*por Raphael Vidigal Aroeira
“De afetos imprecisos,/De repente tomados
À lua das vazantes/Num relance possessos
Possuídos/Inflamando o sentir
Recomeçando aquele, o mesmo canto.” Hilda Hilst
Se o Brasil é tido como o país das cantoras é porque com a força de suas interpretações elas são capazes de tomar para si o protagonismo de composições alheias. Como para os apenas letristas é difícil se destacar nesse cenário, afinal de contas a música atinge seu cume quando se desmancha do papel e torna-se etérea através de sons, tanto mais o é para seus instrumentistas.
Portanto não é pouca coisa que Dilermando Reis tenha se tornado, para além do violão, uma referência da música popular brasileira e a todos que admiram o gênero. Em pouco tempo ele deixou de ocupar a estante reservada aos aficionados e especialistas para se juntar a nomes tão populares em seu período áureo como Francisco Alves, Carmen Miranda e Luiz Gonzaga. Terá contribuído para isto o estilo, ou, antes a autenticidade, tão cara ao artista.
Admirado por Raphael Rabello, contemporâneo de Garoto, o certo é que o estalo para Dilermando, natural do interior paulista, aconteceu quando assistiu a um recital de Levino da Conceição, violonista cego o qual passou a acompanhar em excursões pelo país. Na época a consagração ocorria no Rio de Janeiro, então capital federal, e foi lá que Reis se estabeleceu como artista, na Rádio Clube do Brasil, levado por Renato Murce.
Gravou músicas clássicas, choro e valsa, numa transição entre o típico e o importado, o erudito e o popular, que mal se fazia notar pela característica afetiva que Dilermando empregava em seus concertos. Um dos feitos mais aclamados é o de ter ensinado o ofício para o presidente Juscelino Kubitschek. A maior contribuição de Dilermando Reis, no entanto, foi a de, mais do que popularizar o violão, torná-lo um instrumento de arte a serviço das emoções e do sentimento.
Biografia. Dilermando Reis nasceu em Guaratinguetá, interior de São Paulo, no dia 22 de setembro de 1916, e morreu no Rio de Janeiro, no dia 2 de janeiro de 1977, aos 60 anos, vítima de um infarto fulminante. Considerado um mestre do violão, ele influenciou diversas gerações. Com apenas 15 anos, já era exaltado como o melhor violonista de sua cidade. Em 1933, ele migrou para o Rio de Janeiro, onde encontrou outro violonista de destaque: João Pernambuco, coautor da histórica “Luar do Sertão”, ao lado de Catulo da Paixão Cearense.
Em 1935, Dilermando recebeu do radialista Renato Murce, a oportunidade de comandar um programa de solos de violão na Rádio Transmissora. Cinco anos depois, passou para a Rádio Clube do Brasil, e formou uma orquestra composta por dez violonistas, uma das primeiras do mundo. Em 1941, gravou um disco com a valsa “Noite de Lua” e o chorinho “Magoado”. Na década de 1950, chegou à Rádio Nacional, e atuou no programa “Sua Majestade, o Violão”, apresentado por Oswaldo Sargentelli e, mais tarde, por César Ladeira.
Em 1960, lançou “Melodias da Alvorada”, em homenagem à nova capital, com arranjos e regência do maestro Radamés Gnattali. Amigo íntimo de Juscelino Kubitschek, o ensinou a tocar violão, assim como à filha do presidente, Maristela Kubitscheck. “Ajudei a construir, com minhas próprias mãos, o Catetinho. Meu violão foi o primeiro ouvido nos céus da nova capital. Fiz também a primeira música em homenagem à cidade que nascia”, declarou Dilermando. Outra amizade foi com Pixinguinha, a quem dedicou disco em 1972.
“Pierrot” (valsa, 1932) – Joubert de Carvalho e Paschoal Carlos Magno
Conta Joubert de Carvalho que ele estava passeando na rua quando o dramaturgo Paschoal Carlos Magno o interpelou com entusiasmo raro: o pedido era para que fizesse uma canção para sua nova peça de teatro, intitulada “Pierrot”. O ano era 1932, e já haviam arranjado até o cantor para interpretar o motivo a ser composto, e era Jorge Fernandes, possuidor de voz fina e melodiosa. Logo, Joubert escutou de sua “voz interna” as notas que viriam a formar o gesto final, o último ato da valsa. Gravada posteriormente por Silvio Caldas, Vicente Celestino e Francisco Petrônio com acompanhamento de Dilermando Reis, entre muitos outros, “Pierrot” alcançou um sucesso imediato.
Curiosidade. Impedido de se tornar aviador, em decorrência de problemas cardíacos, o cavaquinhista Waldir Azevedo, autor do choro “Brasileirinho”, empregou-se na companhia de energia elétrica do Rio de Janeiro, a Light. Pouco tempo depois, quando passava a “Lua de Mel” no interior do estado, em Miguel Pereira, recebeu o telefonema de um amigo, que lhe avisava sobre a abertura de uma vaga no conjunto regional de Dilermando Reis. Não pensou duas vezes: encurtou o passeio e foi ao encontro da nova profissão. A aposta provou-se acertada. Waldir tornou-se um dos maiores instrumentistas do país.
Fotos: Arquivo e Divulgação.