“Deu-me o amor este dom:
O de dizer em poesia.
Poeta e amante é o que sou
E só quem ama é que sabe
Dizer além da verdade
E dar vida à fantasia.” Hilda Hilst
Elke Maravilha (1945-2016) conta que Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) adorava a palavra “taciturno”, sinônimo para “quem é de poucas palavras; calado; ou melancólico, sombrio, triste”, e foi assim que ela o encontrou na orla de Copacabana, no Rio. “Como nós dois podemos ser de Itabira e sermos tão diferentes um do outro?”, questionou o poeta para a jurada de calouros que era a própria expressão do exotismo na TV brasileira. “Mas eu sou de Leningrado”, riu Elke – com a risada característica, capaz de despertar do sono as crianças mais enfronhadas no travesseiro.
Essa história fantástica gerou uma ruga de “leve desconfiança” na consciência do biógrafo de Elke, Chico Felitti, que lançou, em fevereiro, mês de aniversário da homenageada, “Mulher Maravilha” em formato de áudio-book pela Storytel, empresa especializada no ramo, sediada na Suécia. “A graça da piada é fundada numa mentira”, justifica Felitti, que descobriu, em sua ampla pesquisa para o livro que, ao contrário do propagado pela artista durante a vida inteira, Elke não nasceu em Leningrado, atual São Petersburgo, na Rússia, “enquanto o bicho pegava solto na Segunda Guerra Mundial, com direito a explosões na hora de seu nascimento e o pai em trabalho forçado nos campos de concentração da Sibéria”, mas numa pacata cidadezinha no sul da Alemanha, chamada Leutkirch.
Para desfazer a fábula, Felitti teve acesso, graças a um professor primário de Elke, a uma certidão de nascimento que comprovava a origem alemã da biografada. “Ela dourava a pílula em vários acontecimentos. Por exemplo, ter dito que a televisão e a ida ao programa do Chacrinha foram um lapso, fruto do acaso, em sua trajetória, quando, na verdade, conversando com o Boni (diretor da Rede Globo por décadas) e com parentes da Elke, eu descobri que ela correu bem atrás disso, o que, para mim, não a diminui em nada. O fato de que ela arquitetava as histórias e ia vendo como as pessoas reagiam a cada versão, só a torna mais interessante”, pontua. “Era tudo meio premeditado, a Elke criou uma mitologia em torno de si. Ela era muito ‘conversadeira’, engenhosa. Aliás, esse lado de contadora de histórias ela também atribuía à experiência em Minas”, completa.
Mineira. Por essas e outras, Felitti adverte que “nós nunca saberemos se esse diálogo entre ela e o Drummond aconteceu”. “Não me surpreenderia se a Elke tivesse dado uma pequena adaptada”, diverte-se. No entanto, o poeta itabirano realmente escreveu sobre Elke e “se dizia fascinado” pela artista que, ao chegar ao Brasil, ainda criança, se estabeleceu com a família em uma fazenda na zona rural de Itabira, no interior de Minas. “Elke se considerava mineira e gostava de lembrar desse período em Itabira, quando ela pegava um cavalo, chamado Garoto, e cavalgava por 18 horas seguidas, sem ninguém, com uma liberdade completa. A família tinha um jacaré de estimação. Era uma casa maluca e a infância da Elke foi assim, muito livre”, observa o entrevistado.
Foi em Belo Horizonte que teve início a carreira de uma das mais divertidas e excêntricas personalidades da cultura brasileira e, claro, não poderia ser de outra forma que não inusitadamente. “Ela foi vista na Savassi (região boêmia de BH) por um colunista social que correu atrás dela no meio da rua, porque queria que a Elke fosse candidata a um concurso de miss. Tinha a maior cara de ser um ‘golpe’, mas não era. A Elke acabou vencendo o concurso”, destaca Felitti. Na capital, Elke estudou na mesma escola que a ex-presidente Dilma Rousseff.
Encontros. De Minas Gerais, a promissora celebridade guardou outro costume. “Ela se chamava de ‘cachaceira’ e gargalhava”, recorda Felitti. Os encontros entre o jornalista e sua personagem ocorriam, impreterivelmente, na parte da manhã, entre 9h e 10h, e eram regados a álcool. As agendas tinham que ser combinadas quando Elke, que morava no Rio, viajava para São Paulo, onde a família possuía um apartamento na avenida Paulista, que acabou sendo perdido, e, a partir de então, Elke passou a ficar hospedada na casa de amigos. “Ela dormia pouco e estava sempre bebendo. Principalmente vodca com cachaça”, enfatiza o escritor. Os locais escolhidos variavam entre botecos e padarias no centro de São Paulo. Outro fator constante é que “ela nunca estava desmontada”, conta Felitti.
“Não era uma maquiagem completa, de palco, mas era raro ela estar sem peruca, em trajes civis. Era um meio-termo. Não era uma presença humana, mas um semideus”, compara. “O personagem tomou conta da vida dela profundamente”, afiança o jornalista. “Como todo mundo que nasceu nos anos 80”, Felitti tomou contato com “a figura exuberante de Elke, que parecia saída de um sonho e me fascinava imageticamente”, por meio da televisão. Na esteira de uma bem-sucedida carreira de modelo – quando amigou-se de Zuzu Angel e comprou briga com o regime militar que assassinou o filho da estilista, o que lhe valeu seis dias de prisão e a cassação do passaporte brasileiro –, Elke começou a trabalhar na televisão como jurada de programas de calouros comandados por Chacrinha e Silvio Santos.
Ironicamente, as relações se tornaram diametralmente opostas. Elke nunca escondeu a admiração pelo “Velho Guerreiro” e, tampouco, o desprezo que nutria pelo dono do SBT. “O Silvio Santos foi a única pessoa que se recusou a falar para a biografia”, revela Felitti. A aversão do apresentador a entrevistas ganhou novos contornos. Felitti, que já entrevistara Silvio em mais de uma ocasião, repetiu a tática de espera-lo na porta do Jassa, salão de beleza no Jardim Paulista, um dos bairros mais nobres da capital paulista. Ao contrário de outras vezes, em que Silvio, inclusive, o puxou para dentro do carro, desta vez o jornalista recebeu “uma porta na cara”. “Havia uma rivalidade entre eles, que Elke sempre deixou clara e o Silvio nunca declarou”, informa. Na série de TV produzida pela Fox sobre a trajetória do “Dono do Baú”, que completa 90 anos em dezembro, caberá a Giovanna Ewbank interpretar a irreverente Elke, ícone do Movimento de Arte Pornô, manifestação de vanguarda criada em plena ditadura, e musa da causa LGBTQI+.
Batismo. No penúltimo período da faculdade de jornalismo, em 2007, Felitti almejava escrever um Trabalho de Conclusão de Concurso a respeito de Elke e, para tanto, descolou com um amigo o telefone da casa da artista. Com o inconfundível bordão “criança”, pelo qual chamava todo mundo, ela mesma o atendeu e, embora o trabalho de faculdade não tenha saído, a faísca já estava acesa. No dia da morte de Elke, em agosto de 2016, Felitti escreveu um obituário para o jornal Folha de São Paulo, e logo recebeu o convite para transformar as entrevistas inéditas, recolhidas durante dez encontros, em um livro, que deverá ganhar uma versão física em 2021. O material foi acrescido com viagens e depoimentos de mais de 200 pessoas, desde familiares do também jurado Pedro de Lara (1925-2007) a amigos anônimos de São João Del-Rey e Porto Alegre, onde ela foi vizinha de Leonel Brizola (1922-2004), passando por fofoqueiros profissionais como o apresentador Leão Lobo.
“Existe pouca documentação em torno da vida da Elke, a maioria das lembranças são orais. Ela era uma pessoa memorável, que deixou muitos amigos”, diz Felitti, que destaca ter ouvido uma freira que, segundo ele, foi uma das melhores amigas de Elke, mas que preferiu não se identificar. “A Elke ajudou financeiramente inúmeras pessoas, e em contextos diferentes. Ela proibia que as pessoas falassem sobre isso. Certa vez, um amigo disse para a Elke que ia parar de fumar e ela sacou que ele estava era sem grana, então jogou um maço de cigarros em cima dele”, garante. “A Elke colaborou com várias associações de prostitutas e de pessoas com hanseníase. Era muito generosa”, exalta. A modéstia também a acompanhava. “Ela detestava a ideia de biografia, não se achava merecedora, dizia que isso era para figuras como Alexandre, O Grande”. O nome “Mulher Maravilha” tampouco a agradou. Elke considerou o título “uma titica”, confessa Felitti.
“Tive que insistir porque acho que é um nome bem definidor e que deixa claro de quem se trata. Além de dar ênfase a um aspecto fundamental. Ela foi uma mulher extraordinária do show business, que aliava fatores dissonantes: se autodeclarava anarquista, falava de aborto na TV aberta, era politizada, contestadora e, ao mesmo tempo, trazia uma estética popular, doce, com uma roupagem que a fazia parecer inofensiva, ser amada pelos jovens e pelas crianças”, sublinha. Ao longo dos 71 anos de existência, Elke colocou em prática sua multiplicidade artística e cantou em várias línguas, como russo, grego e latim (ela dominava oito idiomas), além de ter atuado em cinema, teatro e novelas, com destaque para “Xica da Silva” (1976), de Cacá Diegues, e “Pixote, a Lei do Mais Fraco” (1981), de Hector Babenco. Em 1978, protagonizou o autorreferente “Elke Maravilha Contra o Homem Atômico”, comédia escrachada. No mesmo ano, foi estrela de “A Noiva da Cidade”, com música de Chico Buarque. Casada oito vezes, ela nunca teve filhos.
Frente ao atribulado momento político do Brasil, Felitti acredita que Elke “saberia transformar o caos negativo que vivemos em um caos positivo, de riso e chacota”. “Ela estaria fazendo piada, de forma sarcástica, sobre quem está no poder. Elke sabia transformar as piores situações, como ficar sem dinheiro até para comer, em uma energia atômica espetacular. Mesmo a tristeza da Elke era bonita e exuberante, jamais macambúzia. Elke estaria revoltada no estilo Elke”, finaliza.
Raphael Vidigal
Fotos: Horta do Rosário; e Acervo Pessoal/Divulgação, respectivamente.