“Pesa dentro de mim
o idioma que não fiz,
aquela língua sem fim
feita de ais e de aquis.
Era uma língua bonita,
música, mais que palavra” Paulo Leminski
Chico Salem não chegou até aqui por acaso, sua história vem de berço, como a da maioria de nós, mas, no seu caso, já regada a música, e não apenas canções de ninar. “Isso me lembra que antes de falar eu já cantava algumas coisas. Lembro do meu pai tocando violão pra mim, Caetano, Gil e eu acompanhando com um ‘nanana’”, recorda. A influência decisiva veio também pelo lado materno. Sobre a primeira lembrança musical, não titubeia: “Minha mãe cantando para mim muito pequeno e eu cantarolando depois”. O músico se apresenta em Belo Horizonte no próximo dia 16 de abril, no Parque Municipal, em programação que faz parte do projeto cultural “Momentos Aymoré”, patrocinado pela fábrica de biscoitos. Já munido de novo repertório Chico receberá no palco o cantor Arnaldo Antunes, numa troca de posições, já que, ao longo da carreira, foi Salem que se acostumou a acompanhar o ex-titã.
REPERTÓRIO
“Maior ou Igual a Dois” é o segundo álbum da carreira solo do artista, o primeiro foi intitulado somente como “01” e lançado em 2002. Os dois títulos são expressivos do momento pelo qual passava o músico e o que pretendia comunicar a seus ouvintes, como ele mesmo diz. “Estes dois álbuns possuem a característica similar de serem fotografias de momentos da minha vida. O ‘Zero Um’ nasceu da vontade de gravar músicas que eu havia composto dos 14 aos 22 anos”, ratifica, idade com a qual lançou o disco. Nesse processo Chico foi para estúdio acompanhado apenas do produtor Alê Siqueira, levando somente canções de sua autoria, “com exceção de duas, em parcerias com Danilo Morais”, sublinha. De todo modo, foi esta uma primeira aventura “muita solitária e particular, era o que eu estava vivendo”, realça. Como numa montanha-russa, o novo disco capta Chico Salem já observando de lá do alto.
“‘Maior ou Igual a Dois’ é mais expansivo, estou mais interessado no encontro, no resultado que esses encontros que tive ao longo da vida deram”, ratifica. Logo, é de se esperar um grande número de participações especiais. Por hora, Chico olha menos pra dentro e mais para fora. Marcelo Jeneci, Zeca Baleiro, Karina Buhr, Fernando Catatau e outros são alguns dos que contribuem, além de parcerias com o já citado Arnaldo Antunes. “Cada uma dessas pessoas me traz coisas diferentes. São todos muito talentosos, conectados com suas essências artísticas e muito diferentes entre si, cada um tem seu jeito de se expressar. O que eu mais ganho estando perto desse pessoal é poder observar mesmo, sempre me coloco quietinho, fico olhando, fico vendo como se comporta em estúdio, no palco e principalmente aprendendo com eles”, elogia. Para os mais apressados o disco já se encontra totalmente disponível na rede.
INFLUÊNCIAS
Chico leva para o palco referências de sua formação artística e ingredientes que foram acrescentados com o passar dos anos. Como numa boa receita tradição e modernidade contemplam-se tolerantemente. Nada tão surpreendente para quem aprendeu a admirar os ases da nossa “Tropicália”. “Foi algo forte na minha formação ter a música organicamente cultivada na minha casa… Comecei a estudar cedo, com seis anos eu já tocava, fui sendo convidado para bandas e projetos, fazia rodinha de violão com os amigos até o nascer do dia, sempre foi algo muito natural na minha vida. A verdade é que eu nunca tive outra opção porque nunca senti dentro de mim vontade de seguir outro caminho senão o da música. Eu sinto que na verdade não fui eu quem escolheu a música e sim ao contrário, a música que me escolheu”, reflete. Dentre as influências nominais Salem cita Gil, Caetano, Chico e Raul Seixas.
Essa miscelânea certamente contribuiu para que no novo trabalho participem nada menos que quarenta músicos, dentre eles cinco cantoras convidadas. “As minhas influências para esse disco, que também são as referências para a minha vida, são os grandes nomes da música brasileira”, assinala. Logo, cabe uma história contada pelo entrevistado. “Quando eu tinha mais ou menos 17 anos, teve uma presença muito forte na minha vida que foi a aparição do Chico César, com aquele jeito particular de tocar violão e de cantar, que me fascinou muito. Quase toda obra do ‘01’ partiu de levadas de violões que eu fazia, depois vinha melodia, letra, e isso veio de uma influência muito grande do Chico. Também sempre ouvi muito rock brasileiro, fui sempre muito fã de [banda britânica de rock progressivo] ‘Pink Floyd’”. Nesse movimento de idas e vindas entre um e outro disco há uma certeza na vida de Chico, a música veio pra ficar.
CENÁRIO
A música nunca foi um ambiente estranho para Chico Salem, e tampouco sua cena. Com 22 anos de carreira o ainda jovem músico contabiliza parcerias com artistas do calibre de Luiz Melodia, Marina Lima, Marisa Monte, Carlinhos Brown, Elza Soares, Emicida, Adriana Calcanhotto, Nando Reis, Branco Mello, Erasmo Carlos, e outros, quase sempre ocupando o posto de guitarrista de suas bandas. Multi-instrumentista, cantor, compositor e produtor musical, Chico também é o responsável pela produção do álbum “Ao Vivo no Estúdio”, de Arnaldo Antunes, vencedor do prêmio TIM de 2008 na categoria pop-rock. Tem, portanto, experiência prática e teórica de sobra para avaliar o atual cenário, que ele considera “bastante rico, tem muita coisa sendo feita. Fazia tempo que a música brasileira não produzia tanto. Eu entendo que a principal dificuldade tem sido dar vazão à quantidade de produto que tem sido feito”, diz.
Com o declínio das grandes indústrias e gravadoras, provocado, em larga medida, pela nova lógica de consumo e divulgação cultural, oriunda da expansão da rede, Chico não se espanta com as novas medidas. “As pessoas têm ido atrás de financiamentos coletivos, de coletivos de música, pra tentar viabilizar, porque tem muita gente boa, muita gente interessante dizendo coisas legais. Muitos trabalhos interessantes sendo feitos, bem produzidos, mas ao mesmo tempo existe certa carência de espaços”, detecta. Apesar das flores e dos pesares, o músico aponta saídas interessantes, baseadas em sua visão de mundo. “Por essa dificuldade de achar lugares para tocar em várias regiões do Brasil, rola um sentimento de escassez que impera devido a uma premissa de que ‘não tem pra todo mundo’, aí fica todo mundo preocupado em garantir o seu. Eu acredito que se as pessoas acreditarem no contrário, de quem tem pra todo mundo, que tem espaço pra todo mundo e compartilharem seus contatos, a gente começa a fortalecer um círculo de abundância e com isso esquentar uma cena musical, o que acaba sendo interessante para todos”, aposta.
ENCONTROS
Chico sabe do que está falando. Vive na prática o que expressa em seu discurso. “Me interesso muito pelos encontros, sou muito curioso e observador. Gosto de observar as pessoas que estão ao meu redor, suas potências e particularidades. Para mim, o melhor jeito de aprender a cantar, tocar um instrumento, se tornar artista é observando”, aconselha. No próximo sábado subirá ao palco acompanhado pela bateria de Loco Sosa, o baixo de Henrique Alves, guitarra de Estevan Sinkovitz e os teclados de Ricardo Prado. Mas não só isso, pois virá também com uma grande responsabilidade de ser o dono do pedaço. “Quando você faz parte da banda de outra pessoa, você está numa posição de servir àquele artista. Então você tem que fazer seu melhor para que ele esteja bem e confortável. Isso é um trabalho muito bom que eu gosto de realizar. Mas quando você está na linha de frente, a responsabilidade vem de sua relação direta com o público”, acredita.
O desafio é conseguir a fluidez e naturalidade de “quando se está numa roda de amigos ou acompanhando outro artista”, afirma. Chico gosta de percorrer lugares diferentes, do pensamento e do mundo, e sempre com uma perspectiva receptiva e generosa. “Gosto muito de cantar minhas músicas e me conectar diretamente com o público e gosto muito também de estar servindo, como eu faço há 17 anos com o Arnaldo [Antunes], de dar um alicerce para que o artista possa construir em cima disso a sua performance”, endossa. “Essas pessoas me ensinam muito, coisas muito grandes que me ajudam a me encontrar em mim, a encontrar o meu sagrado, aprendendo com quem está por perto. Quem não aprende com quem está do lado desperdiça tudo isso e eu não quero desperdiçar essas oportunidades”. Por isso Chico abre seus braços para o mundo, sereno e disposto, embalado, ainda hoje, pela música da sua infância. Uma criança no adulto. Numa solidão de muitos.
Raphael Vidigal
Fotos: Arquivo e Divulgação.