirantes. Isso é liberdade e também a confissão de que não há resposta, não há redenção possível. Ou, ao menos, significa compartilhar a falta de entendimento. Eu não entendo a existência. O que tenho a oferecer é essa pergunta, esse questionamento, porque não há nenhuma resposta possível ou definitiva. João Cabral me interessa pela aspereza do texto, a secura e um certo distanciamento, no sentido de, em alguns momentos, praticamente se apagar da narrativa, tamanha a impessoalidade. Se o narrador possui o olhar onipresente de Deus, nada melhor do que torná-lo invisível, ao ponto da ausência.

Patrícia Cassese

Fotos: Gilberto Rodrigues/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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