Entrevista: Denise Lopes Leal coloca Shakespeare na rua

“Hei de monumentar os insetos!
(Cristo monumentou a Humildade quando beijou os
pés dos seus discípulos.
São Francisco monumentou as aves.
Vieira, os peixes.
Shakespeare, o Amor, A Dúvida, os tolos.
Charles Chaplin monumentou os vagabundos.)
Com esta mania de grandeza:
Hei de monumentar as pobres coisas do chão mijadas de orvalho.” Manoel de Barros

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Não chega a ser coincidência que a primeira e a recente experiência de Denise Lopes Leal no teatro tenha em comum o “bardo inglês”. Talvez destino. Certo é que esse ciclo se inicia na década de 1990. “Lembro que o primeiro espetáculo que assisti e que mexeu comigo foi o ‘Romeu e Julieta’ do Grupo Galpão, em 91, 92”, constata. Tinha por volta de 6 ou 7 anos, e estava na cidade natal, Sabará, onde ainda mora, no interior das Minas Gerais. “Aquilo ali me tocou de um jeito, que eu queria fazer aquilo. Eu queria fazer o que eles faziam. E eles faziam teatro na rua. Além de ter gostado da apresentação, gostei de ser na rua, para todos”, sublinha. Essa característica democrática Denise trouxe para a mais nova montagem. “Se essa rua fosse minha” conversa com o espaço público, e William Shakespeare, claro.

MACAXEIRA
Denise explica que a protagonista do espetáculo “nasceu” em 2010, mesmo ano em que se formou no Curso de Teatro do CEFAR/Palácio das Artes. Por isso considera esse o início da trajetória artística “profissional”. “Mas querer ser artista, querer dizer algo através da arte, acho que isso vem desde sempre comigo”, recorda. No novo projeto, que teve estreia em dezembro de 2014 graças a financiamento coletivo através do site Variável 5, contemplado pela “Campanha de Popularização do Teatro e da Dança” deste ano, a atriz atua quase o tempo todo sozinha, por isso o subtítulo “um solo de Macaxeira”. Mas não foi sempre assim. Egresso do processo de criação para a formatura, intitulado “Sua cabeça é a lei de Mac”, tinha, desde a origem, inspiração em “Macbeth”, personagem de Shakespeare. Com direção de Juliana Pautilla, que permanece na função, e dramaturgia de Letícia Andrade, a entrevistada esclarece as referências.

“Para criar os primeiros passos da personagem me inspirei na Estamira, tinha acabado de assistir ao documentário e fiquei apaixonada”. Dirigida por Marcos Prado em 2005, a produção aborda a história real de uma catadora de lixo do Rio de Janeiro portadora de distúrbios mentais, e que se tornou célebre na região por seus discursos filosóficos, entre “a lucidez e a loucura”. Além disso, Denise se valeu de estudos acerca da figura do bufão, também conhecida como bobo da corte, para moldar a identidade de sua Macaxeira. “O espetáculo foi criado e encenado no Parque Municipal, e isso também colaborou para a formatação da personagem”, completa trazendo luz para um dos elementos mais importantes da concepção. O cenário público, a presença de outros atores que não necessariamente estão conscientes da interferência, o improviso, o inesperado.

SUBTERRÂNEO
O batizado veio por uma sacada da dramaturga. Letícia Andrade conceituou: “o que vem de baixo, da terra, do subterrâneo”. Assim tomaram a cena Macaxeira e Mandioca, casal formado por dois nomes de um dos mais típicos alimentos nacionais, herança dos índios que em cada lugar do Brasil recebe alcunha diferente, provando mais uma vez a diversidade e riqueza da nossa cultura popular.  O “homem da relação” era vivido por Clecinho. “Os dois foram ganhando corpo e forma, como se fossem moradores do Parque Municipal que denunciavam tudo de podre daquele reino”, elabora Denise. Naquela altura, a atriz admite que sua Macaxeira era “mais trágica do que cômica”. Mas como acontece com as personagens verdadeiras, aquelas com as quais nos identificamos, sobretudo se portarem alta fantasia, “a partir de 2011 Macaxeira ganhou ‘vida própria’”, avalia Denise.

“Comecei a receber convites para fazer intervenções em eventos e o lado cômico da Macaxeira foi ‘crescendo, crescendo, me absorvendo’”, atesta com os versos do compositor Peninha reinventados pela interpretação magistral de Caetano Veloso da música “Sonhos”. Daí para os entreatos do “Festival de Cenas Curtas” do Galpão Cine Horto foi um pulo. E para o “Teatro Espanca!”, mais outro. A localização deste último na Aarão Reis, baixo centro de Belo Horizonte, permitiu a Denise Lopes a convivência próxima com “aquela realidade diária, de pessoas que moravam ali, embaixo do viaduto, na porta do teatro, enfim, em toda aquela região”, discorre. “Aquela situação me tocava e incomodava muito, a história daquelas pessoas mexia demais comigo. Me interessei muito e comecei a pesquisa-las. Era uma convivência diária, de fazer amizade mesmo, de conhece-las a fundo”. Fato que pode ser sentido na presença de vários deles na plateia.

PODER
Denise menciona e alude a personagens reais da capital, bem como a situações. Algumas são lisonjeiras, outras pelo contrário. “Fui percebendo que a Macaxeira poderia ser um deles, ou poderia dialogar com eles, ou dar voz a eles”. Nesse contexto são chamados para dentro da cena Luís Estrela, conhecido morador de rua que se apresentava e recitava poemas, cujo assassinato cercado de controvérsias ainda desperta reflexões. Uns afirmam ter sido vítima de espancamento policial que buscava “limpar” a área às vésperas da Copa do Mundo, outros sustentam a tese de uma crise de convulsão espontânea como razão para o óbito. Vidigal e outros moradores também compõe os diálogos. “Chamei novamente a Juliana Pautilla, pra gente poder fazer um espetáculo, na época seria até um espetáculo com o Mandioca e a Macaxeira, o Clecinho também se interessou muito por aquelas pessoas. O tempo passou, entramos em outros projetos, e guardamos esse na gaveta. Quando foi em 2014, esse desejo, essa vontade, fez com a que a gente retomasse o trabalho. A gente tinha muito material. Material que juntamos por 4 anos. O desejo principal era simplesmente dar voz para aquelas pessoas da rua”, arredonda.

O pano de fundo novamente seria Macbeth. “E todas aquelas relações de poder, matar para ter poder, e trazer isso para a realidade dos dias que estamos vivendo”, argumenta. A percepção destas intrigas no ambiente da rua, a noção de violência e assassinato trouxe para Denise a certeza da atualidade de Shakespeare. “Para encorpar a personagem Macaxeira começamos a trabalhar com Lady Macbeth todas as questões da loucura e da mulher”. Daí o fio condutor entre o bardo e Estamira. Logo, a conversa entre a obra do autor de “Ricardo III”, “Hamlet”, “Sonho de uma noite de verão”, “Rei Lear”, “O Mercador de Veneza”, etc., e o baixo centro de Belo Horizonte, se fazia naturalmente. A queda do viaduto e as repetidas declarações infelizes do prefeito Márcio Lacerda também aparecem, cada qual com o tom apropriado da caricatura e da incredulidade. “Fizemos uma primeira cena curta de apenas 8 minutos, depois outra de 15, até chegar na construção do espetáculo, que tem pouco menos de uma hora”. Agora o destino de Macaxeira é a eternidade.

CAMINHOS
Nos próximos capítulos dessa estimulante caminhada, a “Cia. Quinta Marcha”, da qual Denise faz parte, estreará, ainda nesse mês de março, um novo trabalho. “Uma Carta para Vincent”, monólogo, terá direção de Odilon Esteves, da premiadíssima “Cia. Luna Lunera”, e atuação de Dayane Lacerda. Em “Se essa rua fosse minha”, Clara Freitas e Halyson Felix, acompanham brilhantemente Denise com participações precisas. Com essas duas peças a ideia é circular o Brasil. Na agenda está confirmada a cidade de Curitiba para este mês e abril. “Nosso trabalho, na companhia, é a criação autoral e a pesquisa se vale da autobiografia no processo criativo do ator”, resume. Por isso a cabeça de Denise já ferve inclusive com pensamentos para 2016, de propostas inéditas. Embora o cenário nem sempre seja o mais favorável, por isso a criatividade, quanto mais na arte, sempre conta a favor.

“A maior dificuldade é, como sobreviver da arte?”, questiona. “Sou formada em engenharia ambiental, e larguei tudo pelo teatro. Hoje em dia está difícil para qualquer profissional, o mercado está saturado em todas as áreas. Nas artes cênicas o principal caminho pra se manter vivo no mercado são as leis de incentivo. A cada dia que passa surge um novo grupo, formam-se novos artistas e as oportunidades são cada vez menores. Porque a competitividade está aumentando. Precisamos urgentemente de mais políticas públicas voltadas para a cultura”, vaticina. “Hoje em dia se conta na mão os grupos de teatro de Belo Horizonte que conseguem se manter, que têm uma sede própria. Acredito em outras formas de financiamento da arte. Como, por exemplo, o financiamento coletivo”. Uma das ferramentas mais usadas pela nova geração tem funcionado para obras de literatura, teatro, cinema, música e artes plásticas.

PARCERIAS
Para estas questões, Denise tem uma sugestão. “Acho que um grande problema de Belo Horizonte é a falta de coletividade, de parcerias, o que já acontece no Rio de Janeiro e em São Paulo, por exemplo, com a ‘Cooperativa Paulista’. Acredito muito nas parcerias, acho que só assim as coisas vão melhorar”, conclama. A atriz não se dá por vencida com facilidade. Prova disto é o início de carreira, onde a tônica era a falta de incentivo e perspectiva em Sabará. “Lá não tinha nenhum curso de teatro. E eu era muito nova para ir estudar na capital. Meu primeiro contato com o fazer teatral foi um tempo depois, já com meus 13 anos, quando fui estudar no Colégio Arnaldo em Belo Horizonte e lá tinha o ‘Núcleo Cênico’”. Foi nesta ocasião que conheceu Odilon Esteves, já estudante do ofício no Palácio das Artes, cuja idade mínima para cursar era de 18 anos.

“Eu não sabia direito porque aquela peça (‘Romeu e Julieta’) tinha mexido tanto comigo, mas sabia que era aquilo que eu queria fazer. Um tempo depois já com meus 17 anos, começou em Sabará um curso de teatro de rua e de circo, ministrado pelo Nahn de Andrade, que tinha estudado no T.U. (Teatro Universitário). Comecei a fazer o curso e não parei mais”.  Por isso não espere de Denise a paralisia, mas muito movimento. Seja ele gracioso ou reflexivo. “Sempre fui espontânea, a ‘palhaça’ da turma. Na vida acho que estou sempre de bom humor, é muito difícil eu não estar com um sorriso no rosto”, garante. “Tento encarar tudo da melhor forma possível, enxergar o lado bom, isso pode ser até ruim, me prejudica em algumas situações”, admite. “No teatro gosto do humor que provoca a reflexão, poder falar de algo sério usando o humor”, diz.

REFLEXÃO
Esta talvez seja a principal senha para compreender a arte de Denise Lopes Leal. A chave da porta da rua. “Ser sarcástica. Fazer as pessoas rirem e ao mesmo tempo pensarem sobre aquilo. A ‘Macaxeira’ consegue fazer isso muito bem. Eu vejo as pessoas rindo, dando gargalhadas, e vão rindo seco. Vejo as pessoas chorando e rindo. É muito doido isso”, afirma. Por isso a antipatia quanto a encenações de mercado, para o próprio bolso e lucro, além, é claro, de valores nada conciliatórios. “Ás vezes as pessoas têm dificuldade para enxergar determinada situação, e através da arte podemos mostrar as coisas de uma outra forma, mais lúdica. Usar a arte para retratar a questão política e social para mim é genial. A arte tem que ter essa função. Pode ser drama, comédia, tragédia, não importa o gênero. Não importa se é algo clássico ou contemporâneo. Mas tem a obrigação de dizer algo, de fazer as pessoas pensarem”, arquiteta.

Denise, lamenta, porém, a proliferação de propostas contrárias. “Infelizmente tem muita coisa vazia por aí. Fico muito brava quando usam a arte para reforçar preconceitos, racismos, estereótipos”, detecta. O que não impede que arte, reflexão e entretenimento possam conviver nessa mesma moeda que tem muito mais que três faces. Ela mesma enumera a quantidade de preferências artísticas em outros campos com as quais se diverte e melhora, a cada dia, como ser humano. “No cinema, gosto de Almodóvar, música vou de Caetano, Tom Zé, Arnaldo Antunes, Criolo, Zaz, além do som da galera daqui que estou curtindo muito ultimamente, como Iconili, Transmissor, Graveola e o Lixo Polifônico. Também, sempre, Bethânia e Gal! Confesso que não sou de ler muito, mas adoro o José Saramago, Clarice Lispector, Manoel de Barros. Sou um pouco de fases. Num dia amo, noutro não gosto mais. Agora estou viciada em séries, lendo “Mastigando Humanos”, do Santiago Nazarian. Artes plásticas gosto de Van Gogh”.

EXPERIMENTAL
Para finalizar, Denise tece comentários a respeito da interferência do ambiente social em seus trabalhos. “Vivemos em um mundo onde as questões políticas e sociais mexem com a gente o tempo todo. Poder usar da arte, do teatro, para expor, pra colocar pra fora todo esse sentimento de indignação é o objetivo final. Essa mistura de ficção e realidade, em que posso dizer coisas que me incomodam para pessoas que nem conheço e tocá-las é o que me move. Fazer com o que eu digo alcance muita gente. Acho isso maravilhoso. É aí que tá a importância do fazer teatral. Poder dizer coisas sérias, que estão aí, que todo mundo sabe, que todo mundo vê, que incomoda muita gente, mas poder dizer isso fazendo teatro. As pessoas são tocadas de forma lúdica, mas são tocadas. Isso que importa”. É aí que percebemos a tênue dissociação, se é que ela existe, entre arte e existência no globo ocular de Denise. “Poder estar em cena, viva”.

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Raphael Vidigal

Fotos: Flávio Charchar e arquivo pessoal, respectivamente.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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