Crítica: Peça “Aqueles Dois”, da Cia. Luna Lunera, captura sentido da obra de Caio Fernando Abreu

“Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra.” Caio Fernando Abreu

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A montagem expressiva da Cia. Luna Lunera para o conto do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu, transforma o espetáculo “Aqueles Dois” num produto de entretenimento e reflexão de alta categoria. Isso porque os recursos adotados enfatizam a complexidade e inventividade do escritor que, ao aderir a uma cultura pop jamais largou mão de preceitos que lhe eram caros, como a experimentação e o existencialismo interiorizado, que tinha em Clarice Lispector sua maior referência. Provam-se escolhas acertadas as de recriar os “dois” protagonistas em quatro personagens, e a maneira como a miscelânea de citações do autor é colocada em cena. Uma das características que saltam aos olhos nos textos de Caio é justamente a menção a outras obras. Daí outro enriquecimento. Tanto no texto quanto na peça espalham-se música, artes plásticas, dança, cinema, literatura e teatro, e ainda uma pitada de confusão entre real e imaginário, a tentativa de deserdar a distância entre o sujeito ativo e o sujeito pasmo. Cláudio Dias, Guilherme Théo, Marcelo Souza e Silva e Odilon Esteves dão conta desse recado em atuações de destaque. Zé Walter Albinati divide com os quatro a direção ágil e nada óbvia.

No que diz respeito ao conteúdo coloca-se em discussão o relacionamento entre dois homens, que, por assim dizer, é pura maquiagem. O que se debate é o sentido da vida, em seu aspecto amplo, e o ambiente que esta sociedade ocidental – focada em São Paulo, embora não explicitada – gera, como a sensação claustrofóbica, a mesquinharia, a angústia, ainda mais quando se pretende viver de maneira pouco usual, criativa, diferenciada. Desta maneira, o texto é um estímulo à libertação e à liberdade. Em Caio se condensam sempre um pouco de humor e um tanto de drama, que a peça sabe capturar, embora muitas vezes a plateia se confunda e ria por puro cinismo ou por costume. O autor se equilibra também no limite entre cult e populacho, brega e elegante, grotesco e precioso, Benito Di Paula e Cazuza. Alguns truques são usados pela Companhia para aproximação do espectador, afinal, já que Caio era pop se entende o uso de expressões desse tempo como “gás nobre” e filmes de Almodóvar que ainda não haviam estreado quando da morte do também dramaturgo. A “limpidez recheada” do cenário está em consonância com a fala.

A iluminação é singela e precisa, em especial na cena de nudez. Mas o tempo, para a peça, é algo permanente e elástico, pois as questões são sempre atuais, como o preconceito a uma provável homossexualidade, e o que está obscuro é claro: independente do tempo que fique ainda em cartaz – já está há sete anos – “Aqueles Dois”, no livro e nos palcos, é tão lúdico quanto intocável. Por isso o seu tempo, como os olhares, é variável, e não para.

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Raphael Vidigal

Fotos: Gustavo Jácome e Diego Pisante, respectivamente.

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16 Comentários

  • Meu caro, li seus artigos e achei brilhantes! Vc tem um sentimento pela música que é tocante. Vc me permite dizer algo a mais?

    Aqui não tem ninguém que escreva com tanto sentimento, com tanto conhecimento.
    Vc tem algo a mais!
    Na medida certa, no ponto certo.

    Resposta
  • Olá Raphael
    obrigado pelo seu texto!
    compartilhei seu link com todos do grupo, inclusive os que não fazem parte de Aqueles Dois. Alguns responderam que já tinham lido, e te agradecem também!
    um abraço

    Resposta
  • Q bacana. Raphael!
    Delicadeza e sensibilidade.
    Te retornaremos em breve.
    Abçs

    Resposta
  • Oi Raphael, que ótimo! Vou ler e passar para os meninos lerem! Obrigado pela sua visão 🙂

    Resposta
  • Muito boa crítica, Raphael. Você teve a sensibilidade de traduzir o que muitas vezes não é traduzível.

    Resposta
  • Peça sensacional !!! Não poderia ser diferente diante da obra de Caio Fernando Abreu e dos atores e diretores que compõem o espetáculo! Há tempos não ficava tão feliz no teatro! 😀

    Resposta
  • Lindo demais S2 Me vi e revi nessa história, não é fácil mas é bom e necessário. O que vocês fazem é incrível !

    Resposta
  • Muito bacana seu trabalho!
    Espero ter o prazer de ler mais produções assinadas por você!
    Abração e sucesso! 🙂

    Resposta

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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