Crítica: “O Senhor do Labirinto” persegue Arthur Bispo do Rosário

“A fantasia não é exatamente uma fuga da realidade. Mas um modo de entende-la.” Lloyd Alexander

O-Senhor-do-labirinto

Arthur Bispo do Rosário é um dos mais importantes artistas plásticos brasileiros. Apesar de confinado durante cerca de 50 anos na Colônia Juliano Moreira, sua arte, de característica irrestrita, alcançou outras plagas, como a Europa e grande parte do território nacional. Mas essa não era uma preocupação do artista. Diagnosticado como esquizofrênico paranoico, e por isso levado ao hospício, se considerava Cristo e dedicava as obras a Deus. Mantos, bordados, estandartes, navios, coleções de colheres, copos, e vários tipos de artesanato eram construídos a partir de matéria prima colhida no lixo, antes que qualquer preocupação sobre reciclagem existisse no país de maneira institucional ou individualizada. Bispo do Rosário era natural de Japaratuba, interior do Sergipe.

A sua ligação com uma chamada arte conceitual ou de vanguarda parece encontrar pouca recepção em Bispo, sendo muito mais elucubração de analistas. O caráter passional de seus gestos e do comportamento o liga a um movimento de intuição, magia, na beira da inconsciência entre o transe do ser desdobrável na própria linha que o veste e é obra-prima. No que há algo de Hélio Oiticica e Lygia Clark, mas por outros caminhos. Bispo constrói um mundo no qual ele está inserido, do qual olha de dentro, completamente imerso. São os teus objetos que o acolhem, e não há qualquer distanciamento ou a visão habitual do artista diante da obra. Conduzido por anjos, Bispo flutua em seu céu de feitios, com a aura que somente ele e os escolhidos para a salvação eram capazes de enxergar.

Infelizmente toda a explosão lúdica, o retalho, o refinamento, o detalhe preciso e precioso, as minúcias acrobáticas, cheias de luzes, cores, das obras de Bispo do Rosário são pouco exploradas no filme “O Senhor do Labirinto”, com direção e roteiro de Geraldo Motta e contribuição, nessas atividades, respectivamente, de Gisella de Mello; Luciana Hidalgo e José Joffily. Esse tecer a partir da miséria, a exuberância que nasce do chão recebeu homenagens por parte do poeta Manoel de Barros e do músico Arrigo Barnabé. No entanto, o olhar mais interessado na loucura, no ambiente agressivo e hostil dos outros internos, que pouco influenciou nas invenções de Bispo, relega essas ideias peculiares e impactantes a segundo plano. Prefere-se o choque da dor, do comportamento banal, ríspido.

Há uma boa reconstituição dos ornamentos do artista, porém, como outros elementos, essa fica apenas na superfície, na parte física. O sentimento de encanto que poderia transbordar e preencher a tela é contido. O que se deve, principalmente, à condução óbvia, conservadora, pouco criativa do filme, e que não tem ressonância com a ética de Bispo do Rosário. Ao procurar retratar essa vida de maneira comum, com uma narrativa clássica, temos apenas mais um filme de fatos, sendo que o interessante da personagem reside justamente nos conflitos e encontros internos, psicológicos, incandescentes, na compreensão do mundo de maneira diversa à rotineira. A inserção de outra produção sobre Arthur Bispo, antiga, feita pelo fotógrafo e psicanalista Hugo Denizart, acaba artificial.

Falta organicidade à película. Alguns acontecimentos são dispostos de maneira confusa, mal resolvida, sendo que não é esse o intento e a proposta da produção até aquele momento. O grande mérito é perseguir Arthur Bispo do Rosário, mas, como num jogo de xadrez, por esse labirinto, ele escapa e fixa apenas a imagem, livre do imenso potencial estético e de conteúdo. O excelente time de atores também sofre com o texto pouco efetivo. Existem boas tiradas cômicas, mas que não resistem ao ritmo e ao enredo. Flávio Bauraqui, que certamente poderia tirar muito mais de Bispo, fica limitado ao mimetismo, no qual, ainda assim, sobressai. Odilon Esteves, Maria Flor e Irandhir Santos, têm talento de sobra para apresentar mais, e conhecem as fagulhas internas daquelas pessoas, apenas não lhes é dada a oportunidade. Nesse contexto, a música de Egberto Gismonti também aparece pouco.

Arthur Bispo do Rosário segue um enigma radiante no que deixou para Deus.

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Raphael Vidigal

Images: Cena do filme e obras do artista, respectivamente.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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